Pureza, de Jonathan Franzen

Por Pedro Fernandes



Este é um daqueles romances cujo título pouco convém ao substrato narrativo. É verdade que Purity [Pureza, nome que, curiosamente, apesar de ser traduzido no título não é traduzido na obra] é uma personagem de grande valia para a resolução da trama muito bem arquitetada, aliás, como é bem comum no acadêmico Jonathan Franzen. Mas, o leitor não encontra aquilo que costumeiramente encontraria nas obras assim nomeadas de Bildungsroman, isto é, o desenvolvimento de uma personagem, tal como ficou conhecido desde a consolidação do tipo narrativo com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe; muito embora não se descarte seus traços.

De uma maneira ou de outra Pip, como se chama a garota recém-formada, com uma grande dívida com o Governo porque pegou empréstimo para pagar a faculdade e não tem dinheiro para pagar e com a grande dúvida da sua vida, a de não saber o paradeiro de seu pai e se sua mãe é mesmo quem diz ser, passa por diversas aprendizagens entre a primeira e a última situação do romance. Mas, não é Pureza uma narrativa sobre a personagem responsável por desmanchar o imbróglio narrativo.

Franzen, fiel aos modelos aprendidos nos cursos de escrita criativa, constrói um romance interessado em expor, por via diversa, uma ideia que, embora não enunciada como título, é a principal, porque dominante em todos os conflitos que se propõe desenhar: o segredo e suas consequências. Assim, qual é o segredo de Pureza? Não responder por modelos estabelecidos de narração mas sem desprezar o feitio e a boa estruturação da narrativa, assemelhando-se, muitas vezes, à forma tradicional do romance: contar uma história na qual o leitor se sinta envolvido o suficiente ao ponto de não colocar em risco sua verdade.

Numa época quando os romancistas estão mais interessados em situar seus enredos à beira da fronteiras entre a representação e a imaginação, é possível que uma obra do tipo proposta por Franzen se configure numa maçada para o leitor; por outro lado, o coloca diante dos clássicos protocolos que regem o bom do romanesco – tal como terá feito Donna Tartt no seu enfadonho O pintassilgo: seduzi-lo pela teia do narrado e quando este se sentir preso ao fastio do enredo arremessá-lo com o elemento surpresa, a ligação inesperada, aquilo que na teoria da literatura de língua inglesa é parte essencial do que chama-se plot. Obras assim ressaltam o valor da engenhosidade criativa.

Pureza pertence ao rol das obras que funcionam como objetos de montar. E, por isso, qualquer deslize do escritor é capaz de fazer desmoronar toda história, efeito que, por sua vez, se repete com o leitor: qualquer desatenção é capaz de fazê-lo perder-se entre as idas e vindas, as aberturas e os fechos, estes, em grande parte produzidos pelo exercício da leitura – um adendo a quem diz que este tipo de narração zela pelo tipo de leitor paciente e não ativo na formação da narrativa.

Dizer que Pureza é um romance sobre o segredo não é uma constatação vazia que visa reduzir (no sentido de enquadrar) a obra a uma característica específica. Tampouco é uma mera especulação de leitor. Há uma passagem, quando Pip, depois de deixar a vida sem perspectivas em Oakland, para ir ter com um projeto da Wikileaks com sede na Bolívia, conversa com seu mentor, o misterioso (ao menos para si) Andreas Wolf, que diz muito sobre este aspecto do romance – e claro, como poderá perceber o leitor, o epicentro central da narrativa também há de corroborar. Andreas expõe para Pip uma estranha conclusão sobre o que é a identidade, esse elemento nosso definidor e definidor da coletividade. Para ele, “a identidade consiste de dois imperativos contraditórios”: 

“Há o imperativo de manter segredos e o imperativo de divulgá-los. Como a pessoa sabe que é diferente das outras? Por manter algumas coisas só para si. Elas ficam guardadas dentro da gente porque, se não for assim, não distinção entre interior e exterior. Os segredos são um modo de você saber até mesmo que possui um interior. Um exibicionista radical é alguém que abriu da sua identidade. Mas a identidade no vazio também não faz sentido. Cedo ou tarde, o que está dentro da gente precisa de uma testemunha. De outra forma, não passamos de uma vaca, de um gato, de uma pedra, de uma coisa qualquer no mundo, de algo indistinto. Para ter uma identidade, a gente precisa acreditar que existem igualmente outras identidades. Precisa-se estar próximo de outras pessoas. E como se constrói essa proximidade? Compartilhando segredos”.



