Sartre: a autenticidade e a violência
Por Jorge Martínez Contreras
Jean-Paul
Sartre morreu no dia 15 de abril em Paris, onde havia nascido há 74 anos. Numa
entrevista publicada no início do ano no semanário francês Le Nouvel Observateur, havia declarado que viveria provavelmente
mais cinco anos, talvez dez. Não sobreviveu nem dois meses às previsões. Sartre
é agora um destino, o conjunto de suas obras e suas ações e dos juízos que
sobre ele podemos fazer. Mas já que não poderá se defender do que no futuro
afirmemos sobre sua vida e obra, comecemos por lhe infligir o inevitável e
exato lugar-comum que o reconhece como um dos pensadores mais decisivos e
prolixos do século XX. É dos poucos que puderam se expressar praticamente em
todos os gêneros literários, sob o lema da nula
dies sine linea (nenhum dia sem escrever). Publicou seis obras de cunho
filosófico, quatro romances, um livro de contos, nove peças de teatro e duas
adaptações, três roteiros de cinema, dez volumes de ensaios, três biografias e
um infinidade de artigos, entrevistas e conferências. Tão abundante produção
levou senão a um campo desigual, com muitas paisagens feias e cansativas ao
lado das interessantes e profundas, e com uma debilidade característica: muitos
trabalhos inconclusos, o esforço contínuo de concluir as obras, a desilusão ou
fracasso que culminaram seu abandono.
O tema da autenticidade
Em 1938,
movido pela fenomenologia de Husserl, Sartre escreveu A transcendência do ego, A
imaginação (sua tese de mestrado) e O
imaginário, A náusea, famoso
romance filosófico publicado em 1938 e os contos de O muro em 1939. Por essa mesma época concebeu a ideia de escrever
uma série de romances filosóficos sob o título geral de Os caminhos da liberdade, para qual pensar atribuir a epígrafe:
“Nossa desgraça é que somos livres”. Desta série de romances apareceram três
tomos: A idade da razão, Sursis e Com a morte na alma, sem dúvida o mais importante, por sua
densidade filosófica sobre a realização literária. Como tantos outros, o
projeto dos romances como expressão de suas pesquisas sobre a liberdade também
ficou por concluir.
Em 1943
publicou O ser e o nada, uma de suas
obras filosóficas mais importantes. Ao final deste trabalho manifestava sua
intenção de continuá-lo com um segundo tomo cujo tema fundamental seria a
moral, uma moral baseada na liberdade e na consciência reflexiva que envolve o
homem dono de seus atos, isto é, na autenticidade. Sartre escreveu, aqui
também, muitas páginas sobre o tema, mas não considerou suficientemente seu
conteúdo suficientemente maduro para publicá-lo e seu pensamento foi se
orientando até às preocupações de ordem política que o aproximaram do marxismo.
Mas, embora incompleto, o problema colocado em torno do conceito da autenticidade
foi fundamental em seu desenvolvimento pessoal e filosófico.
A ideia de
autenticidade deriva diretamente de sua visão ontológica do homem, que para
Sartre não é apenas existência, é também consciência intencional, representação
do universo, existência do vivido, ponto de vista sobre a matéria. Como tal é
livre do conteúdo de suas representações e não obedece por conseguinte às leis
da causalidade que regem, por exemplo, através do instinto, o comportamento dos
animais. Ser livre para o homem significa que tudo nele é histórico, nada é
natural, que o homem é sua própria criação, é todo cultura e, sem cultura, o
que resta é um total vazio. Essa mesma produção histórica da cultura logo cria-lhe
a camisa de força que determina os indivíduos nascidos em qualquer sociedade
desde sua infância mais tenra.
