Na tua face: Vergílio Ferreira constrói a complexidade feminina em Ângela

Por Marina Rufo Spada Boyd



Em Na tua face, romance escrito em 1993 pelo português Vergílio Ferreira, é-nos exposto duas figuras femininas de características ímpares, psicológica e fisicamente. Embora tais figuras sejam de complexa análise – dado o característico uso de Vergílio Ferreira das analepses, prolepses, elipses, monólogos interiores dentre tantas outras ferramentas de difícil descodificação – o narrador não deixa muitas ferramentas à mão do leitor, e assim nos cabe a tarefa de desatar os nós que as mantém ligadas – e amarrá-las quando necessário. Sendo assim, fica ao leitor reconstrução de elementos diegéticos a partir da seleção de fragmentos de informações que o texto oferece.

Apesar das duas personagens femininas complementarem-se ao longo do romance, cabe aqui analisar a construção de apenas uma delas: Ângela. A figura de Ângela aparece-nos logo ao primeiro capítulo da trama, já formada quase que em toda sua completude. Como sendo as personagens implicadas a um certo número de propriedade psicológicas, morais e socioculturais, temos o desenrolar de tais propriedades durante a vida adulta de Ângela, contudo, é notável as impressões causadas pelo primeiro contacto do leitor com ela. Esse contacto se dá nos limites da Universidade de Coimbra, em um momento em que já se mistura à figura de Bárbara. O narrador afirma a amizade das duas e substitui sutilmente o rosto altivo de Bárbara ao redondo e neutro de Ângela, em uma metamorfose imperfeita que acaba por esquecer um detalhe ou outro no ser modificado. A essa altura já nos é exposto os primeiros adjetivos que devemos ter em mente para dar continuidade à leitura. Fisicamente, têm-se que Ângela é baixa, loura com cachos perfeitos à altura do pescoço e de rosto sério e redondo. Os olhos azuis remontam à característica nórdica e assume uma determinada frieza e imperturbabilidade no aspecto geral. O passo com que anda ao lado do narrador vem para caracterizar por completo a personagem em diversas esferas: “certo preciso exacto como uma lei de sintaxe”. Ângela é gramaticalmente correta, em outras palavras. Mas apesar de sua precisão e perfeição – que começam a ser demonstradas – o narrador não anda ao seu lado. O narrador percebe a falta de Bárbara na personalidade de Ângela, sendo seus traços angélicos complementares à sua natureza assexuada, que se demonstra mais tardar no romance.

É possível considerar Ângela como uma personagem deuteragonista por ser ela uma personagem secundária cuja relevância se dá por sua relação com o personagem protagonista. Contudo, de certa maneira é possível pensar que Ângela divide tal posição com a figura de Bárbara, facto que pode ser refutado se considerarmos Bárbara e Ângela como uma dentro da outra.

Ainda considerando sua relação com o narrador-personagem, poderíamos intitular Ângela como uma antagonista, posto que suas características morais, sociais e culturais costumam destoar completamente das de Daniel. Há um abismo entre Ângela e Daniel que pode ser percebido através das teorias de Lucrécio.  O poeta romano é muitas vezes referido como “o seu poeta” (de Ângela), que trata de viver na prática suas ideias e ela é uma espécie de sua mensageira. Ela deixa que tais concepções dirijam sua vida, seja no clamor contra a paixão, nos concelhos às amigas sobre a melhor forma de conceber, à frieza no ato sexual. Tais concepções podem ser percebidas em suas características físicas e é exatamente essa leitura de Ângela acerca de Lucrécio que inquieta Daniel e acaba por torna-los opostos. Daniel se irrita com a possibilidade do poeta estar correto em sua teoria naturalista e prática, o que é simbolizado no corpo de sua antiga amante na mesa fria da anatomia, na objetificação da literatura dentre outros, mas especialmente na forma amarga em que Daniel admite a possibilidade de amar Ângela através do hábito. (“[...]No seu modo de não perderes tempo e de só conheceres a linha recta na tua geometria. E eu fui aceitando no meu abandono de cão. O ambos reconhecermos que tudo estava decidido no eterno e só tínhamos de nos pôr de acordo.”; “Não vos prego contra o amor mas contra a paixão. E o amor cria-se no hábito de amar”; “E tudo isso se consolidou com os anos, o seu amor ou o que era ia-se depositando com eles e um dia que friamente me propuseste a separação é que vi, fiquei bloqueado de pânico”). Poderíamos, ainda, considerar Bárbara uma figura de substituição de ou complementação de Ângela no subconsciente do narrador (“[...] O que eu amava nela tinha um interior que eu nunca amara.”  “Ângela, querida, deixa-me dizer tolices e ser estupidozinho enquanto Bárbara não aparece para ser mais sensato e ele levar tudo consigo. Deus foi bem cínico, dando-me só sua ficção”).

