Não confies no narrador
Por Marta Fernández
Sabes que
está aqui. Deste lado do papel. E parece inofensivo e pacífico. Um ser
integralmente feito de palavras. Um ser todo olhos e dicionário. Que olha e que
fala. E que nele confias. Porque sempre foi assim. Porque o narrador é teu cicerone.
Porque te conduz, te revela, te abre a mente, te empresta seu corpo inventado
para que possas entrar nessa dimensão alheia chamada ficção. Tu és um aliado. Às
vezes, tu eres dele. Só podes ficar ao seu lado. Mas, já deverias saber que nem
sempre merece tua confiança. Deverias ter aprendido que a voz que te fala, às
vezes, te engana. Que nem todo mundo veio aqui para dizer a verdade.
Talvez
devesses suspeitar daquele menino cheirando a leite. Mas tu eras um leitor de
primeira viagem também. E te pareceu familiar os seus titubeios. Sua bendita
inexperiência. “Nunca vi nada mais que mentirosos, sempre”. E embora no
primeiro capítulo Huckleberry Finn já te avisasse de que todo mundo mente, incluindo
ele, decidiste descer rio abaixo, até onde o Mississipi te quis levar. Ou até
onde te levasse Mark Twain – um cavalheiro, lembra, que tampouco assinava seus
livros com seu verdadeiro nome. E enquanto avançavas na viagem compreendestes
que Huck é Tom Sawyer, que seu autor voltou mais pessimista e que talvez sua
personagem não dizia toda a verdade.
Como vai
dizer a verdade quem sabe tão pouco da vida? Tão pouco como Holden Caulfield
que acredita que o mundo ideal deveria ser como a taxidermia do Museu de Ciências
Naturais. Um espaço onde nada muda, onde os irmãos não morrem, onde se para o caminho
que te leva à maturidade. “Se lembra desses patos que estão sempre nadando aí?
Sobretudo na primavera. Sabe você por acaso para onde vão no inverno?” Se
perguntava Holden, ante o lago gelado do Central Park, com a cara pasma de Tony
Soprano, se voam os mascotes. Como se conhecendo a rota de fuga assegurava o
retorno. Mas o único que assegurou foi deixar a interrogação suspensa no ar
para que se tornasse como um mantra para Mark David Chapman. Esse admirador não fiável que na porta do
Dakota presenciou a ausência dos patos com o sangue de Jonh Lennon.
Mas Lennon
não sabia onde vão os patos. Como não sabia Holden Caulfield, pobre Peter Pan
enfurecido incapaz de interpretar o mundo. Nem sequer se dá conta de que não
entendeu o poema que inspira sua fantasia: os meninos correndo entre o centeio.
Não, Holden, não há um campo que acaba num precipício cheio de pequenos a ponto
de cair. Não há ninguém a quem salvar. Nosso narrador tem tão pouco crédito como
sua memória. Mente para todos. O flagelo dos farsantes é só um farsante a mais.
Talvez todos
somos farsantes alguma vez. São os adolescentes e os obsessivos. E os
apaixonados. É Humbert Humbert cortejando a mãe quando deseja a filha. Cego.
Repetitivo. Louco. Criminoso. Pederasta. Desesperado. Compulsivo. Embusteiro.
Um desses
embusteiros que querem contar a verdade. A versão redentora de suas falhas. A
que justifica seus crimes. Disse Nabokov que Humbert passa oito semanas de escrita
frenética. Aporreando as teclas como um kamikaze. Consciente de que vai morrer
de amor ou na prisão. Até que o leitor detetive que há em ti descobre um erro
em sua história. O professor se equivoca com as datas, como Holden se equivocava
com o poema do centeio. Há quem diga que seu desajuste com o calendário é
apenas um rastro de migalhas deixado por Nabokov para que descubramos que sua
personagem é uma fraude. Não confies em Humbert Humbert. Como podes acreditar
num cavalheiro que perde a cabeça no primeiro parágrafo? Mas os leitores somos permissivos.