A sociedade impõe ao indivíduo uma linguagem, um conjunto de valores culturais, morais, religiosos etc., que se convertem nele em algo muito parecido com a natureza de um animal. A mulher “feminina” é um ser que, ao nascer, não era nem masculino nem feminino, mas a quem a sociedade impôs tão profundamente uma série de comportamentos e atitudes identificados com a feminilidade que estes passaram a ser parte do que se denomina “sua persona”. Agora, sendo o homem livre por princípio pode escapar destes condicionamentos, pode negá-los e superá-los mediante a reflexão, que para Sartre não é apenas a manifestação da liberdade humana, o instrumento pelo qual todo indivíduo pode se dar conta de que os valores recebidos são valores artificiais, culturais, dos quais pode escapar.
O característico do homem é que todos seus comportamentos derivam de instruções, informações, dados e pressões cuja origem estão em sujeitos semelhantes a ele próprio; são valores que não têm maior força quando provêm do outro que ele próprio tenha concebido individualmente. A autenticidade sartreana se vincula, pois, primordialmente à busca de decisões livres que não tenham por origem mais que a própria reflexão individual sobre eles.
Este tema fundamental teve duas grandes fases em sua obra. A primeira dura até 1948, e se liga ao que Sartre denominou psicanálise existencial, a qual todo homem devia descobrir as forças originárias que o impulsionaram a ser o que é e a se dar conta de que ninguém senão ele era responsável de seu próprio destino. Em Baudelaire, estudo dedicado a demonstrar que o autor de As flores do mal havia sido o único artífice de sua vida, Sartre escreveu que quando os indivíduos expõem suas frustrações, sua história, seu passado, para justificar o que são, estão agindo com má fé; vale dizer, adotam a posição “do outro”, o repertório de valores alheios que permitem justificar as próprias debilidades morais. Num estudo contemporâneo a este livro, A questão judaica, Sartre analisou o problema do antissemitismo dividindo os judeus em dois grandes grupos: os que assumiam a caricatura que deles faziam os antissemitas e os autodestruíam por sua própria arma, e os que recusavam estes estereótipos impostos do exterior para afirmarem-se como homens frente aos valores racistas dos outros.
Nessas primeiras reflexões sobre o tema, a aposta sartreana em torno do poder da liberdade individual alcançou extremidades difíceis de aceitar. Sartre chegou a sustentar, por exemplo, que ainda sob a tortura o homem conservava sua liberdade intacta: tinha sempre a possibilidade de dizer se falava sob a dor ou se ignorava seu sofrimento para a postura autêntica e não se deixar vencer pela violência dos outros. Sartre abandou logo esta interpretação bastante idealista da liberdade individual e começou a trabalhar sobre a ideia de que na realidade a consciência não era mais que a consciência do corpórea de existir em sociedade.
A sociedade impõe ao indivíduo uma linguagem, um conjunto de valores culturais, morais, religiosos etc., que se convertem nele em algo muito parecido com a natureza de um animal. A mulher “feminina” é um ser que, ao nascer, não era nem masculino nem feminino, mas a quem a sociedade impôs tão profundamente uma série de comportamentos e atitudes identificados com a feminilidade que estes passaram a ser parte do que se denomina “sua persona”. Agora, sendo o homem livre por princípio pode escapar destes condicionamentos, pode negá-los e superá-los mediante a reflexão, que para Sartre não é apenas a manifestação da liberdade humana, o instrumento pelo qual todo indivíduo pode se dar conta de que os valores recebidos são valores artificiais, culturais, dos quais pode escapar.
O característico do homem é que todos seus comportamentos derivam de instruções, informações, dados e pressões cuja origem estão em sujeitos semelhantes a ele próprio; são valores que não têm maior força quando provêm do outro que ele próprio tenha concebido individualmente. A autenticidade sartreana se vincula, pois, primordialmente à busca de decisões livres que não tenham por origem mais que a própria reflexão individual sobre eles.
