Juan Goytisolo
Certa vez,
numa crônica em homenagem a Juan Goytisolo publicada na revista Espacio / Espaço escrito, José Saramago
se referiu ao escritor espanhol como dotado “por uma consciência muito clara, e
não raro dolorosa, da responsabilidade de cada ser humano perante si próprio e
perante a sociedade, tomada esta, não como uma abstracção cómoda, mas na sua
realidade concreta de conjunto de indivíduos e de pessoas”. Certamente, outra
definição mais atenta e satisfatória que essa ficará por ser escrita sobre uma
das vozes mais ativas e incansáveis – seja na construção de uma obra ampla e
heterogênea, seja na maneira como se posicionou ativamente em nome de uma revisão
da história do homem e da humanidade, perfazendo um lugar muito caro a qualquer
intelectual, o do engajado politicamente.
Em 2014,
seis anos depois de aposentar-se da escrita ficcional, Juan Goytisolo ganhou o
Prêmio Cervantes, o mais importante das letras em espanhol. O romancista barcelonês,
um dos autores mais cervantinos da literatura espanhola recente, recebeu o
galardão em Alcalá de Henares usando a única gravata que tinha no armário e
dedicando seu discurso aos habitantes da medina
de Marraquexe, seus vizinhos desde que para ali se mudou em 1997 com a família
de seu amigo e companheiro Abdelhadi. Até esse ano, e desde 1956, seus vizinhos
eram os imigrantes do Sentier parisiense, o bairro em que viveu com sua companheira,
a escritora francesa Monique Lange. Em Paris ficou depois de abandonar para
sempre Barcelona, a cidade onde nasceu em 5 de janeiro de 1931.
Se a morte
de Lange, ocorrida em 1996, marcou sua velhice e inspirou o romance que conclui
sua obra narrativa – Telón de boca –,
sua infância esteve marcada por outra morte igualmente dolorosa: a de sua mãe,
Julia Gay, em 1938, durante um bombardeio da aeronáutica franquista sobre a Cidade
Condal. Aquela desaparição o deixaria aos cuidados do pai ele e os irmãos (Marta,
José Agustín e Luis) e funcionaria como um hiato sentimental na obra dos três
homens quando estes se converterem em escritores.
“A morte da
mãe num bombardeio a Barcelona durante a Guerra Civil, deve ser uma das
determinantes da extraordinária vocação intelectual e literária de Juan
Goytisolo. A casa rui, a mãe morre e os filhos, Juan, José Agustín e Luis pedem
explicações não à história e nem sequer à política, mas à linguagem. A língua
espanhola é fecunda em desamparos, não está feita para amparar mas para recusar.
Mas os três irmãos fazem seu o espanhol para reconstruir a casa, devolver a
palavra à mãe, e fazer, cada um deles, caminho” – compreende Julio Ortega sobre
as origens de Juan Goytisolo na literatura.
Juan Goytisolo e Jean Genet |
Estreante como
escritor nos anos da literatura social do pós-guerra – seu primeiro romance, Juegos de manos, é de 1954 – Goytisolo sempre
estabeleceu uma relação direta entre seu abandono do realismo e o assumir de
homossexualidade. A contar essa evolução pessoal, recordando a infância, consagrou
nos anos oitenta do século passado dois magistrais livros autobiográficos: Coto vedado e En los reinos de taifa.
O verdadeiro
divisor de águas de sua obra é, sem dúvidas, o romance censurado na Espanha até
o fim da Era Franco cujo título provisório saiu de um verso de Luis Cernuda,
referência intelectual para Goytisolo junto com nomes como José María Blanco
White ou Américo Castro: Mejor la destrucción,
el fuego. O livro foi publicado no México em 1966 com um título que faria
sucesso: Señas de identidad. Com trinta
e cinco anos, Goytisolo mudava a narrativa tradicional em terceira pessoa por
uma sorte de “verso livre narrativo” em que se mesclam as pessoas verbais, os
tempos e os materiais até formar uma collage
de estirpe vanguardista.
“Señas de identidad nasce da insatisfação
com meu próprio trabalho”, dizia. “Com os primeiros livros havia cumprido meu
dever de cidadão, mas não como meu dever de escritor: devolver à literatura
alto diferente do que havia recebido. Sem a ideia de novidade não há obra
verdadeira e eu não havia tocado no cânone literário”.
Romances como
Reivindicações do conde Julião (um
dos poucos livros de Goytisolo no Brasil), Juan
sin tierra, Makbara, Las virtudes del pájaro solitario ou Carajicomedia recorrem à experimentação
formal para abordar assuntos tão tradicionais como as misérias políticas e
literárias espanholas, a tradução sofista ou a mística sanjuanista. Em paralelo
às narrativas em prosa e fruto de seus trabalhos para o jornal El País, Goytisolo foi publicando em
forma de livro suas reportagens sobre Argélia, Tchetchênia, Sarajevo e a guerra
dos Bálcãs. Além de se ocupar da face mais heterodoxa, libertina da tradição
hispânica – de La Celestina à La lozana andaluza –, construiu uma
série de documentários para a Televisão Espanhola Alquibla que divulgava a cultura muçulmana. Sempre teve a honra de
ser o primeiro escritor espanhol que falava árabe desde Arcipreste de Hita.