Nos apaixona com seu arranque anafórico. Nos sequestra e nos contagia a
síndrome de Estocolmo de todos os tomados pela leitura.
Unreliable narrator. O termo foi criado
por Wayne C. Booth; o único narrador de se confiar que aparece neste texto. O
professor da Universidade de Chicago, em princípios dos anos sessenta,
inventaria as categorias que a crítica sacralizaria depois: o autor implícito,
a distância do que escreve, o narrador não-fiável. Para Booth, o escritor era
uma aranha e seu trabalho passava por tecer uma rede invisível para confundir o
leitor. Uma rede de palavras. Talvez influenciou nesse afã sua educação no seio
de uma família descendente de pioneiros mórmons. Ele próprio um difusor da fé
passando-se por missionário pelos fly-over-states.
O que tentara penetrar nas armadilhas retóricas das Escrituras, o texto de
quatro cronistas que nem sempre se mostram de acordo nas circunstâncias de sua
personagem principal – claro que a história demonstraria depois o quão é
difícil colocar-se de acordo com as circunstancias divinas.
Para Booth,
o narrador confiável é o que fala ou atua de acordo com as normas da lógica e
da obra. Enquanto que o não-fiável, não. Este te manipula, tende às armadilhas,
mente, oculta informação, esconde situações específicas que nos obrigarão a
reler mentalmente o romance quando, no fim, já tivermos nos separado de toda a
situação.
Pecadores
suicidas como Humbert Humbert. Inocentes inexperientes como Huck Finn. Insones
desequilibrados como o narrador anônimo de O
clube da luta. O brincalhão Tristram Shandy. O suspeitosíssimo Roger Ackroyd
em quem Agatha Christie nos faz confiar.
Ou os loucos.
Tão eficazes do outro lado da página. Loucos no mínimo, como Zeno, de Italo
Svevo, que mente a si contando-se que cada cigarro é o último, que engana seu
psiquiatra e seduz James Joyce. Loucos presos a salvo da ultraviolência, com
terapias em forma de beethoveniano lavado de quixoteria – e nos faz falta dizer
mais de Alex de Burgess. Loucuras recorrentes, como a consciência labiríntica
de O cérebro de Andrew, com o qual Doctorow
julgou ser trapezista entre neurônios alheios. A loucura cotidiana de Stevens
de Ishiguro – mordomo compulsivo e perfeccionista empenhado em polir as arestas
do coração. E loucuras transitórias e salvadoras: a de Pi, que converte sua
tragédia de náufrago num exótico bestiário para esconder a verdade.
Mas em concurso
de narradores desequilibrados ganha o prêmio o Grande Chefe, o índio que limpa
as loucuras da esquizofrenia como psiquiatra de Voando sobre o ninho do cuco. Sua balança só se equilibra entre a
mentira e o desvario. Tão farsante que consegue fingir durante anos que nem
fala nem escuta. Tão falso que se faz passar por mundo e se converte em
narrador. E narra a história de outro impostor: Randle Mc Murphy, um sujeito
que prefere se passar por tarado a ir para a prisão. De verdade, podes acreditar
num tipo que pretende não poder falar para depois falar sem parar para contar a
história de um crime que no fundo quer esconder? Não. como vais confiar num
narrador que podendo fugir na primeira página não se afasta do inferno até o
fim?