Este tema fundamental teve duas grandes fases em sua obra. A primeira dura até 1948, e se liga ao que Sartre denominou psicanálise existencial, a qual todo homem devia descobrir as forças originárias que o impulsionaram a ser o que é e a se dar conta de que ninguém senão ele era responsável de seu próprio destino. Em Baudelaire, estudo dedicado a demonstrar que o autor de As flores do mal havia sido o único artífice de sua vida, Sartre escreveu que quando os indivíduos expõem suas frustrações, sua história, seu passado, para justificar o que são, estão agindo com má fé; vale dizer, adotam a posição “do outro”, o repertório de valores alheios que permitem justificar as próprias debilidades morais. Num estudo contemporâneo a este livro, A questão judaica, Sartre analisou o problema do antissemitismo dividindo os judeus em dois grandes grupos: os que assumiam a caricatura que deles faziam os antissemitas e os autodestruíam por sua própria arma, e os que recusavam estes estereótipos impostos do exterior para afirmarem-se como homens frente aos valores racistas dos outros.
Nessas primeiras reflexões sobre o tema, a aposta sartreana em torno do poder da liberdade individual alcançou extremidades difíceis de aceitar. Sartre chegou a sustentar, por exemplo, que ainda sob a tortura o homem conservava sua liberdade intacta: tinha sempre a possibilidade de dizer se falava sob a dor ou se ignorava seu sofrimento para a postura autêntica e não se deixar vencer pela violência dos outros. Sartre abandou logo esta interpretação bastante idealista da liberdade individual e começou a trabalhar sobre a ideia de que na realidade a consciência não era mais que a consciência do corpórea de existir em sociedade.
Genet, história de uma libertação
Em Saint Genet, ator e mártir, Sartre
analisou o caso do poeta Genet,
ostensivo homossexual, ladrão e traidor, preso várias vezes, salvo de uma
prisão perpétua graças à intervenção de vários intelectuais – entre eles, o
próprio Sartre – que se uniram em torno de um pedido de perdão presidencial.
Órfão, abandonado desde o início da infância, “educado” por uma família à qual
o seguro social francês repassava uma mensalidade, Jean Genet cresceu num
universo onde nada lhe pertencia. Foi dos indivíduos que por definição não
tinha propriedade. Jogado num mundo de esmolas onde tudo é dado pelos demais e ele
próprio sobrevive graças a ação “benévola” de terceiros, o menino começou desde
cedo a cometer pequenos furtos que ganharam para ele um caráter sagrado – eram
roubos que lhe permitiam apropriar-se temporalmente (porque perdia depois) dos
objetos e pertences que a sociedade havia lhe negado por sua condição de órfão.
Um dia, descoberto roubando, a “palavra vertiginosa” saída da boca de
“anfitriões benévolos” marca-o para sempre: “ladrão”. O ato inocente sagrado,
pessoal, tornou-se logo marca social, uma cicatriz irreparável. A partir desse
momento Genet seria o menino “que não se pode deixar só porque é ‘ladrão’” e a
personalidade em que se desenvolveriam atitudes sociais destinadas a frear um
destino marginal, desconfiável, delitivo. O adolescente Genet quer ser muito
mal, além do que a sociedade quis fazê-lo; o homossexual afirmará que sua
homossexualidade é frágil e que por isso a pratica; como valores sociais, terá
por grande estima a traição (que o fará um solitário entre os demais criminosos,
sempre unidos em torno de valores elementares como a não-delação). “Pratica o
mal pelo mal em si”, será o imperativo de Genet; assim, o menino transformado
em adulto faria de sua vida uma negação mais profunda que a negação que a sociedade
fez dele convertendo-o em menino ladrão.
A conclusão
deste livro é, contudo, otimista: quaisquer que sejam os determinismos sociais,
o indivíduo pode adotar frete a eles uma atitude autêntica: Genet “consegue
fazer algo que os outros fazem dele”, sua história é a “história de uma
libertação”: o homem não é livre para eleger sua situação mas sim para
“eleger-se em situação”.
Mais tarde
Sartre compreenderia que existem circunstâncias nas quais o homem já pode
eleger nada. Por exemplo, quando a tortura faz dele um títere, um joguete,
alguém se torna um qualquer ou um morto.
