Biografia involuntária dos amantes, de João Tordo
Por Pedro Fernandes
João Tordo. Foto: Fernando Dinis |
“O amor também
é uma mentira. A mentira mais velha do mundo”. As duas sentenças aparecem numa conversa
entre o professor narrador de boa parte da história contada em Biografia involuntária dos amantes e a chefe
de uma editora em Londres, Antonia McKay, e justapostas, como foram
propositalmente apresentadas aqui, podem evidenciar sobre o que é este romance
de João Tordo. Se não traduzem efetivamente a obra, são significativas para o
estágio de permanente frustração que acometem as personagens envolvidas nos
dramas centrais da narrativa. Pode-se mesmo dizer que a tentativa do narrador
ao se enredar pela história trágica entre o poeta mexicano Miguel Saldaña Paris
e Teresa de Sousa é uma tentativa – e sobre ela caberá ao leitor descobrir se é
ou não uma tentativa igualmente frustrada – em reverter sua condição de sujeito
à beira de sucumbir às forças indeléveis do amor.
Isto é, não
deposite o leitor grande arroubo ante o título da obra, esperando encontrar aí
um daqueles romances toldados pelo sentimentalismo barato, pelos altos e baixos
comuns dos relacionamentos mas com os desfechos que apostam numa redenção da
existência pelo amor. O amor referido neste romance é, como o título sugere, o amor amante, aquele que se porta qual
avalanche e faz dos envolvidos na sua trama súcubos e mesmo capaz de sugar-lhes
todo sopro de vida se este pertencer à linhagem dos antigos românticos. Percebam:
nisto, Biografia involuntária dos amantes
retoma um lugar-comum às histórias de amor românticas, muito embora, neste caso
os súcubos não são entregues a qualquer custo às forças dessas correntezas, mas
estão tomados por uma série diversa de outras condições, produtos de seu tempo,
como as que dizem da satisfação e realização ante suas existências. A natureza
desses indivíduos são, seja pela condição natural de pouco à vontade em seus
mundos, seja pela necessidade interior de ruptura com a mesmidade das formas,
seja ainda pelo desejo de, no âmbito das existências vazias e cômodas,
sentirem-se vivas, a principal razão pelo desmantelamento das vidas. O amor ocupa,
dessa maneira, apenas uma entre as causas primordiais do fim para o qual as
personagens da narrativa são arrastadas.
O interesse
do narrador pela vida em comum de Saldaña e Teresa se dá casualmente ou como
ele verifica, na mesma altura em que conversa com Antonia McKay (atente para o
sobrenome dessa personagem), porque a história do poeta mexicano, figura
excêntrica na paisagem galega de Pontevedra, em parte se corresponde ao estágio
pelo qual ele próprio passava em casa: a recente separação, a relação conflituosa
com a única filha adolescente, a vida sem sentido como professor de literatura
de língua inglesa na Universidade de Vigo, a dedicação ao que parece ser seu único
afeto, um programa de rádio de baixa
audiência em Compostela. Tal como a literatura, capaz de ser útil apenas
àqueles que em algum momento de suas vidas descobrem-se confrontados com o seu
lugar no mundo (porque no diálogo silencioso que constroem com a materialidade
do ficcional conseguem encontrar em parte uma maneira de dizer mais de si do
que os outros), esse narrador de João Tordo vê-se enredado depois de romper com
a curiosidade de saber quem era o homem de penetrantes olhos azuis que ocupava
a cena numa praça pública com o desvario de versos soltos e um violão de sons
distorcidos.
Aos poucos,
o professor tem sua vida modificada pela relação que desenvolve com este
forasteiro e pela curiosidade alimentada sempre no interesse em descobrir
melhor quais situações o levaram deslocar-se de uma cidade tão grandiosa como é
Cidade do México para ir viver uma vida cigana num interior da Galiza. João
Tordo, explora, dessa maneira, ainda como o acaso ou este outro com o qual cruzamos
e a quem ignoramos, participa (se não nos aproximamos não sabemos) da nossa
própria existência ou, por fim, todos compartilhamos de dramas capazes de ser
mais graves que os nossos e, justamente por isso, capazes também de nos levar a
observar a vida por outro ângulo, alheio ao da frustração.
