Milena Jesenská, muito além de namoradinha de Franz Kafka
Por Juan Bonilla
Milena Jesenská e Staši Jílovská, em 1925. |
Eis um livro
maravilhoso: emocionante, perturbador, difícil de esquecer. Foi escrito por Margarete Buber-Neumann e a edição mais recente publicada no Brasil data de 1987.
Intitula-se Milena; nome, portanto, mais
adequado que o Milena, a amiga da Kafka,
com que foi publicado noutras traduções ao redor do mundo. Aliás, não haveria
título mais injusto para uma obra em que Kafka aparece apenas num capítulo – comovedor,
sem dúvida – apesar de Milena ser correspondente do escritor, de quem traduziu
sua obra para o tcheco e com quem manteve uma relação sentimental que ele, por temer
a vida, por sentir-se “perdido no abismo de Milena”, tratou de não levar adiante.
Os leitores, entretanto, desprovidos do nome famoso justaposto ao de Milena, construirão
uma imagem melhor elaborada dessa personagem, sobre sua vida, sua garra, sua escrita,
por si só significativos ao ponto de Buber-Neumann ter-lhe dedicado este livro que
independe do lugar do autor de A
metamorfose ao seu lado.
Buber-Neumann
conheceu Milena Jesenská no campo de concentração de Ravensbrück, em 1940. Comunista
foragida da Alemanha, a escritora tentou chegar à União Soviética de Stálin, mas
foi parar num campo de concentração de Kazajistán, onde os soviéticos haviam-na acusado
de espionagem contrarrevolucionária. O pacto Hitler-Stálin permitiu aos soviéticos
entregarem-na para a Gestapo. Depois se tornou amiga de uma mulher alta, que
parecia não ter o menor medo nem respeito pelos carcereiros, que emanava uma insólita
alegria num cenário tão lúgubre, que se atrevia a contrariar os guardas – e ao
mesmo tempo contrariava muitas outras presas que não viam com bons olhos
aquelas desafiadoras dos nazistas. A amizade, como em todo campo de concentração
cresceu em pouco tempo: Milena chegou a fazer alguma loucura, como deixar seu
barracão de madrugada só para ficar até tarde conversando com sua amiga alemã. Chegou
a propor que escrevessem juntas um livro tão logo o pesadelo acabasse: A época dos campos de concentração.
Buber-Neumann
era na verdade prussiana e muito contrária à expressão gratuita das qualidades
emotivas mas ficava fascinada que a boemia Jesenská falasse com tanta
naturalidade delas, das suas dores, alegrias, felicidades, amores. E foi assim,
em noites clandestinas, fugindo da vigilância não só dos soldados que faziam a
paisana no campo de concentração mas das demais presas, que Milena e Margarete
foram contando suas vidas.
Quando a primeira
se abatia, Margarete sempre dizia que o que mais lhe alegrava findar seus dias em
Ravensbrück era por haver lhe encontrado: “Sei que ao menos tu não me esquecerás,
que poderei continuar vivendo em ti e dirás aos demais quem fui”. E a isso se dedicou
Buber-Neumann enquanto pôde. Além deste livro escreveu outro denunciando os
totalitarismos: no fim de tudo podia dizer que havia sido prisioneira de Stálin
e de Hitler e sobrevivido aos dois. Sentia-se, portanto, suficientemente preparada
para escrever o livro sobre a época dos campos de concentração tal qual Milena
havia sonhado escrever.
Milena
pertencia a uma família da alta burguesia tcheca. Seu pai era médico e com ele
sempre manteve uma tensa relação. O livro é tomado de detalhes preciosos que por si
só conseguem desenhar a personalidade de uma mulher que era perfeita
representante da juventude de seu tempo em seu país, ansiosa por liberdade, posicionada de costas
para a tradição e as imposições colocadas pela sociedade contra as mulheres.