Apesar de
suas contradições, o conceito de autenticidade é importante porque uma de suas condições
fundamentais é que não pode existir doutrinas, dogmas ou princípios que passem
por cima do poder individual do homem para definir sua vida frente aos valores
que recebe. A dúvida é pois o instrumento principal de toda busca de autenticidade
moral e para evitar a tentação de acreditar que há valores definitivos e
estabelecidos, seja de tipo religioso, seja de tipo político. Crer é imoral,
duvidar é moral. Para Sartre, o homem é um ser social, produto em grande parte
de determinismos de sua própria cultura, mas como indivíduo livre sempre pode
responder de maneira original, decidir pessoalmente como enfrentar o que a vida
e a sociedade hão feito dele. Para todos os que vivem no sonho do dogmatismo
Sartre pode ser um bom antídoto.
Sartre, Simone de Beauvoir e Fidel em Cuba |
Filosofia da história e marxismo
Um dos aspectos
menos conhecidos e estudados da obra sartreana é sua filosofia da história,
desenvolvida parcialmente em seu segundo grande livro filosófico: Crítica da razão dialética. Sartre havia
se interessado pelo marxismo desde 1934, época quando escreveu A transcendência do ego. Neste contexto
dizia: “sempre me pareceu que uma hipótese de trabalho tão fecunda como o
materialismo histórico não exigia de nenhuma maneira a absurdidade que é o
materialismo metafísico”. Mas, só vinte anos depois, em Questão de método, elaborou sua fecunda hipótese do marxismo e
falou da fenomenologia como uma etapa superada da dialética. Para voltar a encontrar
esta fecundidade tinha que eliminar a metafísica do materialismo dando vida ao
marxismo fossilizado. Em 1957 afirmou: “considero o marxismo como a filosofia
insuperável do nosso tempo”. Entretanto, não abandonou a teoria antropológica
que havia elaborado no contexto da tese de O
ser e o nada; pelo contrário, para ele as contradições da filosofia
poderiam resumir-se numa oposição maior: existência e saber. Sartre colocou a
pergunta antropológica fundamental da tradição ocidental: “há uma verdade do
homem?” e tentou respondê-la em Crítica
da razão dialética. Explorou aí o universo da existência transformada em
ser em objeto, isto é, a ação passada dos homens que como a vida própria do
filósofo morto, é um objeto de conhecimento. Desta maneira o saber nas ciências
sociais se refere, segundo Sartre, ao passado de sua existência. Existência e
saber não se opõem realmente: a existência história é primeiro um saber social,
uma pertença social a uma cultura que surgiu da práxis de outros homens no
passado. Toda negação da existência desta cultura deve partir de um conhecimento
dela própria.
Qual é o
saber que ao qual se debate o homem atual? Sartre quis dar resposta a esta
interrogação mediante a intenção de fundamentar a razão dialética. Os filósofos
teóricos do estado da natureza trataram de explicar a origem da sociedade,
partindo da ideia de que existiam indivíduos livres e não conglomerados no
estado de natureza bruta. Para Hobbes, os homens viviam num estado de luta contínua
onde o homem era um lobo para o homem. Só a sociedade civil e o reforço do
poder de um soberano acima de todos poderia garantir a segurança dos homens em sociedade.
Rousseau, muito antes, explicaria que o homem perdeu sua autonomia e sua
liberdade ao abandonar o estado de natureza onde os indivíduos sozinhos viviam
no mundo da abundância reproduzindo-se mediante encontros fortuitos entre ambos
os sexos.
Sartre
retomaria a preocupação de pensadores como estes para perguntar-se por que
existe a violência entre os homens e como surge a estratificação social. Para
ele, “todo homem é todo o homem”, não existe nenhuma ideia de desigualdade
natural entre eles. Portanto, nosso universo social é o universo da violência
apenas controlada pela cultura: “quando muitos homens estão juntos, é necessário
separá-los por meio de ritos, se não se massacram”. Assim, para o autor de Crítica da razão dialética, o homem deve
ser visto como um ser da necessidade vivendo num mundo de escassez. Sabemos, graças
a antropologia, que várias sociedades de caçadores-coletores – as chamadas “sociedades
primitivas” – vivem de fato uma situação de abundância: seus membros trabalham
apenas algumas horas do dia para garantir o sustento do grupo. As sociedades
estratificadas e históricas vivem uma situação de luta. A escassez origina a
desigualdade e a dialética da luta social.
