Juan Goytisolo em seu amargo final
Por
Francisco Peregil
Há três anos Juan Goytisolo contava apenas com
poucas condições para subsistir. Era impossível custear os estudos de seus três
afilhados, algo que havia se convertido na razão de sua vida. Faltavam-lhe as
forças para escrever uma grande obra e em abril de 2014 escreveu a seguinte declaração:
“Minha decisão de recorrer à eutanásia a fim de não prolongar inutilmente meus
dias obedece a razões éticas de índole pessoal. Desaparecida a libido e com ela
a escrita, comprovo que já disse o que tinha de dizer. Tampouco meu corpo dá
para mais. Cada dia constato sua deterioração e antes que esse declínio afete
minha capacidade cognitiva prefiro antecipar minha ruína e despedir-me da vida com
dignidade”. E continuava: “A outra razão da eutanásia é a de assegurar o futuro
dos três meninos cuja educação assumo. Parece-me indecente gastar de maneira
errada os recursos limitados que disponho, e que diminuem diariamente, em
tratamentos médicos custosos ao invés de destinar este dinheiro para completar
seus estudos. Por tudo isso, escolho livremente a opção mais justa conforme a minha
consciência e em respeito à vida dos outros”.
Goytisolo escrevia sempre a mão e a mão
assinou o documento. Passou-lhe ao seu cuidador, a pessoa que transcrevia
muitos de seus textos, Rafael Fernández, um professor do Instituto Cervantes de
Marraquexe que morreu de câncer neste mesmo ano. Goytisolo estava obcecado com
a educação de seus três afilhados: Rida, que agora tem 23 anos; Yunes, também
23; e Jalid, 18. Rida é filho de seu grande amigo Abdelhadi e os outros dois
são filhos de Abdelhaq, irmão de Abdelhadi. Todos eles, além da esposa de
Abdelhaq, viviam com Goytisolo num antigo hostel que o escritor comprou em
1997. Formam o que ele chamou de sua “tribo” e sua tribo cuidou dele até o fim
da vida.
Em 2004 começou a passar por dificuldades econômicas.
O então diretor do Instituto Cervantes, César Antonio Molina, facilitou turnês
de conferências na instituição e intercedeu para abrirem-lhe cursos de verão. A
partir de 2007, o jornal El País
passou a lhe pagar os 250 euros que cobrava por artigo com um custeio mensal de
3 mil euros. Recebeu o salário no Marrocos até os últimos dias, embora não mais
escrevesse. “Uma vez descontados os impostos, restavam-lhe 2.200 euros, o indispensável
para viver”, sublinha alguém próximo do escritor. As fontes que aparecem neste
texto sem nomes solicitaram expressamente manterem-se no anonimato.
Em 2014, Goytisolo assumia que seu corpo não
dava para mais. Tinha 83 anos, mas o pior estava por vir. Sete meses depois de
escrever o documento autorizando a eutanásia, em novembro de 2014, foi anunciado
a concessão do Prêmio Cervantes, o mais importante em língua espanhola, no
valor de 125 mil euros. O problema é que o escritor espanhol havia se oposto em
várias ocasiões a esse galardão. Em janeiro de 2001, por exemplo, depois do
anúncio do prêmio para Francisco Umbral, Goytisolo publicou um artigo no El País intitulado “Vamos a menos” onde criticava
veementemente o que chamou de “a putrefação da vida literária espanhola” e “o
triunfo do coleguismo protecionista e tribal”.
Goytisolo terminou aceitando o prêmio e esse
fato o afundou ainda mais em sua depressão. Porque continuava sem forças para
escrever e era consciente de que havia se contradito ao aceitar a honraria. Os mais
íntimos do escritor dizem que em nada e nunca se sentiu deslumbrado com os holofotes
e as honrarias. Mas agora que contava com dinheiro para os meninos já não encontrava
sentido de continuar vivo. À véspera do 23 de abril, data da entrega pública do
prêmio em Alcalá de Henares, chamou em Madri um amigo para o ajudasse na compra
de uma roupa. Só dispunha de uma gravata e dizia que não combinava com a camisa.
Quando o amigo chegou ao hotel lhe disse que não forças nem ânimo para sair à
rua. Sua família desejava fazer uma foto com os reis de Espanha. Mas ele estava
perdido que não só se esqueceu da foto, mas que ao concluir o ato reparou que
sequer havia cumprimentado aos reis no seu discurso.
“Nunca cometeu a vilania de dizer que aceitou
o prêmio pelo dinheiro”, recordam. Em 2016, uma pessoa que sabia de sua depressão
o convidou para ir a Paris passar alguns dias. Goytisolo entregou-lhe o documento
da eutanásia. Depois de lê-lo, disse-lhe: “Como amigo te peço que não faças. Porque
estes meninos, além do dinheiro, têm direito de lhe ter por perto. Não se trata
apenas de que lhe pagues a carreira profissional. Dito isto, se quiseres seguir
adiante, então vamos a um cartório e deixamos tudo resolvido sobre tua herança”.