Quando sua mãe
morreu, Milena tinha apenas 13 anos. Decidiu, então, que antes de tudo precisava demonstrar-se para si como uma adulta e vai a um hotel muito pobre a fim de
ficar sozinha com seu próprio duelo, escutando o que se passa nos demais quartos,
as brigas, os gemidos, o ruído da vida ao redor. Também precisava experimentar
de tudo um pouco: às vezes, apenas para ver como se alterava a consciência, provava as drogas que roubava do consultório de seu pai. Havia sido educada num colégio de
maior préstimo na Tchecoslováquia, um instituto feminino de humanidades clássicas
que dava a quem aí estudava o apelido de minervistas,
representantes da liberação feminina, pois o Instituto Minerva foi alma mater de muitas das mais
prestigiadas vozes femininas da cultura tcheca.
Alternando
os episódios do campo de concentração com o relato sobre a vida de Milena,
Buber-Neumann encontra um método eficaz para erigir um autêntico monumento à sua
personagem. Narra seus amores de juventude, a maneira como se envolve com a
boemia tcheca e se apaixona por Ernst Polak, um conquistador com quem se casa e
vai morar em Viena, enquanto ele acaba esquecendo-se dela para se dedicar a novas
mulheres. Como Milena passa mal em Viena não só emocionalmente mas porque
também vive na pobreza resultada do abandono de seu marido é digno de um filme
dramático da era dourada de Hollywood – que ainda tardaria muito a chegar. Uma
amiga rouba uma joia para ela, que vende o produto para conseguir o mais elegante
dos vestidos com o qual vai ao café onde o marido vivia para conquistar novas
mulheres e lhe prega o mesmo papel com os homens que frequentam o lugar e se
perde em conversas demoradas com filósofos, poeta e escritores; um café onde ia
toda noite sem que seu marido lhe desse a mínima atenção até a ocasião em que
ele descobre tudo, se propõe a reconquistá-la e ao que ela responde com bofetada e
o abandono do casamento.
Era 1921,
Kafka já está enfermo. Foi quando Milena o descobre numa revista e em seguida
decide traduzir seus textos do alemão para o tcheco e envia-os para seu editor.
Quem contesta a atitude é o próprio escritor que inicia então uma correspondência
que, com toda justiça, está lado a lado com os principais títulos da sua
bibliografia.
Kafka não
fala sobre Milena apenas nas cartas trocadas entre eles; também fala muito dela
nas missivas com Max Brod, onde diz: “Milena é uma chama que só arde para Ernst
Polak”. Os dois se encontraram várias vezes. Ela foi quem incentivou os encontros
e a partir deles o escritor viu o abismo a que estava condenado. As páginas em
que Milena descreve sobre ele são uma autêntica lição para entender a personalidade
do escritor. Quando da sua morte, escreveu um magnífico obituário que foi
reproduzido por Buber-Neumann em seu livro.
Este livro, Milena, é mais importante que a própria
obra da personagem aí retratada; sua autora compila uma diversidade de artigos
próprios, quase todos simplesmente antológicos. Há aí nomes de grande envergadura:
Karl Krauss, o arquiteto e desenhista das vanguardas tchecas Karel Teige, o
poeta Nezval...
Mas são apenas
isso, nomes prestigiados que dão um pedestal à tenacidade, à personalidade e à
garra de uma incansável Milena Jesenská. Uma mulher livre que descobre o comunismo
aos 30 anos: envolvida como estava com um arquiteto da vanguarda tcheca, as cartas
que este envia da União Soviética, para onde foi morar contratado pelo governo,
deixam intuir que o comunismo é um sonho irrealizável e que URSS é a tumba
desse sonho.
Logo chega o
pesadelo alemão (escreve um artigo muito bonito sobre a terra de ninguém que
separa Tchecoslováquia da ameaçadora Alemanha nazista, sobre a fronteira que se
criou antes do início do pesadelo: uma criança jogando, diz, poderia destruir
essa fronteira absurda feita de cordas atadas às árvores). E depois o campo de concentração
do qual não sairá e onde encontrou um ouvido amigo que cumpriu sua promessa: “Não
me esqueças, diz aos demais quem fui”.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma versão livre de "Milena Jesenska, mucho más que una novia de Kafka", publicado no jornal El Mundo. O livro Milena foi publicado no Brasil pela Editora Guanabara.
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