Este inferno
lisérgico de Ken Kesey – o próprio que viveu convertido em cobaia humana numa
instituição mental em Menlo Park – parece-se muito ao de Allen Ginsberg. Como
se parecem seus paraísos artificiais. “A primeira vez que vi Allen Ginsberg
estava numa festa ao lado da lareira”. Kesey, Ginsberg e seus comparsas. Um
passará para história. 7 de agosto de 1964. A corte psicodélica de Kesey recebe os Anjos do Inferno em seu rancho na Califórnia. Hunter S. Thompson recordaria
essa gloriosa situação em sua tese antropológica – ou centaurológica – sobre os
motoqueiros selvagens. Tom Wolfe daria sua versão vertiginosa e onomatopeica em
O teste do ácido do refresco elétrico. E
Ginsberg a converteria em poema alucinado. Mas daquela celebração alcaloide
surgiria algo mais. Uma história com um narrador tão pouco confiável como
poderia se esperar. Outra peripécia num reformatório mental.
Rockland, onde você estava mais louco do que eu apenas
supera as cem páginas. Não faz falta mais. Impresso com técnica mimeógrafa, como
muitos outros trabalhos da época do universo underground. Segundo a lenda, Ginsberg escreve seu único
experimento em prosa depois de uma aposta naquela festa louca que recorda a do
gênesis de Frankenstein. A história é um
trocadilho que forma um nó perfeito com seu poema Uivo. Conta a mesma traumática experiência – se passou no Instituto
Psicológico Presbiteriano de Columbia – mas distorce o ponto de vista. O pouco confiável
narrador não é um dos doentes. É o diretor da instituição. Um médico atraente
por fora e demoníaco por dentro, um verdadeiro maníaco. O louco que mantém
presos os melhores cérebros de sua
geração. Até o fim não suspeitamos que o respeitável Dr. Kashady é o maior
desequilibrado da instituição.
Ginsberg nos
obriga a reconstruir a narrativa até o começo com outra perspectiva, a
interpretar a história coma a pedra de Roseta fundamental que não encontramos
até chegar ao último capítulo: a confirmação de que o diretor do manicômio é um
sádico voraz. Assim é o narrador não-fiável: nunca termina de fazer seu
trabalho, tem de levar junto seu leitor.
Leitores
sábios, aqueles que vão à frente. Leitores que, em ocasiões, são também
editores tão habilidosos como Maxwell Perkins. Quando recebeu Trimálquio se desfez em elogios sobre
este romance maravilhoso que “tão bem fundia sem perder a unidade as incongruências
da vida moderna”. Mas lhe faltavam dados sobre a personagem central: Jay
Gatsby. E Francis Scott Fitzgerald vai reescrever. Dá informação sem entregar.
Apresenta o milionário misterioso sem revelar seu segredo. E só podia fazer
isso através de Nick Carraway e o converte em testemunha observadora de Gstsby
mas não lhe concede uma lupa para escarafunchar seu passado.
O Nick Carraway
de Fitzgerald viva a vida sem lente de aumento. Outros narradores não-fiáveis
afrontam seu trabalho através de uma lente deformante. Age assim Ford Madox
Ford em O bom soldado, que não é só a
história mais triste jamais contada, também é a mais conhecida. Faz quem se converte
em narradores de sua vida, a real, através da lente rosa da memória. Mestres da
ficciobiografia. Leni Riefenstahl não
sabia nada do que Hitler estava fazendo? Ignoravas que depois passar à frente
de teus olhos os meninos ciganos de Terra
baixa continuariam seu caminho até Auschwitz para o último fulgor do
Zylkon-B? Às vezes os narradores não-fiáveis da vida verdadeira dão muito mais
medo do que os da ficção. Mais medo que o diabo de c. S. Lewis, que o narrador labiríntico
de House of Leaves, que o assassino confesso
de 1922, que os enigmáticos contadores
de história de Neil Gaiman, que o feroz psicopata de Easton Ellis faminto de
sangue por Wall Street.
O mundo está
cheio de narradores que mentem deste lado do papel. O lado a partir do qual te
escrevo. O lado desde que confessei que Wayne Booth era o único narrador de
fiar que aparecia neste texto. Sim. Em algum ponto desta história te preguei a
armadilha de uma mentira. Mas não podes dizer que te enganei. Te avisei desde o
início: não te fies no narrador.
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