Mas Goytisolo não foi ao cartório. Nessa
mesma noite de início de março chamou Carole, filha de sua ex-companheira
Monique Lange, que morreu em 1996. Carole tinha 56 anos, havia se separado do marido
e pediu uma quantia de dinheiro ao escritor. Ele, que outras vezes havia lhe
ajudado, nesse momento, disse que já não dispunha de dinheiro. Mas, combinaram para
jantar no dia seguinte.
Mas nesse dia, ao meio-dia, Goytisolo recebeu
a notícia de que Carole havia se suicidado. “Nessa noite estive com ele”,
relata um seu amigo, “e foi horrível. Estava ausente, com cem anos a mais. Apenas
podia caminhar. Decidiu voltar a Marraquexe no dia seguinte, sem esperar o
enterro de Carole. A família dela estava muito ofendida pelo fato de que não ficara
para o sepultamento. Mas Juan estava acabado”. O autor de Juan sin tierra voltou então a Marraquexe. Três semanas depois, coincidindo
com a semana santa de 2016, caiu ao descer as escadas do café da praça Yemáa el
Fna onde ia toda tarde. Fraturou o fêmur. Foi internado na Policlínica de
Saúde, onde seu seguro só tinha validade no Hospital de Barcelona.
Como seu empenho era gastar o mínimo de
dinheiro possível para si com o desejo de deixar para os seus afilhados,
Goytisolo fez o possível para sair da clínica em dois dias. Os médicos se
negavam a lhe dar alta, porque padecia de insuficiência respiratória e flebite.
Além disso, sofria umas dores espantosas por causa da ruptura do fêmur. Mas,
saiu do centro clínico. O embaixador da Espanha em Rabat, Ricardo Díez-Hochleitner,
e a consulesa honraria de Marraquexe, Khadija Elgabsi, conseguiram que a clínica
o readmitissem sem pagar nada. Quem o viu sair aquela noite de casa na maca
pelas vielas da medina asseguram que ia mais morto que vivo.
Goytisolo só aguentou três dias no centro
médico. Tentaram convencê-lo a ir tratar-se das enfermidades na Espanha. Chegou
a Barcelona em abril de 2016 e permaneceu um mês internado. Vários amigos,
membros de sua família espanhola, como sua sobrinha Julia – musa do poema “Palabras
para Julia”, do irmão de Juan, José Agustín Goytisolo – e empregados da agência
literária Carmen Balcells se revezaram em cuidados no Hospital de Barcelona e
no centro de reabilitação. Mas, ele quis regressar a Marraquexe.
Esteve vários meses com a mobilidade
bastante reduzida. E em 18 de março de 2017 sofreu um ataque cerebral. Entrou na
urgência da Clínica Internacional de Marraquexe. “Os médicos me disseram que o
mais provável era que morresse já na madrugada”, relata a consulesa honoraria
de Marraquexe. “Mas pela manhã recobrou a consciência e me pediu para falar com
seu amigo José María Ridao”. Por telefone – o amigo estava em Paris – ele contou
como estava. “Falava com uma leve dificuldade, mas sua voz era firme”.
Uma vez mais, Goytisolo decidiu ir embora. Deixou
o hospital em três dias, contra o critério dos médicos. Dois dias depois de chegar
em casa, perdeu a fala e aos quatro, a capacidade de se movimentar. Na madrugada
do domingo, 4 de junho, morreu. Seu companheiro Abdelhadi disse que “ultimamente
tinha dificuldades para respirar, mas morreu tranquilo, em sua cama”.
Este é o drama que carregava em suas costas
o homem com gravata verde que no dia 23 de abril de 2015, durante a leitura de
seu discurso, perguntou: “Quantos leitores do Quixote conhecem as privações e a miséria que padeceu [Cervantes],
sua negada solicitação de ir embora para a América, seus negócios fracassados,
estadia na prisão sevilhana por dívidas, difícil acomodação no bairro malfadado
de Rastro de Valladolid com sua mulher, filha, irmã e sobrinha em 1605, ano da
primeira parte de sua novela, nas margens mais promíscuas e baixas da sociedade?”.
Goytisolo conseguiu reparar na injustiça social
que padeceram todos os membros e ancestrais de sua tribo, condenados à pobreza
e ao analfabetismo. Jalid concluiu um ciclo de formação profissional, Rida
estuda cinema em Marraquexe e Yunes terminou na França os estudos em
engenharia.
Ligações a esta post;
* Este texto é uma tradução livre para “Goytisolo
en su amargo final”, publicado no jornal El
País.
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