Um romance com treze títulos
Por Pedro Fernandes
Clarice
Lispector, graças ao trabalho ardiloso de pesquisadores, e antes disso, de
leitores apaixonados por sua obra alcança os lugares mais interessantes da cena
literária dentro e fora do Brasil. Sim, é graças ao trabalho dos pesquisadores
porque o mercado editorial (para este salvam-se raras exceções) e o Estado
brasileiro pouco ou quase nada têm contribuído nesse processo de reconhecimento.
Tanto é verdade que, só agora, tanto tempo depois de sua obra ter sido publicada
– seu último romance, A hora da estrela,
faz 40 anos da primeira edição em 2017 – que esses lugares mais interessantes são ocupados pela escritora.
Referente ao
mercado editorial, é bem verdade que no passado sua obra ganhou edição bem
trabalhada – vale recordar as edições em capa dura editadas pelo então Círculo
do Livro – mas, desde quando passou a ser publicada pela Editora Rocco, é bom dizer,
a qualidade editorial muito ficou a desejar. Tantos anos depois, finalmente
esta casa editorial se redime do tratamento dado a uma das obras mais
interessantes da literatura brasileira.
Tal zelo,
suspeita-se, se deve a dois motivos importantes de sublinhar: um de 2004, quando
parte do acervo da escritora chegou a compor o arquivo do Instituto Moreira
Salles; e quando, sete anos depois, um biógrafo estadunidense bem relacionado
no estrangeiro e interessado pela obra de Clarice dedicou-lhe o texto Clarice, reeditado muito recentemente
pela Companhia das Letras, depois da descontinuação da Cosac Naify, a primeira casa
responsável pela referida obra. Nesse ínterim, é inegável o trabalho de
pesquisadores como Nádia Battella Gotlib, com textos, edições de inéditos,
biografia, fotobiografia, exercícios críticos, portanto, um trabalho ainda de
maior envergadura que o propiciado por Moser, o biógrafo estadunidense.
Mas foi o
IMS que começou a ampliar esse imaginário leitor em torno da obra de Clarice,
até então ainda muito restrito a academia, com a publicação de livros, uma das
suas edições riquíssimas dos Cadernos de
Literatura Brasileira, um site para reunir informações de corte diverso –
textos de apoio, explicações sobre a obra, videoaulas etc. – além da criação de
uma data celebrativa chamada Hora de Clarice. A biografia Clarice, pelos motivos apresentados, ganhou circulação em diversos
países, e reacendeu o interesse estrangeiro em torno da obra.
E onde o Estado
nesse trabalho todo? Fique o silêncio como resposta, mas só uma outra pergunta:
teria Clarice alcançado seu lugar no grande panteão se este Estado usasse pelo
menos a lei do menor esforço? As ações anteriormente
descritas foram, sem dúvidas, as que contribuíram para colocar sua obra em
evidência e colaborar para uma revisão na linha editorial – afinal, o conteúdo
é sempre o que importa, mas se este recebe o tratamento devido (nesse caso à
altura) melhor ainda. Os leitores merecem. Clarice merece.
Então, primeiro
foi a publicação de um volume com todos os contos da escritora; organizado
também por Benjamin Moser, o livro primeiro foi publicado fora do país e depois
no Brasil. Poupe todas as críticas negativas sobre a disposição dos textos e
mesmo a inclusão de gêneros que não contos mas assim catalogado num intuito de oferecer
aos mais curiosos uma febre mesmo pequena provocada pelo vírus do ineditismo, a
repercussão positiva da obra entre os leitores brasileiros parece ter servido
de último sinal para a compreensão da editora sobre o quanto é fundamental
revisar graficamente a obra mais ilustre do seu catálogo.
E assim,
aparece A hora da estrela, edição comemorativa
dos 40 anos e com ela a promessa de que um novo tratamento gráfico é pensado
para o conjunto da obra. Fartamente ilustrado com os manuscritos que formam a
base de composição do romance talvez mais conhecido, o livro é um deleite aos
olhos mais exigentes. Começaram bem, portanto. Este não apenas o título mais
lembrado quando é citado o nome Clarice – é também a coroação de uma obra em
tudo capaz de revolucionar a nossa literatura e se inserir, como muita facilidade,
no cânone universal. Com este romance, a brasileira ata muitas pontas.