Durante os séculos XVIII e quase completamente o século XIX, as personagens eram apresentadas através da construção de retratos que explicitavam suas características fisionômicas, temperamentais, de forma mais ou menos minuciosa. A partir da obra de Dostoiévsky e com o surgimento do nouveau roman, escritores como James Joyce e Virginia Woolf desenvolveram personagens sem coerência ética, descentrados e complexos, ou seja, com um retrato escasso. No caso de Ângela, a personagem pode ser considerada um assemontema, uma vez que passa a adquirir significação ao longo da trama através de suas falas, ações, opiniões e ainda de suas diferenças e afinidades com as diversas personagens – em especial sua oposição com o narrador e sua filha, Luzia.

É a partir da análise dos nomes escolhidos que começa-se a notar a relação de Ângela com as demais personagens da trama. O nome da própria, por exemplo, variante feminina de Ângelo, tem origem grega, Ággelos (mensageiro) e deriva do latim Angelus que significa anjo.  Nos romances, o nome funciona como uma sugestão sutil da personagem, como se “a relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico) fosse intrínseca”.  As feições físicas de Ângela acabam por casar com a definição de seu nome – sua pele branca, cabelos louros, olhos claros – e de certa forma contrastam com as características de Bárbara. Ângela, à primeira vista, é uma figura menos invasiva que Bárbara; é serena, calma, contida. Em meios às anacronias do narrador (suas analepses e prolepses), percebe-se a calmaria de Ângela perante momentos árduos de sua vida (“E ela disse-me o Luc. Calma. Tensa”), sua capacidade de controlar a ordem e manter-se impassível. Em sua figura durante as analepeses já tem-se essa impressão no seguinte trecho: “E eu beijei Ângela longamente na boca por detrás da sua imagem presença. Mas ela não se alterou, só um leve rubor na face [...]. E ergueu-se logo e foi-se embora e eu fiquei só, a entender”. Tal como seu nome sugere, a personagem mantém uma atmosfera angelical de autocontrole, de serenidade e, de certa forma, de racionalidade. Diferentemente de Bárbara, Ângela não parece despertar no narrador um furor interior ou uma paixão avassaladora (posto que era contra a paixão), mas uma inquietação que beira a curiosidade e vem a esbarrar no Amor, causada exatamente por essa sua capacidade de ordem. Daí a dificuldade de Daniel traçar uma linha que separe seu encantamento de seu amor por Ângela (“Gostava de saber porque te amo nesta forma estranha de te não ter amado nunca. Houve primeiro a ausência de Bárbara em ti que deixara um sinal de presença como uma flor seca num livro.”).

“Ângela, minha querida. Tinhas o rigor do universo intercalado ao teu ser, o rigor da órbita de um astro. Uma coisa assim. Certa fria precisa. Perfeita. Devo dizer-te que às vezes tua frieza, precisão me arrepiava um pouco, serias tu metalizada, feita nítida do metal? Às vezes. Mas havia depois a tua bondade láctea[...] a doçura que eu te lá punha para depois a ir lá buscar, não sei. Havia uma ligação a ti sem paixão, gosto do teu ser de porcelana que todavia aquecia sem arrebatamento”.



