Inventário, de Heleno Godoy
Por Pedro Fernandes
Duas coisas chamam
atenção sobre a caprichada edição agora publicada pela Martelo Casa Editorial:
a primeira delas é a celebração de um nome da nossa poesia contemporânea antes
do ponto final de sua obra só colocado se duas tristes circunstâncias se
imprimem, a morte do poeta ou sua desistência da lide com a palavra; a outra é
a demonstração de que um projeto literário de grande envergadura estético-formal
é sempre possível no âmbito de uma literatura que já nos deu tantos nomes de inegável
talento para a criação e logo de contribuição indispensável à formação de um
universo multissignificativo para a consolidação de um cânone nacional capaz de
interpor fronteiras com outros de maior durabilidade e seara na qual todas as obras
que vieram depois não terão deixado de dela se aproximar. As duas coisas são de
grande valia.
Que a obra
ainda é uma possibilidade de tocar a eternidade, esse lugar onde nunca nenhum
de nós e nem mesmo os de presença assegurada num cânone universal alcançaram em
sua plenitude uma vez que o eterno só ao eterno pertence, é fato. Mas, honrar
seu autor ainda em vida é um dos gestos de maior valia porque todo importante
escritor almeja, com a criação de uma obra significativa, o reconhecimento. E uma
antologia aos moldes de Inventário – com
a diversidade de materiais aí reunidos e a qualidade editorial demonstrada – é
uma maneira de homenagem muito bonita. No mais, este trabalho contribui para
a renovação das leituras sobre a poesia de Heleno Godoy, para apresentá-lo aos
leitores que ainda desconhecem sua obra e para servir de ponto ao qual sempre é
possível voltar no intuito de compreender de maneira ampla seu projeto
literário: linhas, temas, forças e obsessões que o modelam e o constituem. “A leitura
deste Inventário permite ao leitor acompanhar
como se dá o fabrico de uma forma própria, o estabelecimento de uma voz reconhecível”,
como bem observa Solange Fiuza Cardoso Yokozawa, no indispensável texto de
apresentação da antologia que é também organizada por ela.
Heleno Godoy
publicou seu primeiro livro, depois de algumas apresentações avulsas em
jornais, em 1968; Os veículos
“realiza muito bem aquilo a que se propõe, ou seja, a problematização, segundo
um paradigma da Poesia Práxis, da ‘área de levantamento’ dos transportes, mas
ainda não atinge a sua forma”, afirma Yokozawa. O que aqui se chama por Poesia
Práxis teve sua origem frente ao universo em formação da Poesia Concreta.
Enquanto os concretistas viam o poema como objeto no qual se preserva todas as
dimensões do signo linguístico, um intuito de desautomaizar a palavra, fazê-la
sair do universo repetível, os poetas do movimento ao qual Yokozawa filia Godoy
propunham que o jogo sonoro, visual e semântico fosse preservado na instância primordial do poema – a palavra. O grande
nome do movimento, Mário Chaime, foi importante não apenas para os da geração
do poeta goiano como para os escritores do chamado grupo Escritores Novos de
Goiás (GEN), ao qual o autor Os veículos
se manteve ligado entre 1962 e 1968. Este grupo foi importante porque criou
naquela cidade uma atmosfera intelectual que contribuiria substantivamente para
a formação de Heleno Godoy.
Além do
primeiro livro, Inventário apresenta
outros seis títulos publicados depois – fábula
fingida (1985), A casa (1992), Trímeros (1993), A ordem da inscrição (2004), Lugar
comum e outros poemas (2005) Sob a
pele (2007) – e três inéditos: O
livro dos pergaminhos (com poemas de entre 1987 e 2001); Dois urubus (com poemas de entre
dezembro de 2004 e junho de 2006) e A
árvore da sombra amarela (com poemas de 2013 a 2015); além de vários poemas
dispersos. Copia-se ainda fotografias sobre a vida de Heleno Godoy e um apêndice
com diversos textos críticos sobre sua obra, caracterizando-se, assim, além de
um observatório sobre o projeto literário do poeta, uma chave de acesso às
pesquisas acadêmicas sobre, o que se completa com uma extensa lista bibliográfica
de textos diversos, desde entrevistas a ensaios, prefácios, crítica literária, traduções,
artigos em livros e jornais mais pesquisas sobre sua obra.