Ninguém conhecedor
de pelo menos parte da crítica contemporânea à obra de Clarice duvidará que A hora da estrela foi ainda uma resposta
muito segura contra a insistência de que a obra da escritora era uma repetição
do chamado romance de cunho psicológico nos moldes do praticado por Virginia
Woolf e James Joyce e contra as acusações de que esse tipo de romance não
respondia pelas questões históricas, sociais e políticas dos sujeitos,
sobretudo numa nação como era o Brasil do tempo da escritora, tomado por uma
sorte diversa de atrasos, modelos políticos ultrapassados e um exercício ferrenho de imposturas dos do poder contra
o povo (não que as coisas tenham mudado tanto assim de lá para cá, mas há uma consciência
que não nos deixa mentir sobre o regresso das forças de repetição da ordem do
mando sobre nós).
Foi preciso
reinventar a compreensão de que a chamada arte desinteressada do engajamento social
não estava assim tão alheia ou distante dos problemas contextuais, isso porque
sabe-se agora da impossibilidade de se produzir objetos artísticos fora dessa
ordem e mesmo a negação pode ser lida como uma estratégia de criticar ou se
aproximar do conteúdo e das formas sociais. Mas, até que se alcançasse essa
compreensão, Clarice terá preferido responder da maneira melhor que podia
responder: escrevendo. E, assim, podemos falar sobre A hora da estrela, romance colocado na tênue fronteira do romance
social e do romance psicológico. No final de contas isso também terá passado
despercebido para grande parte dos leitores de seu tempo, sobretudo aqueles que
tomaram a obra como uma espécie de homenagem da escritora ao chamado romance
regionalista de 1930, o que, da parte de Clarice é muito provável que não tenha
sido nada disso.
Publicado em
1977, o romance, como sublinha Clarisse Fukelman, na apresentação para o site
do IMS dedicado à obra da escritora, é formado por uma narrativa organizada em contraponto.
“De um lado, a história da ingênua Macabéa, migrante nordestina pobre em luta
pela sobrevivência na cidade grande; de outro, o drama do escritor e seu processo
de criação ao retratar uma pessoa distante de seu universo socioeconômico e ser
capaz de se comunicar com ela” – observação que só confirma a suspeita antes citada,
afinal Rodrigo S. M., o narrador de A
hora estrela, é a própria Clarice, a que tomada pelas acusações da crítica
no anseio pela forma do romance social se coloca entre a possibilidade ou não
de compor uma figuração explicitamente engajada sobre um tema então em moda na
nossa literatura e tão caro: o da relação de embate entre as forças do tradicional
e do moderno, resquícios do movimento modernista, ou o disparate entre as
forças da nossa raiz mais autóctone, arcaica, e as fabricadas de acordo com os códigos
copiados dos modelos capitalistas, o universo plástico e, portanto, mais falso,
nossa urbanidade. Novamente é válido citar Clarisse: todo esforço de Clarice é
em não ser rude, nem piegas – “O tom do livro oscila entre a compaixão por um
ser tão frágil, a angústia diante de uma forma de escrita incompetente para ser
comunicar com os miseráveis, e a ironia, anunciada no nome dos personagens”.
Avessa a
falar publicamente sobre sua própria obra, a conclusão de A hora da estrela, na ocasião quando gravou sua última entrevista,
ao repórter Júlio Lerner na TV Cultura, em fevereiro de 1977, serviu para uma
pequena incursão da escritora pelo universo que havia criado. Aqui, vale um
parêntesis, para recontar as ocasiões citadas por Colm Tóibín, num texto que
foi o primeiro prefácio da obra nos Estados Unidos, e ilustrativo sobre a
aversão de Clarice por esses lugares designadamente para escritores. Conta Tóibín que Elizabeth Bishop, então radicada
no Brasil (viveu por aqui entre 1951 e 1966), disse em carta a Robert Lowell
sobre a tradução de cinco contos de Clarice com o intuito de publicá-los no The New Yorker – “acho que ela precisa
do dinheiro, e vem a calhar, pelo tanto que o dólar está valendo... Mas bem na
hora [diz Bishop], quando eu estava para remeter o material, faltando um, ela
sumiu. Completamente, e por umas seis semanas!”
