Como alguém se transforma num escritor? Dez notas sobre o primeiro livro
Por Patricio Pron
Leonid Pasternak, A paixão da criação. |
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“O primeiro
livro é o único que importa, tem a forma de um ritual de iniciação, uma
passagem, uma travessia de um lado para outro”, disse Ricardo Piglia. Sua
história, contada em Anos de formação
marcou-se por essa frase de 1967, quando escreveu Jaulario (que o autor e o editor rebatizaram no mesmo ano, para
publicação, como A invasão), é
retrospectiva, vaga de entusiasmos transitórios, extrai sentido de assuntos pouco
relevantes no momento em que tiveram lugar mas que se tornaram significativos com
a passagem do tempo (uma mudança, uma conversa, um rumor nos corredores de uma
universidade), reúne vislumbres do escritor que Pigilia será mas que, no
momento da escrita não é ainda (embora na leitura, sim, certamente); aceita,
por fim, a nula relevância da primeira publicação para qualquer um que ainda
não seja um autor, mas admite a emoção gerada por esta: “A importância do
assunto é meramente privada, mas nunca se pode esquecer, estou certo, a emoção
de ver um livro impresso com o que alguém escreveu”.
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Como se
transforma alguém num escritor? Qual motivação profunda, quais carências, quais
condicionantes, quais estímulos constituem a vocação e por que precisamente
esta e não outra? Milhares livros, centenas de filmes e documentários, diversos
seriados de várias formas tentam responder esta pergunta, não sem dificuldades,
mas todos eles coincidem em destacar o primeiro livro como alumbramento e
aparição do escritor. Há um par de anos, por exemplo, a prestigiada revista
estadunidense The Paris Review iniciou
uma série de entrevistas intitulada “Minha primeira vez” em que pergunta a escritores
sobre sua primeira publicação: as respostas – responderam à pergunta nomes como
Sheila Heti, Tao Lin, Donald Antrim e Ben Lerner, entre outros – são notáveis,
mas o mais significativo dos testemunhos dados consiste na impossibilidade por
parte dos autores de estabelecer um momento em que um certo número de
estímulos, de habilidades e de limitações tornou-se numa vocação e, mais tarde,
em algo parecido com uma profissão: quaisquer que sejam as estratégias retóricas
que se empreguem para isso, o resultado é sempre uma narrativa, não sobre o que
realmente aconteceu, mas daquilo que, tendo acontecido, é percebido
posteriormente como o desencadeador de algo, da transformação em escritor.
(Talvez seja esta certeza que levou Ricardo Piglia a publicar Os diários de Emilio Renzi acreditando
que estes não são realmente diários nem, certamente, foram escritos por Renzi:
este último é o pseudônimo que o escritor argentino emprega comumente para
representar-se como autor em certas ocasiões, e a admissão do gênero diário
íntimo permite dissimular o caráter inevitavelmente retrospectivo da narração).
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(Sobre isso já
advertia Tobias Wolff ao afirmar, em Velha
escola, que “não se pode fazer nenhum relato verdadeiro de como ou por que
alguém se tornou escritor, nem existe nenhum momento sobre o qual se possa
dizer: Foi então quando me tornei escritor. As peças soltas encaixam mais
adiante com maior ou menor sinceridade, e depois de todos os relatos terem se
repetido adquirem a categoria de recordação e bloqueiam todos os outros
roteiros de exploração”).
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Devemos, desde
há algum tempo, ao filósofo espanhol Antonio Valdecantos uma visão sugestiva e
notavelmente diferente do comum em relação ao que ele chama “a agrafia” e que
outros autores chamaram “a negatividade” ou “Síndrome Bartleby”; para Valdecantos,
“o ágrafo não é um fugitivo da escrita, mas sim o escritor um traidor à agrafia”.
Para que escrever “exuberantes e enganosas selvas de palavras” das quais só ficarão,
no melhor dos casos, “um par de arbustos anões, filhos do mal-entendido e de
alguma tara exegética inconfessável” se, por outro lado, “ainda no caso
milagroso de que a prosa (ou o verso) cheguem a aparecer com fluidez [para o
autor], o resultado desapareceria pelo sumidouro do mercado, onde, no melhor
dos casos, haveria de competir com material livresco verdadeiramente
repugnante?”
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Estas
perguntas não são apenas motivo de dificuldade para escritores em nascimento:
aplicam-se também à leitura de um primeiro romance, em especial se esta é uma
descoberta recuperada tardiamente. O que converteu seu autor em escritor? O que
significou para ele ou ela, que passou pela cabeça ao sentir, como disse
Piglia, “a emoção de ver um livro impresso com o que alguém escreveu”?
