A filha perdida, de Elena Ferrante
Por Fernanda Fatureto
A identidade de Elena Ferrante já não é mistério para
ninguém, ao menos supostamente. Após o jornalista italiano Claudio Gatti
afirmar no New York Review of Books que a autora – que publica por pseudônimo –
é na verdade a tradutora Anita Raja, o universo Ferrante ganha cada vez mais
adeptos pelo mundo. Em 2017 no Brasil foi lançado Um amor incômodo pela
Intrínseca, mesma editora que publicou A filha perdida – terceiro romance da
escritora originalmente lançado na Itália em 2006, mas que chegou por aqui em
2016. Por aqui também temos completa a tetralogia napolitana de Ferrante,
editada pela Biblioteca Azul. Se o interesse cresce em torno da escritora
italiana é devido ao modo como tece suas narrativas ao usar o realismo como
base para transpô-lo num terreno pouco habitado pelas emoções, que levam as
personagens a lugares desconfortáveis.
Em A filha perdida ocorre o avanço e retrocesso da narrativa
para contar a história de Leda, uma professora universitária de quarenta e sete
anos que desempenha o papel de mãe com dificuldade, ao ter abandonado as duas
filhas crianças para descobrir a si mesma num processo que gerou culpa e a fez
voltar para se reconciliar. A narrativa começa com o casamento desfeito e com
as filhas crescidas, morando no Canadá com o pai. Leda tira férias e viaja para
a praia, mas o encontro com uma família napolitana faz com que relembre seu
passado e velhas feridas retornam.
O conflito entre norte e sul da Itália está presente na
história. A narradora associa Nápoles ao que há de mais degradante visto que ela
também nasceu em uma família napolitana: “Aquela gente me irritava. Eu havia
nascido em um ambiente como aquele, meus tios, meus primos, meu pai, todos
agiam daquela maneira, com uma cordialidade prepotente. Eram cerimoniosos, em
geral muito sociáveis, e cada pedido que saía de sua boca soava como uma ordem
ligeiramente disfarçada de falsa bondade e, quando necessário, sabiam ser
vulgarmente ofensivos e violentos.” Quando muda para Florença aos dezoito anos
para estudar, diz ter encontrado sua verdadeira identidade no ambiente letrado
da universidade. Ao encontrar Nina e Elena (mãe e filha) na praia, Leda remete a hostilidade e o barulho daquela
família ao ambiente confuso regido por sua própria família. Assim, a narrativa
nos mostra uma relação de espelho e reflexos interpostos em que existem várias
camadas de relações entre mães e filhas que precisam ser aparadas.
A maternidade exposta sem mitificações aparece aos olhos do leitor
com uma carga de rancor pela condição da mulher numa sociedade que espera que
ela seja passiva frente às transformações do corpo e dos hormônios que a
gravidez provoca. Há um permanente desconforto no olhar que Leda deposita na
relação entre Nina e Elena e nas suas próprias filhas Marta e Bianca: “Eu havia
desejado Bianca; um filho é desejado com uma opacidade animal reforçada pelas
crenças populares. (...) O corpo de uma mulher faz mil coisas diferentes, dá
duro, corre, estuda, fantasia, inventa, se esgota e, enquanto isso, os seios
crescem, os lábios do sexo incham, a carne pulsa com uma vida redonda que é
sua, a sua vida, mas que empurra você para longe, não lhe dá atenção, embora
habite sua barriga, alegre e pesada, desfrutada como um impulso voraz e,
todavia, repulsiva como o enxerto de um inseto venenoso em uma veia.”
A narrativa cresce à medida que a narradora passa os dias de
suas férias a observar Nina e Elena. Sente ternura e repulsa ao perceber como
aquela relação pode ser completa onde ela mesma falhou anos antes. Certo dia,
Elena some na praia e a família napolitana se desespera. De longe, Leda decide
ajudar e encontra a menina perdida perto do mar. Em um gesto de solidariedade,
pega a pequena no colo e a devolve para Nina. Mas Leda comete um ato que trará
sofrimento para a menina – esconde a boneca de Elena na sua bolsa e a leva para
casa. A família napolitana passa a procurar a boneca para que a menina pare de
chorar. Mas Leda não a devolve de prontidão.
Seria um ato irracional ou consciente fazer a menina sofrer?
Em dado momento, a narradora diz: “Apoiei a boneca em meus joelhos, como que
para ter companhia. Por que eu a pegara? Ela vigiava o amor de Nina e Elena, o
vínculo das duas, a paixão recíproca. Era testemunha resplandecente de uma
maternidade serena. Levei-a ao peito. Quantas coisas estragadas, perdidas havia
em meu passado, mas, naquele instante, ainda estavam presentes em um turbilhão
de imagens. Senti que não queria devolver Nani, embora sentisse remorso, medo
de ficar com ela.”
O romance então retrocede e avança nas memórias de Leda ao
mesmo tempo em que mostra a aproximação com Nina e o desespero pela busca da
boneca a fim de cessar o sofrimento de Elena. A escrita de Elena Ferrante
sempre é incômoda, nunca as palavras estão ali como elementos gratuitos. Elas
atingem o leitor no que há de mais vulnerável – os laços afetivos. A filha
perdida é um romance sobre os laços maternos, mas que subverte o moralismo e a
moral. O final, surpreendente, atinge o grau máximo da violência expressa na
nossa cota de humanidade: até onde pode ir uma mãe para defender um filho?
***
Fernanda Fatureto é poeta e jornalista. Bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Seu livro de estreia Intimidade Inconfessável foi publicado em 2014 pela Editora Patuá. Participa da antologia poética 29 de Abril: o verso da violência (Editora Patuá, 2015); da antologia Subversa 2 (Editora Patuá, 2016) e da antologia Senhoras Obscenas (Editora Benfazeja, 2016). Possui poemas em diversas revistas literárias do Brasil e na revista InComunidade de Portugal.
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