A outra situação
também está registrada noutra correspondência de Bishop, agora de junho de
1963: “Clarice foi convidada para mais um congresso literário, na Universidade
do Texas, e está mostrando-se muito encabulada e complicada – mas, no fundo, acho
que está muito orgulhosa – e é claro que vai. Vou ajudá-la em seu discurso. Acho
que seremos ‘amigas’ – mas ela é a mais não-literária entre os escritores que
jamais conheci, jamais abre um livro. Nunca leu nada que eu conheça. Acho que é
uma escritora ‘autodidata’, como um pintor primitivo”. Fora o discurso meio de aproveitadora ou mesmo de se colocar
tão próxima de Clarice quanto importante, nota-se bem como a obra da escritora
galgou, no seu tempo, quase sozinha seus próprios passos e reafirma a relação
pública entre a escritora e sua criação.
Agora, neste
encontro com Júlio Lerner para a TV Cultura, Clarice cita que havia acabado de
escrever uma obra – com “treze nomes, treze títulos” (segredo que se revela logo
à entrada da edição comemorativa: “A culpa é minha”, “O direito ao grito”,
“Quanto ao futuro”, “Lamento de um blue”, “Ela não sabe gritar”, “Uma sensação
de perda”, “Assovio no vento escuro”, “Eu não posso fazer nada”, “Registro dos
fatos antecedentes”, “História lacrimogênica de cordel”, “Saída discreta pela
porta dos fundos”). Aliás, cabe uma observação sobre o seu trabalho criativo:
na mesma entrevista, ela explica como publicou seu primeiro livro, esteve
sempre inclinada para a escrita, mas nunca foi alguém sistemática com o
andamento da escrita; escrevia em papéis soltos e os guardava – a obra nascia-lhe
mentalmente e durante a forja de sua unidade retomava aos fragmentos que colecionava
no intuito de garantir vida ao imaginado. E assim atesta a reprodução das
diversas notas de origem para A hora da
estrela reproduzidas ao longo da edição agora apresentada.
Aos olhos de
Clarice, este romance é "a estória de uma moça, tão pobre que só comia
cachorro quente. Mas a estória não é isso, é sobre uma inocência pisada, de uma
miséria anônima". Além do exercício de construção mental, essa história de
Macabéa ganha corpo por dois episódios experienciados pela escritora, como
registra na mesma entrevista de 1977: a sua própria infância no nordeste
brasileiro (quando a família de Clarice veio da Rússia para o Brasil, viveram
primeiramente em Alagoas, lugar de onde veio a personagem da obra) relembrada de
uma visita a uma feira onde nordestinos se reuniam em São Cristóvão, no
Rio de Janeiro; nessa ocasião, diz ela, pode capturar "o ar meio
perdido" do nordestino na cidade grande. Além disso, na época de escrita
da obra, depois de uma visita a uma cartomante, ela imaginou como "seria
engraçado se na saída, ela fosse atropelada depois de ouvir todas coisas boas
que a cartomante previra". A situação foi transposta para a narrativa.
A hora da estrela foi publicado
em 26 de outubro de 1977, pouco antes de Clarice ingressar no
hospital do INPS da Lagoa, no Rio de Janeiro, quando se agrava
sua enfermidade e morre em menos de três meses depois. Quase póstumo, o romance
que produziu uma das personagens mais emblemáticas da nossa literatura pode
ser, numa obra possível de ser lida sem obedecer a ordem cronológica, uma
entrada ao universo clariciano. Aí estão, para recuperar as palavras de Eduardo
Portella no prefácio à primeira edição de A
hora..., “a perda, o vazio, o oco”, instâncias metafóricas exploradas pela “autodidata”
Clarice em toda sua obra.
A edição ora
apresentada, além dos manuscritos que conformam uma bela tessitura visual, está
farta da observação crítica, simples e significativa, capaz de oferecer
entradas diversas à obra; são textos da citada Clarisse Fukleman, Nádia
Battella Gotlib, Eduardo Portella e Colm Tóibín, mas também de Paloma Vidal,
Hèlène Cixous e Florencia Garramuño – escritos que reafirmam o lugar e a
importância desta obra, que, 40 anos depois, é já irretocável e, portanto, um clássico
da grande literatura.
Ligações a esta post:
Comentários