Possivelmente nem mesmo o autor possa responder a estas perguntas; isto é,
retornar ao momento em que um livro seu era seu “primeiro livro”, só, inicialmente
sem promessa de continuidade nem de reconhecimento, à margem de livros posteriores
que ratifiquem ou desmentem a promessa desse primeiro livro e as ideias que seu
autor tinha sobre o que é e faz um escritor antes de ser alguém público. A abertura
que todo primeiro livro supõe, e que inaugura para seu autor um mundo, o da sociabilidade
do escritor publicado e suas possibilidades, mas também suas limitações, é também
um movimento de prisão, que impede ao autor lembrar posteriormente quem era ou como
se sentia em sua condição de inédito, o que supõe que sobre essa condição se
projetem visões idealizadas de um estado de suposta pureza na qual o escritor
haveria disposto das maiores liberdades (erroneamente atribuídas à falta de pressão
que poderia vir de um público leitor e encontrar-se fora de um mercado editorial que restringiriam a autonomia do escritor, quando é evidente para
qualquer um que tenha experimentado ambas as coisas que nenhuma delas supõe um
problema real para o “verdadeiro” escritor e que a condição de inédito também entranha
uma pressão específica: mais concretamente, a de tratar de publicar) e de uma convicção
posta à prova pelas dificuldades que se apresentaram até ter sua primeira obra
em mãos.
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“Da vida que
surge o que se escreve não é possível escrever”, afirma Tobias Wolff. “Transcorre
sem o conhecimento do próprio escritor, por baixo das inquietações e dos ruídos
da mente, em profundos poços sem luz onde os mensageiros fantasmas se esforçam
para avançar sobre nós, matando-se entre ao longo do caminho”. Apesar disso, não
é raro que os primeiros romances tenham um traço autobiográfico e sugiram,
paradoxalmente, uma dupla motivação: por um lado, o desejo de inventar, de
produzir um mundo dentro do mundo onde o seu juiz é o autor, num âmbito em que
sejam determinantes a invenção e a genialidade; por outro, a necessidade íntima
de contar algo que tenha acontecido ao autor, que o situe no mundo inclusive a condição
de que o seja como personagem de uma
obra literária. (Rainer Maria Rilke eternizou essa dupla motivação em Franz
Xaver Kappus, quem, certamente, fora de diversos estudiosos, só é conhecido
como interlocutor e personagem das Cartas
de um jovem poeta). Todas essas
primeiras narrativas autodiegéticas e em “primeira pessoa” cujo narrador compartilha
características com seu autor (às vezes a idade, quase sempre o gênero, a nacionalidade,
muitas vezes os gostos literários e / ou musicais), em que as ações narradas concluem
com uma ação comum, a de escrever o vivido, revelam ou manifestam isso e constituem
uma armadilha na qual os leitores caímos várias vezes: na verdade, queremos
ali, vendo a transformação de um sujeito escritor; no possível, revelando-nos como
é essa transformação e o que a motiva. Na Alemanha existem na atualidade quinze
prêmios literários destinados a primeiros livros e em dezenas de outros países
e tradições literárias os prêmios que distinguem obra inédita têm apreço pelas
estreias; as vanity presses não prosperariam
sem eles nem sem a curiosidade que inspiram os primeiros livros ao menos desde
1750 (quando se produziu uma deslocamento sobre a noção de valor de uma obra,
que passou da imitação ao exercício da autoria, com suas noções adjacentes de
originalidade, excepcionalidade e novidade), em sua função de corte
transversal, de “rito de passagem”, de alumbramento do novo escritor. (Algo no
qual parece haver acreditado especialmente Wilhelm Raabe, quem a partir de 1854
celebrou a cada 15 de novembro sua Federansetzungstag
– literalmente, o “dia em que pegou a pena” –, e James Joyce, quem exigiu de
Sylvia Beach que a publicação de Ulysses
coincidisse com seu quadragésimo aniversário, 2 de fevereiro de 1922: para
eles, publicar era nascer, e é nesse sentido, como expressão de desejos, que se
entende a publicação de Ingrid
Babendererde. Reifeprüfung 1953 [Ingrid
Babendererd. Prova final 1953], o primeiro livro de Uwe Johnson, em 1985,
quando seu autor estava morto havia um ano).
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(Talvez por
isso, a Alemanha pareça ser um país verdadeiramente obcecado com os primeiros
livros: em 1984 Karl Emil Franzos publicou uma seleção de testemunhos
intitulada Die Geschichte des
Erstlingswerks [A história da
primeira obra] que incluía depoimentos de Paul Heyse, Theodor Fontane,
entre outros, e Renatus Deckert o imitou, em 2007, com a antologia chamada Das erste Buch [O primeiro livro], obra da qual participaram Martin Walser, Hans
Magnus Enzensberger, Elfried Jelinek e outros. É raro encontrar este tipo de
obra fora do âmbito germano-falante, talvez porque só nele se atribua valor à
primeira obra como algo mais que um argumento de venda).
