Entrelugar
Por Rafael Kafka
Li On The Road quando tinha uns 19 anos de idade. Na época, o livro me
serviu de mote para ampliar meu modo de ser e começar a querer viver em um
ritmo frenético ligado à arte e à cultura em geral. Como não tinha dinheiro,
nem coragem, assumi uma postura beat improvisada: fazia de cada passeio um
convite a olhar a realidade com olhos diferentes e a fazer do movimento
constante o alimento de minha alma. Naquele momento, fã de Álvaro de Campos e
outros heterônimos sensacionistas de Fernando Pessoa, decidi que o caminho não
dava em lugar algum e o maior prazer da vida era curtir as impressões,
intelectuais e sensoriais, que ela nos oferecia.
O tempo passou e eu, leitor
assíduo, fui convidado a uma postura de engajamento. Na verdade, o engajamento
sempre existiu em mim de forma depurada, convivendo com um estranho sentimento
de niilismo que creio ter pegado de minhas leituras irracionalistas e assumido
mais por uma moda neoliberal, com alguma cultura, a qual prega que de nada
adianta lutarmos, pois o sistema de vida humana por si só é corrompido e
corrupto. Se eu fosse um fatalista, diria que minha essência falou mais alto e
acabei me tornando o que eu era. Como não sou, o gosto pela leitura e as redes
sociais com seus textos curtos e muito instrutivos em diversos momentos me
fizeram prestar atenção em questões políticas que eu não pude mais ignorar.
Enquanto meu engajamento ainda
era algo depurado pelo conformismo diante do absurdo, eu passei a defender a
ideia de que o acesso à informação e à cultura era algo fundamental para termos
um mundo melhor. A arte tem o poder de ampliar nossas possibilidades,
fazendo-nos viver por meio da representação outras existências, convidando-nos
assim a refletir e a busca reflexões mais profundas sobre este ou aquele tema.
Mas isso não é a missão da arte. Ela tem esse poder de mexer com nossa
cognição, porém dentro de um contexto conservador e elitista, ela pode ser
apenas deleite com status. Conforme eu me engajava no debate político,
acreditava que a arte deve ser mediada por nós de modo a provocar sempre o
debate. O debate é o que nos mantém vivos.
Havia no debate uma analogia com
o movimento que Kerouac me ensinou ser algo fundamental em 2008. Assim como nos
mantemos saudáveis praticando exercícios de caminhada ou corrida, ou viagens ao
redor dos espaços onde habitamos, o debate nos faz sair de nosso lugar fixo,
criando em nós potencial existencial maior. O ser humano é uma espécie animal
que só vive no movimento. Kerouac me ensinou isso naquele momento. Porém,
lendo-o com mais atenção, percebi que sua viagem existencial cheia de
ensinamentos em forma de literatura não possuía um propósito bem definido do
ponto de vista ético e político.
Hoje, decidi voltar a ter um
contato maior com Kerouac, mas lendo-o de forma mais crítica em sua obra-prima.
Sal Paradise é um romântico burguês querendo viver na fronteira entre o ser e o
não-burguês, mas sem uma consciência muito clara disso. O que Paradise busca é
fuga da realidade, é não querer crescer. Ele funciona como uma espécie de versão
mais modernista de um Álvares de Azevedo ou de um Casemiro de Abreu, que não
morreu de tuberculose e sim de excesso de álcool, escrevendo o que viveu e não
apenas idealizando a realidade.
Há muito de idealismo nas obras
de Kerouac. O modo como ele estuda o zen, o modo como trata a arte – como se
nós escritores tivéssemos um dom acima de qualquer problema concreto do mundo
real -, os estereótipos positivos e negativos sobre as minorias e sua cultura
são exemplos de como a sua obra é cheia de “negativos” do pensamento burguês,
que ao invés de desconstruir opressões as contempla como algo belo e lírico a
ser tratado pelas teclas da máquina na qual escrevia em ritmo frenético. Ainda
assim, como romancista, como trabalhador com as palavras, Kerouac foi transgressor.
Há um ensaio de Kundera no qual
ele relata certo encontro tido com um conhecido que lhe pergunta sobre seu
posicionamento político.