Assim,
melhor nome não poderia receber este trabalho: “inventário”, para além do
significado de levantamento dos objetos e bens acumulados durante uma vida,
possui uma dimensão do inacabado, visto que, por mais que se esgotem as
possibilidades de catalogação não se esgotam as relações envolvidas na concepção
dos objetos e bens. Conforme destaca Miguel Jubé, coordenador editorial da
Martelo, a raiz do termo “inventário” sugere ainda um trabalho de “invenção”,
manifestado na própria maneira como a organizadora encontra para reunir as
obras de Heleno Godoy. Despreza-se a ideia de cronologia, sempre comum em
antologias como estas, na compreensão errada de que toda obra mais recente se coloca
de maneira superior às primeiras produções, para projetar uma dimensão acerca da
coerência de unidade da criação – muito embora os dispersos e os poemas de Os veículos não respondam pela solidificação
da voz poética de Godoy, condição enxergada pela crítica só na retomada do
fazer poético quase duas décadas depois do primeiro livro. A organização
diversa dessa obra é um trabalho de reconstituição dessa voz, pela negativa de
um quadro evolutivo, natureza quase sempre problemática quando o assunto é arte.
Uma
qualidade da obra de Heleno Godoy se mostra na firmeza dessa voz poética, assinalando
um tratamento de laboração da palavra, gesto que o dispõe grande entre os
grandes. A quantidade, dez ou treze títulos (a contar os inéditos citados por
Yokozawa na apresentação de Inventário)
para quase cinco décadas de criação poética, funciona nesse caso como um
termômetro comprovador dessa observação. Zeloso e paciente na espera pelo
estabelecimento de uma voz própria, a estratégia do poeta parece aqui ser o
respeito pelo tempo, único capaz de preservar ou ruir com a fonte poética.
Outra qualidade, herdada da Poesia Práxis, é a capacidade de o poeta congregar
numa só estrutura o estético e sua relação com o entorno não destituindo a
palavra de sua atribuição de revelar e dizer o mundo.
O “modo
particular de dizer e significar o mundo” do poeta goiano é, como sublinha
Yokozawa, apresentado em fábula fingida,
obra que segundo a especialista responde por essa solidificação da voz poética
sobre a qual se fala aqui: “o poema que põe a nu o seu processo de construção;
a apropriação produtiva da tradição; a negação da poesia expressiva e o
entendimento do poema como construção; a recusa do confessionalismo direto e a
busca da figuração de uma subjetividade antirromântica, que, em fábula fingida, realiza-se centralmente por meio do fingimento de base pessoana,
mas, em obras posteriores, encontrará outros modos de fundamentais de
realização; os cortes métricos abruptos e os constantes paralelismos; a recorrência
ao poema-livro”. Inclui-se nesta lista ainda o elemento prosaico, “que ele aprendeu
com Cabral [João Cabral de Melo Neto], mas também muito provavelmente com os
modernistas brasileiros, e reforçou com a leitura de Marianne Moore”; quando recorre
aos tons mais pessoais, observa Yokozawa, Gody “recorre a procedimentos
diversos para fingir, indeterminar, despersonalizar a matéria pessoal [...] sem
egolatria e sem derramamento sentimental, graças a estratégias de ironia e
humor, duas indiscerníveis do riso intelectual e fundamentais para a compreensão
da poesia de Godoy”.
Em certa ocasião
de sua apresentação, Solange Fiuza Cardoso Yokozawa toca numa condição de extrema
valia no debate sobre a poesia na contemporaneidade: a dos poetas afeitos ao
brilho vão da fama, na diluição das distâncias entre o fazedor de versos e o artista do tapete vermelho. Atribui-lhes o
grande ar esnobe dedicado à poesia, ao tratá-la como mero meio a fim de e logo descuida-se de que o
poema nunca pode estar afeito a males como a ordem das coisas tal vendida pelo status quo. Essa observação é importante
porque se volta para o lugar da brevidade e engenhosidade da obra de Heleno
Godoy cujo trabalho com a palavra supera todas as ânsias vãs e justamente por
isso adquire o fôlego da perenidade – o que deveria ser o interesse desde
sempre de todo poeta, interesse que não se configura com a ânsia pelo eterno,
mas pela compreensão de que para estar entre o extenso panteão é preciso seguir
“refazendo caminhos e aglutinando enganos, / desconfiando de si e de sua capacidade
de re- / formar o encanto. Um deus assim acordado”, para citar os versos do
próprio poeta.
Heleno, nome
que recobra o do jogador de futebol (uma homenagem do pai), soube driblar com
muita perspicácia os lugares-comuns da criação literária; voz dentro e fora dos
de sua geração, ampliou significativamente as sensíveis fronteiras da poesia
brasileira contemporânea graças a sua inventividade de se perceber a um só tempo
figura integrada e avant garde. Leitor
atento dos poetas que lhe antecedem e seus próximos, livre da arrogância da
inovação vazia – tudo isso deixa perceber em Inventário, o livro, portanto, que se faz indispensável ao leitor que
queira construir uma dimensão coerente sobre a criação poética no Brasil dos últimos
anos.
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