Goytisolo
vivia em Marraquexe com o que ele chamava sua “tribo” – família de Abdelhadi –
mas nunca deixou de viajar a Paris para visitar a filha e a neta de Monique
Lange ou a Barcelona para fazer a mesma coisa com seus sobrinhos, sobre os
quais sempre falava com uma devoção duplamente comovedora para alguém pouco
dado às efusões. “A heroica editora Ruedo Ibérico, a redação da revista Libre, o terraço de um café, as ruas
onde transitava para colocar num próximo romance, a Paris do mito terceiro-mundista, ocupada por línguas e
mitos. Embora Juan fosse reflexivo e sóbrio (como Cortázar, García Márquez,
Fuentes e Vargas Llosa, odiava a fofoca que logo Cabrera Infante colocaria em
moda), gostava das ironias paradoxais e acreditava nas justas causas”, recorda
Julio Ortega.
Em 2008,
Goytisolo publicou El exiliado de aquí y
allá, uma sequência – “talvez desnecessária”, dizia – de Paisajes después de la batalla, seu romance mais parisiense. Quatro anos
mais tarde, veio a lume uma breve coleção de poemas: Ardores, cinzas, desmemoria. Em março de 2015, semanas antes de receber
o Cervantes das mãos do Rei Felipe VI, depositou na Agência Balcells um livro
inédito com a ordem de que só venha ser publicado dez anos depois de sua morte.
Quando lhe perguntavam pelo conteúdo da obra, o escritor respondia laconicamente
que se tratava “de assuntos sociais e pessoais”. Nunca uma resposta tão breve
terá retratado tão bem a obra de alguém que cruzou até o fim suas ansiedades
pessoais com as de seu tempo.
A saga dos Marx é outro livro de Juan
Goytisolo publicado no Brasil. Escrito em 1993, o livro, lembra Lucas Deschain,
“foi concebido em um período muito significativo para sua compreensão, pois
fazia apenas dois anos que a União Soviética tinha sido oficialmente desfeita,
quatro anos que o Muro de Berlim fora derrubado e que uma onda de pessimismo e
descrença havia se abatido sobre os entusiastas do comunismo e da revolução. É
possível apenas imaginar que tipos de sentimentos e sensações passavam pelo
arquiteto teórico da sociedade comunista. Goytisolo abusa de uma metalinguagem,
já que um dos personagens do livro está justamente escrevendo um romance sobre
a família Marx, tanto que no início são apresentados os membros da família para
que o leitor possa se situar melhor. Marx é entrevistado pelo autor (nem tão)
misterioso, que lida, além de toda a ressaca pós-queda do Muro, com os prazos
de seu editor, com as intempéries vividas pela família Marx (que alterna cenas
passadas no século XIX com cenas ficcionais de seu cotidiano no contexto do
século XX), por uma feminista acusando Marx de ser um machista de concepções
patriarcais e assim por diante.
O livro
consegue traduzir bem a pilhagem que sobreveio ao ‘fracasso’ da sociedade
concebida por Karl Marx, em que todos pareciam querer apontar críticas e
construir teorias sobre o sucesso do capitalismo e o já esperado destino de
fracasso do comunismo. Observações descabidas de vários personagens, tanto da
época de Marx como do presente do autor, pontuam a obra e delineiam a
verdadeira balbúrdia tragicômica que tomou conta dos debates mundiais:
acusações descabidas, afirmações absurdas, reclames de profecias supostamente
proferidas etc”.
Carlos Fuentes, José Saramago e Juan Goytisolo. |
“O perfil
literário de Juan Goytisolo é, desde todos os pontos de vista, o de um escritor
insólito. Como narrador, soube afastar-se cedo dos modelos dominantes na
literatura espanhola e seguiu desde então seu próprio caminho, solitário,
independente caminho”, assinala Andrés Sánchez Robayana. Os títulos aqui citados
são provas de que sua tarefa enquanto escritor não se restringiu à construção de
um caminho próprio mas o do intelectual que conhecedor de seu lugar, busca não se
aceitar resignadamente os modelos da tradição, mas a renova. Um compromisso crítico
que empreende uma cuidadosa e difícil revisão dos conceitos herdados em matéria
de valores literários e de sua história criativa.
“Goytisolo
sorria ao afirmar com ironia que, nessa revisão, sua referência fundamental era
a Historia de los heterodoxos españoles,
de Menéndez Pelayo: os heterodoxos condenados eram precisamente os autores que
fazia falta ler e reler. É admirável, deste modo, sua reinvindicação de um
livro como La lozana andaluza ou o Cancioneiro de obras de burla provocantes a
risa. Não se pode negar, neste ponto, o exemplo que para Goytisolo representaram
os historiadores como Américo Castro ou Francisco Márquez Villaneuva. Eles lhe
ensinaram o caminho, a necessidade de outra forma de ler, incluindo nessas
leituras e releituras, claro está, o mesmo Quixote,
quase sepultado sob uma bibliografia que havia renunciado a ver a fascinante
modernidade de seu texto inesgotável. Inclusive num ensaio como Medievalismo e modernidade: el Arcipreste de
Hita y nosotros não deixou de insistir na obrigação ética (e estética) que
todo bom leitor tem em relação aos clássicos de sua língua, esses clássicos
vivos, mais vivos do que pensamos quando conseguimos comprovar que, como dizia
Focillon, com eles ‘volta a começar, perpetuamente um formidável passado’”, recorda
Andrés Sánchez. Devemos, para voltar a Saramago, a Juan Goytisolo tanto uma
singular obra literária como um compromisso moral com os debates mais caros à
literatura e à vida, se é que é possível separar uma e outra.
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