-O senhor é comunista ou
capitalista? Creio que era a pergunta.
-Sou romancista.
Por mais que um escritor possua
pontos ideológicos como qualquer ser humano, a literatura sempre será um texto
marcado pela ambiguidade. Quando lemos um livro, por mais que procuremos dados
biológicos que expliquem traços da obra, sempre teremos nuances de leituras que
afetarão o resultado final da mesma. Prestamos mais atenção neste ou naquele
ponto, temos uma visão de mundo que influencia nosso modo de interpretar a
obra, lemos em diversas condições materiais que afetam nosso prazer, etc.
Assim, o texto mesmo sendo preso ainda à autoria que o produziu se torna em
fissura, em algo que exige do leitor uma contrapartida de sentido que o fará a
partir da estrutura linguística que é a literatura gerar sentidos por meio do
prazer sentido com a leitura.
O modo usado por um escritor no
trato à palavra muitas vezes diz mais do que os temas ali postos. Kerouac, ao
usar elementos do jazz, fez o romance transcender suas formas convencionais. A
prosa espontânea gera um ritmo de leitura muito juvenil, frenético, intenso,
quase que captando o espírito com o qual os romances foram escritos. Saímos de
uma experiência de literatura bastante linear para entrarmos em uma marcada
pelo incessante sopro de vida que permeia, mesmo de forma idealizada, diversas
camadas do meio social americano. Kerouac se mostra revolucionário ao propor um
estilo de vida e de literatura que afetaria profundamente a contracultura
mundial.
Porém, Kerouac, pela falta de um
embasamento crítico maior, criou muitos mitos em torno de sua figura e que
viraram moda. Rotineiramente, vejo amigos dizendo que devemos largar a rotina e
sairmos por aí andando sem rumo, conhecendo a realidade não enxergada por nós
diariamente. Muitas vezes, essas pessoas acabam criticando os mais
“sedentários” como se fossem conformados diante de uma existência cristalizada.
Por mais que tentem fazer um discurso oposto ao modo americano de vida, que
hoje se espalhou pelo mundo, de ter estabilidade, família e um carro com casa
própria para se obter a felicidade, esses seres amantes do mundo viajante
acabam sendo espelho do primeiro tipo, pois muitas vezes ignoram o quão
insuportáveis são ao reproduzirem um discurso idealizado pelo próprio Kerouac,
que quando estava em apuros econômicos e existenciais voltava para casa e para
o conforto de seu quarto. Muitos dos meus conhecidos também possuem o conforto
de suas casas, caso o cartão de crédito fique sem limite. A diferença é que
Kerouac escreveu livros sobre suas aventuras e muitos de nós nos contentamos
apenas em selfies que mais mostram nossos rostos do que as paisagens por nós
testemunhadas.
Analisar On The Road quase dez anos depois de ler o livro pela primeira vez
me faz pensar como eu era naquele momento, vivendo uma espécie de analogia com
o Sal duplo, cujo futuro analisa o passado dentro do romance. Hoje entendo que
Kerouac era um ser preso no entre-lugar discursivo de uma obra e de uma
existência que decidiu questionar algo, mas sem saber ao certo o que e como
questionar. Isso acarretou a criação de uma obra ao mesmo tempo questionadora e
profundamente conservadora em diversos elementos. A poesia, em diversas
situações, serve como mero disfarce para as limitações políticas do ser as
quais podem levar um indivíduo aos caminhos da loucura, como ocorreu com
Kerouac.
Nesse sentido, por mais que
defendamos o óbvio de uma literatura com direito à liberdade da ambiguidade,
temos de mostrar como o escritor possui a necessidade de dentro de sua
existência definir quais problemáticas julga necessárias de serem provocadas.
Do contrário, tentando abster-se de tudo e ficando em sua torre de vidro, o ser
humano acaba por se deparar com o absurdo lógico de ser cobrado a falar sobre
aquilo que preferiu ignorar dentro de suas obras. Não é de estranhar porque
Kerouac e muitos outros tiverem fins de vida marcados pela melancolia
autodestrutiva: não procuraram entender muito bem onde estavam pisando e porque
motivos ali estavam.
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