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Na
literatura se joga sempre algo da índole de afirmação pessoal, dizem uns
(erradamente, visto que, como assegurou Simone Weil, “todas as obras de arte de
mérito levam inscritas de alguma maneira o talento individual de seu criador,
suas particularidades mais concretas e específicas; as obras-primas, por sua
vez, sempre têm algo de anônimo”), e nela, ao menos em suas primeiras
manifestações, ocupa um lugar central o medo de despir-se ante desconhecidos.
Boa parte dos primeiros livros oscila entre um extremo e outro, apesar de que,
ou precisamente a raiz disso, não são poucas as vozes que tentam converter o
rito de passagem do primeiro livro num assunto puramente prático; o escritor
estadunidense Odie Lindsey, por exemplo, recomendava aos seus leitores num
artigo recente que “antes de se dedicar à escrita como carreira profissional”
se assegurassem de que não o agem “simplesmente por padecer de agorafobia ou
por estar deprimidos”. Depois (sustentava) deve se seguir os seguintes passos: “escrever
um pequeno romance ruim”, “não publicar o pequeno romance ruim”, “buscar um
editor”, e aceitar o fato de que “a indústria editorial tem tempos geológicos”;
a coroação do processo seria a publicação do primeiro livro e uma emoção subjacente
(“egoísta, familiar, tão vitalmente pueril”) que nem sequer o cinismo ou sua
transformação num assunto de índole prática poderiam dissimular.
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Apesar do
que se acredita habitualmente (e contra a opinião corriqueira de que seria
possível produzir algo do nada, e que essa produção teria o caráter de um
alumbramento), não há primeiros gestos na literatura, mas uma soma deles que são
considerados fundadores com o tempo e de forma retrospectiva. Ao obter o Prêmio
Pulitzer com seu romance Toda luz que não
podemos ver, Anthony Doerr foi marcado por projetos fracassados (um romance
sobre salmões, outro sobre um faroleiro, pouco mais de uma dezena de contos);
sem Toda luz que não podemos ver e o
Pulitzer, tudo poderia ser computado como fracasso; com a publicação do romance
e a obtenção do prêmio, adquire-se o caráter, uma contrapartida necessária,
sobre a penumbra a partir de um recorte se vê mais nitidamente seu trabalho,
isto é há uma luz. O escritor jamaicano Marlon James, autor de Breve história de sete assassinatos,
obra com a qual ganhou o Prêmio Man Booker, contou, por sua vez, que “chegou um
momento em que meus romances inéditos superavam em número os publicados: um
deles era narrado por prostitutas jamaicanas; a segunda, por gêmeos albinos cantores
de música gospel que fugiam de um assassino em série que também era seu
empresário”. “Penso que é importante não ficar obcecado com ideias do tipo esta peça funciona, esta outra é um fracasso”, observou Doerr. “Em última instância,
temos que fazer coisas com essas entidades pouco confiáveis e ardilosas chamadas
palavras como se se tratasse de um jogo, e jogar tão bem, o quanto pudermos,
porque estamos jogando não necessariamente porque um certo resultado nos espera
no fim do jogo”. Sem dúvidas, nas palavras do escritor Bill Cheng, autor de Southern cross the dog, uma das estreias
literárias mais celebradas em 2014, “a identidade do escritor está tão relacionada
com a escrita de um livro que este acaba autoflagelando-se quando as coisas não
funcionam. Eu não acredito ter aprendido muito dos meus projetos fracassados ou
abandonados, mas talvez esse seja o ponto: só se aprende do que se conclui”.
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Na virtualidade
desses livros escritos mas não publicados, em todas essas obras que precedem a
transformação do escritor em escritor (mas a tornam possível) há ansiedade,
indulgência e pressa, certamente, mas também o entusiasmo e a insatisfação que
desembocarão num estilo, daí que Cheg talvez tenha razão: no trânsito da condição
de escritor inédito a publicado, só se sabe que tipo de escritor será quando se
escreve e como resultado do que se escreveu. Ricardo Piglia disse que, depois
de publicar seu primeiro livro, cada escritor deve “tratar de não se converter ‘num
escritor’”; isto é, num a mais. Como advertência, Lindsey disse que “transformar-se
em escritor significa (às vezes) transformar-se num clichê”; mas é difícil imaginar
um estágio em que o escritor não esteja num devir sobre a condição de escritor
e em que a escrita não constitua uma ferramenta de exploração dessa condição. É
possível que a história da literatura consista, nesse sentido, e unicamente,
numa sucessão de primeiros livros: sucedidos por outros, ou não, presos numa
situação ambígua em que o autor narra mas também se narra, preso no gesto de começar
várias vezes de novo exibindo as inseguranças da estreia que talvez o escritor
seja sempre. Marguerite Duras afirmou certa vez, brilhantemente: “Escrever é
tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos: só sabemos depois; antes, é
a pergunta mais perigosa que podemos fazer”.
* Este texto é uma tradução de "¿Cómo se
transforma uno en un escritor? Diez notas sobre el primer libro", publicado em Letras Libres.
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