A relação de Ângela com seus filhos também se dá na esfera dos nomes. Ela demonstra os mesmos traços de personalidade em seu papel de mãe e mantém com eles uma relação didática. Com seu filho Luc, tenta aplicar as teorias epicuristas de seu poeta preferido – que empresta o nome ao filho – a partir das respostas aos questionamentos inicialmente infantis de Lucrécio. Lucrécio, que pouco ou nada tem em comum com o filósofo romano, funciona para Ângela como uma “prática da teoria” (“-Lucrécio! Disse o seu nome inteiro como nunca fizera e quem ela chamava não era o nosso filho”). É principalmente em Luc que ela projeta as teorias de De rerum Natura, de cunho extremamente científico-existencialista – o que contrasta belamente com seu nome – e é seu discurso, sua mensagem, em que expõe pela primeira vez uma percepção acerca do tema do suicídio – uma quase justificativa do posterior feito do filho (“Non potius vitae finem facis atque laboris”).

No que diz respeito à filha Luzia (chamada sugestivamente de Luz), é preciso ter o conhecimento do significado do nome. Luzia tem origem no grego, significando “a luminosa” ou “a que irradia luz”. Em praticamente todos os momentos em que se encontra a personagem Luz na obra, a figura está a irradiar a luz do flash de sua câmera fotográfica. Também é importante salientar que Luzia dá o nome à santa da Igreja Católica protetora dos olhos e/ou da visão, cuja representação enquanto imagem é a de segurar um recipiente com dois olhos pousados. Através da noção que temos da passagem de tempo e da fixação de Luzia como uma fotógrafa quase profissional, no desenrolar desses acontecimentos mais cega fica a personagem de Ângela. Não há na obra muitas indicações da relação de mãe e filha, mas é perceptível a dicotomia existente entre elas. Luz leva uma vida muito mais desordenada e de certa forma sem coerência, instigada e guiada apenas pela curiosidade do grotesco e do feio, que registra em suas fotografias. Diferentemente dos ideias político-sociais de Ângela, estabelecida na linearidade e na ordem. (“Quantos foram? Ó mãe, sei lá, e que te interessa saber? Estão para aí. Doze, quinze. Tantos, disse Ângela. Têm de durar pouco para morrerem a tempo, disse a Luz”).

Outro fator que demarca a construção de Ângela está relacionada à sua postura didática e temporal. Seus atos constantemente sugerem algo de cronológico e lógico. Em diversos momentos da obra, Ângela age de acordo com o relógio, sem pressa mas sem também perder tempo, aplicando tal filosofia à todos os setores da vida – o de mãe, o de esposa, o de professora (“[...]não perdia tempo nem era curiosa de saber o que se passava noutro sítio. E também não gastava muito tempo em ter razão depois de a ter”). Dentro dessa cronologia existe certa linearidade perfeccionista que parece conduzir sua vida, de forma que nada saia dos trilhos, se adiante ou se tarde. A sua firmeza de espírito também vem para compactuar com sua necessidade de organização – a decisão do casamento, a ordem dos filhos, os estudos literários, todos planejados de acordo com um calendário vivencial. Tudo isso fruto de sua natureza prática (“E aí Ângela despachava uma resposta a martelo para não haver mais chatice. Sabia a verdade natural das coisas, não lhe interessava muito o que estava atrás delas.”).

Sobre Ângela, conclui Maria do Céu Fialho: “[...] Ângela, a classicista, o peso opressivo e ordenador de instituições e cânones que suportam mas abafam também o quotidiano e o esvaziam de criatividade, o desgaste do homem na banalização e esvaziamento referencial das suas próprias raízes. Mensageira sem vida de coisa nenhuma. Ε esse o sentido da sua beleza baça, amorfa e estandardizada.”

Ângela é marcada durante todo o romance por suas caraterísticas sugestivas de tempo cronológico e organização e também da didática aplicada durante sua vida, para além da profissão, mas também no trato familiar. A dificuldade do narrador em traçar uma linha tênue entre o que seria o amor – criado pelo hábito – e o que seria a ausência de Bárbara em Ângela, criando assim uma admiração apoiada na curiosidade, é explicada a partir do momento que se toma conhecimento do tempo da escrita: o da solidão de Daniel, já na velhice, após a morte da esposa.

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MARINA RUFO SPADA BOYD:  tem 23 anos, é jornalista formada pela Universidade Estadual Paulista e cumpriu Estudos Literários na Universidade de Coimbra, Portugal. Nutre grande paixão pela Literatura Clássica e pelo Realismo Fantástico.




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