Descarte-se toda e qualquer implicância teórica que esse princípio fira, mas não despreze que é uma observação reveladora sobre o funcionamento da narrativa deste romance: o impasse entre o que se esconde e o que se revela numa era que se abre como a da transparência, na qual os indivíduos tomados pela necessidade de não servir de manipulação do poder anseiam por querer a vida aberta em sua plenitude. 

Tal impasse é verificado ao longo da narrativa ao colocar em perspectiva que a transparência é um produto do novo capital – e a extensa onda de ataque cibernético recente em que os hackers sequestravam dados de sistemas exigindo em troca da preservação dos segredos dos usuários uma certa quantia em bitcoins, moeda virtual, é prova disso – e o solo no qual as grandes potências movem-se para monitorar outras nações – também não está distante de nós a divulgação de que os Estados Unidos pratica esse exercício de usurpação do privado de outros governos e dos seus cidadãos. O que só reforça a compreensão de que um segredo só é segredo quando não confessado nem às paredes – embora isso rareie ou só exista como simulacro.

Assim, o segredo ou sua revelação é analisado por este romance de Franzen desde essa perspectiva universal, isto é, a do meio pelo qual transitam as nações (apresentando, inclusive, uma revelação sobre a qual ainda não serviu a muitos, que hoje as nações por terem maior controle sobre as informações dos seus habitantes podem se servir disso para a imposição de um estado de sítio mais danoso que os vivenciados nas ditaduras passadas) à perspectiva individual. Todas as personagens aparecem marcadas entre o trabalho de zelar por seus segredos e de se sentirem impelidas a confessá-los e de como essa confissão serve de prisão de uma existência a outra, capaz de responder por uma estadia irregular e de errante no mundo.

Só para citar um exemplo, um dos principais da narrativa: não fosse o segredo guardado por Anabel, a mãe de Pip, sobre o passado e o verdadeiro pai da filha, a revelação inicial por Pip do amor que nutre por Stephen, um dos moradores na residência formada por membros do movimento Ocupy, na periferia de Oakland, e as consequências dessas revelações e ela não cairia no discurso sedutor de Annagret de fazer parte da organização comandada por Andreas Wolf.  É desse exercício de esconde-revela que Franzen constrói uma narrativa que coloca, como se vê, o segredo não apenas como tema e força motriz das vidas individuais e coletivas mas elemento estrutural da obra. 

Ou seja, Pureza, é um grande segredo que se revela à medida que o leitor se entrega aos jogos de manipulação do narrado. Às vezes lhe parecerá o segredo – como uma mentira e as suas consequências – uma estratégia de manipulação dos acontecimentos num contínuo exercício de adiamentos, repetitivo e desnecessário, sobretudo quando lida com a lapidação da persona da figura que nomeia o romance (há mesmo situações infelizes da narrativa), mas logo lhe vem que esta é naturalmente a força motriz da própria existência na era da transparência e as situações acabam por participar ativamente, e portanto servirem fundamentalmente à tessitura do narrado.

O leitor possivelmente terá outras melhores entradas à obra de Franzen, entretanto, Pureza parecerá irresistível se compreender – e este talvez seja o maior segredo do escritor estadunidense com este romance – estar diante de uma obra que responde pelo limiar de seu tempo, este incapaz de lidar com os limites entre a voz e o silêncio, exercício fundamental que aos poucos desaprendemos.

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