O projeto como práxis
Para explicar
essa dialética do conflito humano Sartre precisou recorrer às ciências sociais
– para as quais a explicação do fenômeno social partindo do indivíduo é
duvidosa – e à Marx. Mas, além do dogmatismo quase religioso de vários
marxistas – começando com Engels – que quiseram fazer da dialética um processo
natural (o materialismo dialético), Sartre tratou de analisar o processo
dialético social dentro de um contexto puramente sócio histórico. A dialética
implica a negação e esta só pode ser então um processo de pensamento: não é a
matéria mas o homem quem pensa. No primeiro tomo da Crítica Sartre adiantou certos esquemas fundamentais de uma
aproximação sociológica destes problemas, mas não publica o segundo volume que
deveria ter se ocupado do problema da história, embora tenha deixado mais de
quatrocentas páginas inéditas sobre o tema.
Sartre e Simone de Beauvoir, 1965. |
Tratando de
fundar uma razão dialética, Sartre pretendeu demonstrar que as estruturas sociais
são “objetos” sociais, produtos da ação histórica dos indivíduos. Não é
possível tratar de derivar as estruturas sociais de determinismos naturais ou
fisiológicos como tenta a sociologia (nome atual de correntes anteriores do
pensamento semelhantes), porque nesse caso o pensamento humano não teria sentido.
Mas tampouco é possível pensar que estruturas abstratas como “a economia”, “a
luta de classes” etc., sejam determinantes de entidades concretas como é o
indivíduo e sua práxis. Só o idealismo pode sustentar que o abstrato determina
o concreto; para Sartre, os conceitos antes mencionados existem – são ideias, representações
– com pensamento de uma realidade concreta: o conflito entre os homens em seu
fazer histórico pela apropriação do necessário e escasso e o conflito com a
inércia do fazer passado, isto é, as estruturas sociais. Mas, de nenhuma
maneira pode-se falar destas como de sujeitos históricos sem que se adote uma
posição hegeliana a respeito.
Para o autor
de Questão de método, a base da sociedade
deve ser buscada na práxis individual. Esta posição não é comparável com a do
liberalismo – que parte também do indivíduo – na medida em que para certa
filosofia os homens possuem uma igualdade e uma liberdade que se aplicam a todo
homem em todo momento histórico, como se fosse uma natureza humana. Para Sartre
a igualdade consiste em que todos os homens são liberdade, mas liberdade como
possibilidade de eleger uma ação dentro de uma situação dada que não foi escolhida.
A subjetividade não é desse modo independente – como o caso da ideia de uma
“vida interior” – frente ao objetivo: este determina as condições de existência
daquela: “minha subjetividade é a objetividade que eu escolhi”. Em consequência,
a práxis se dá como um projeto de mudar o dado mediante a ação. O projeto é
assim a característica que define o homem.
A práxis
individual, por sua vez, constitui o fundamento da práxis social, mas não a
determina e tampouco esta determina aquela. Para explicar a realidade social,
Sartre se propõe utilizar o “método progressivo-regressivo” proposto por Henri
Lefebvre, que consiste em partir do social para o indivíduo – progressivamente
– e do individual para o social – regressivamente. A influência do social sobre
o individual se dá através das estruturas e dos comportamentos sociais
estereotipados que se manifestam na “coletividade”, comportamento que Sartre
denomina “serializado” para diferenciá-lo de “atomizado”. Uma “coletividade” é,
por exemplo, o conjunto de ouvintes dos hits da semana ou o conjunto de
indivíduos usuários de uma linha de uma
determinada linha de ônibus. Todas essas ações serializadas são interiorização
do comportamento estereotipado do “outro”, do que se faz corriqueiramente sem
se perguntar por que. A serialização é a manifestação mais típica da vida dos
homens em sociedade, mas não é mais que um produto inerte de uma práxis
passada, do prático-inerte, o conjunto de objetos, usos e costumes sociais que
estão presentes em toda situação individual desde as crenças religiosas aos comportamentos
menos significativos, passando pela língua, os valores socioculturais, etc. – a
partir dos quais se dá a práxis individual. O projeto parte do dado para
superá-lo em função de uma realidade nova imaginada.
