L’amour, de Michael Haneke
Por Maria Vaz
Quando se pensa em assistir um filme de amor, normalmente somos levados
pelas vicissitudes de uma sétima arte mais comercial a ver uma comédia
romântica de Hollywood em que duas pessoas se conhecem, passam por uns
problemas e tudo acaba com uma espécie de ‘foram felizes para sempre’. Quem
nunca caiu nessa armadilha idealista? Eu já. Há dias assim, em que tudo o que
precisamos é de voltar a acreditar no amor. Sem pensarmos bem no que seja essa
palavrinha, tão pequenina e banalizada. Um sentido perdido? Um misticismo para
os que se deixam levar pela beleza de uma face que sempre enruga, de um corpo
que um dia não irá mais para a academia, de um glamour que não se tem ao
acordar, nem quando se lida com situações-limite que sempre batem à porta da
existência. Será o amor o mero esbarrar químico de dois corpos que se dão bem,
mas que só trazem inseguranças, complicações e desconfianças? Os mais realistas
acharão que o amor é isso – os corpos – e que o resto é devaneio ou misticismo.
Nunca nada me soou tão mal e de forma antagónica. O realismo não se faz só de
formas físicas. Faz-se de actos, convívios, cumplicidades, conversas, compaixão
ante um ou outro erro, de ouvidos sempre disponíveis. Faz-se também,
evidentemente, de sensualidade e de outras trocas. De imaterialidades ilógicas.
De sentimentos e sentidos.
Num tempo rendido aos cultos falaciosos do ego, a adaptações de
personalidade e técnicas para impressionar em imagens-máscaras do ‘eu’, as
relações tornaram-se uma espécie de ‘fast food’ em que quase ninguém mostra
aquilo que realmente é. O ‘eu amo’ tornou-se uma espécie de cláusula geral de
agradabilidade. Obviamente que depois as máscaras caem e rapidamente as coisas
acabam. Não assumir a personalidade parece-me um erro que conduz à
auto-repressão. À descaracterização. Ao sufoco. E a uma bomba relógio de intolerância
e escape que conduz à necessidade de libertação.
Mas afinal o amor não existe? É mero misticismo? É um devaneio de
idealistas? Claro que não. De uma forma brilhante e realista, Michael Haneke
mostra-nos isso. Que ele existe. Que é tão real, que é visível nas pequenas
coisas. E ilustra, de forma expressiva, o quão grandes essas pequenas coisas
são. Com esses laços subtis originou L’amour, um filme de 2012, que lhe valeu
uma Palma de Ouro, em Canes, um Globo de Ouro e um óscar de melhor filme
estrangeiro em 2013.
Os diálogos brotam de um sotaque francês romântico, a criar contraste
com o drama que nos expõe. Conta-nos a história de um casal de idosos (Anne e
Georges), a viver em Paris, rodeados pela arte que parecem ter privilegiado
durante as suas vidas. Entre pequenos-almoços, pequenas tarefas e os sons do
piano revelam-se muitos actos de cuidado, de carinho, de demonstração de afecto
sem palavras. Sem persuasões, nem ilusões. No desvelar de intenções em factos.
Obviamente que nem sempre esses cuidados foram necessários. Obviamente
que a relação que evidenciam é fruto de outros tempos em que se divertiam mais
do que se cuidavam. De cumplicidades. De outras primaveras, em que exploravam
outros prazeres além das artes. Quem o diz é a filha – a única filha do casal,
que vivia noutro país –, a certa altura do filme. De forma expressiva, reflecte
alto, para consigo mesma, enquanto afirma que, desde pequena, quando os ouvia
da sala entre prazeres sensuais, achava que eles se amavam e que ficariam
juntos para sempre.
Mas a vida passa e Heneke expõe-nos o que fica quando a juventude vai.
Quando a beleza desvanece e permanece o brilho no olhar. Quando o corpo
enrugado ainda aprecia a personalidade do outro. Quando conseguem partilhar
pequenos prazeres em comum. Mostra-nos também que a saúde nos prega partidas.
Que começa a falir. Que a degeneração traz consigo o sofrimento. Que o corpo
não é mais o mesmo – se torna imensamente frágil. E que, inclusive, a própria
consciência pode aumentar a dor ante a impotência em face de Cronos.
Anne é submetida a uma cirurgia e fica com um lado do corpo paralisado.
Georges cuida dela de forma zelosa e delicada, alimentando a esperança de que
tudo melhoraria. Contudo, com o passar do tempo, tudo piora. O sofrimento
aumenta vertiginosamente. O desespero aflora até ao limite da dor. A dor física
de Anne alimenta de forma irreversível a dor psíquica de Georges, que sofre por
osmose na angústia da impotência. Contudo, não foi embora. Não abandonou Anne.
Manteve-se paciente e forte até a realidade cruzar os seus limites de
tolerância.
Georges decide, então, colocar termo ao sofrimento dos dois. Aí, o
filme surpreende-nos com uma ‘alucinação’ final daquilo que seria a vida
espiritual de ambos. Georges acorda e encontra Anne na cozinha à sua espera,
enquanto lava a loiça, para saírem a passeio, com os cuidados normais que
cultivavam um pelo outro ante o frio de Paris em pleno Inverno.
Entretanto a filha de ambos chega a casa, vazia, perdida na sua apatia
ante os vazios que não esconde pela expressão. Vinha de preto. Perdida na
divagação silenciosa ante os livros empoeirados, os cd’s e o piano que dava
alma à sala. E assim terminam duas vidas, uma história não tão rara. De que ela
foi fruto. Será o amor eterno? Pela vida, a memória, a comunicação, o que fica
da passagem.
Entre o que se retém da história de Georges e Anne sobra um aplauso a
Haneke pela capacidade invulgar de nos fazer mergulhar em um mundo de emoções
profundas e, às vezes, contraditórias em que se cruza a existência. De forma
expressiva e verosímil. Pode o amor levar à morte? Ou, como escreveu Neruda, “Si
nada nos salva de la muerte, al menos que el amor nos salve de la vida”. Talvez
seja como a música, que o casal tanto gostava, um anestésico natural para os
sentidos.
L’amour fala de uma história que resiste ao tempo, à doença e à morte.
Cheia de provas, mas inseparável. Incondicional. Se fosse um drama na Grécia
Antiga, seria um amor tão forte relativamente ao qual Deus algum nada poderia.
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Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
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