Da práxis individual à revolta social
Sejam quais
forem as estruturas dadas, a práxis pode rompê-las a qualquer momento. Sartre
não acredita, logicamente, na existência de grupos orgânicos porque não aceita
a existência (de nenhum sujeito supraindividual – que seria abstrato por
definição); e por isso tratará de constituir uma teoria da mudança social a
partir da ação individual.
Tomando como
exemplo a queda da Bastilha, Sartre nos fala do fenômeno da revolta com imagens
que dez anos depois seriam revividas parcialmente no maio de 1968 francês. Fala
de uma manifestação espontânea de homens serializados reunidos para protestar
por falta de algo que os afeta de igual maneira a todos – a falta de pão, no caso
histórico –, mas cujo movimento não organizado a princípio é reprimido
violentamente por uma força do exército (ou da polícia), que consegue por esta
ação fazer que os integrantes da manifestação alcancem o que não haviam conseguido
realizar: a união total. Quando a manifestação é reprimida, um setor do grupo
atacado começa a responder em uníssono: se dão de maneira espontânea ações comuns,
surgem um ou vários líderes “legítimos” (os que expressam espontaneamente o que
o grupo pensa nesse momento). No caso da tomada da Bastilha – e não no 68 francês
– o Grupo convertido em grupo em fusão pode chegar a destronar um rei ou a
mudar a estrutura do poder.
Mas uma vez
alcançado o poder, uma vez eliminado o perigo da violência externa, o grupo
unido e com um líder legítimo se coloca na necessidade manter sua coesão frente
aos possíveis conflitos internos. A fraternidade espontânea necessita agora de
uma fraternidade imposta. Assim o juramento – leia-se a constituição – por meio
do qual os membros da nova sociedade juram respeito às leis que eles próprios criaram
para si, virá acompanhado de uma fraternidade do terror, uma repressão interna
destinada a manter a coesão do grupo.
As necessidades
de funcionamento cada vez mais complexas do grupo dominante frente aos
dominados traz consigo uma institucionalização das estruturas e outras
espontaneidades aparecem então como
reprodução da desigualdade contra a qual se lutou originalmente. Neste ponto
Sartre é pessimista e otimista: pessimista porque admite que enquanto houver escassez
haverá desigualdade (por essa razão afirmou em 1959 que o marxismo era a única
filosofia viva atualmente); otimista porque pensa que algum dia poderá existir
essa filosofia da liberdade, cujas bases tratou de sedimentar em sua obra.
Como seja, tanto o problema da autenticidade
moral como o do papel do indivíduo nos fenômenos sociais, são questões centrais
sobre as quais Sartre nos deu mais luzes do que se acredita, provavelmente
porque sua obra já não está na moda e é pouco lida. O primeiro problema
interessa desde as origens com a filosofia ética; o segundo interessa a certas
disciplinas sociais – como a psicologia social – assim com a filosofia da ciência.
Ambos, ao horizonte vertiginoso de um século marcado por essa dupla vertente da
sociedade de massas: a alienação coletiva e a revolução
* Este texto é uma tradução de "Sartre: la autenticidad y la violencia" publicado na revista Nexos.
* Este texto é uma tradução de "Sartre: la autenticidad y la violencia" publicado na revista Nexos.
Comentários
Foi esta ideia de liberdade que seduziu a primeira geração dos jovens universitários do pós- guerra, e que se manifestou espontaneamente no Maio 68, em França.