À medida que
descobre sobre a vida de Saldaña Paris, ele próprio, primeiro sem observar como
ou de maneira precipitada, depois propositalmente e melhor acertada, começa a
rever sua condição, a complexidade das suas relações e a maneira de compreensão
ante a existência: a principal delas, o desapego da ideia fixa de que ocupa na cadeia
humana o lugar do privilegiado porque capaz de desfrutar do mais elevado da criação
humana. Isso é demonstrado claramente quando confessa de maneira crítica e
reprovadora como os homens estão mais afeitos à aparência num episódio passado
entre ele e um sujeito boa pinta num metrô. Ao vê-lo bem-posto, mergulhado no
som dos fones de ouvido, este narrador estima que ali reside um super-homem ou
homem de cultura elevada ao imaginar que sua dedicação com o escuta deve se
referir a um ouvinte de música clássica até descobrir que esta figura, na
verdade, ouvia um desses programas baratos com desafios aos espectadores. Uma
série de outras situações, como estas, alheias ao drama Saldaña-Teresa, confrontam-no
com sua realidade. Aos poucos, ele reconhece nas pessoas que critica algo que
as diferenciam no mundo: cada uma delas têm autonomia e atitude frente a
realidade e não se demonstram acanhadas ou presas em elucubrações fictícias
sobre si fabricadas pelo ponto de vista imaginado do outro. Estão, de alguma
maneira, tomadas por um senso de liberdade capazes de, por seus próprios meios,
encontrarem a possibilidade primordial de suas existências. Uma percepção sobre
o milagre da vida? Muito provavelmente. Eis então uma pista possível para compreender
a jornada desse narrador em busca de compreender o passado mal esclarecido do
poeta mexicano.
Nesse
sentido, vale recobrar uma referência literária recorrente em Biografia involuntária dos amantes. O
programa apresentado por este narrador, para o qual convida e onde escuta pela
primeira vez parte da história do misterioso Miguel Saldaña, chama-se, qual o título
de uma peça de Samuel Beckett, Dias
felizes. Beckett é o autor preferido de Teresa que conhece uma de suas obras
quando adolescente com um seu primeiro amor, o tímido Jaime, quem leva bastante
jeito para a literatura e é por isso um assaz leitor. Beckett está à entrada do
romance numa epígrafe recolhida de qual obra? Acertou, se pensou Dias felizes. Seguindo o padrão insólito
comum ao dramaturgo irlandês, em Dias
felizes encontramos Winnie, uma figura enterrada no solo, de onde comanda o
seu universo de ilusões, entre elas, o amor nunca conseguido. Da mesma maneira
porta-se, terão percebido, este professor de literatura narrador da Biografia. Submetido aos seus medos,
entre eles o que o leva à constatação do amor enquanto farsa, sua atitude é de,
pela imersão reconstrutora, quando decide abandonar a mera admiração que nutre
por Saldaña para investigar o passado do poeta, encontrar a imagem reveladora
de si e logo da realidade. E onde então para sua busca? Tal como Winnie, que da
condição de aterrada até cintura no primeiro ato passa a de aterrada até o pescoço
no segundo, o que se revela para o espectador como uma metáfora da força
indelével do tempo sobre a vida, o narrador percebe que, no fim de tudo, cedo
ou tarde, ela, a existência, traga todos da mesma maneira – é essa condição
primordial do tempo o que ele ainda não havia dado conta até envolver-se
integralmente, ainda que involuntariamente na biografia dos amantes Saldaña e
Teresa. Notável ainda que esse envolvimento se produza e se fortaleça a partir de
uma situação-limite pela qual os dois, o narrador e Saldaña, vêm suas existências
confrontadas: o atropelamento de um javali.
Ainda sobre
a relação entre a obra de Beckett e a de João Tordo, é válido notar a crítica
oferecida pela obra do escritor português à nossa condição de presos à rotina
e, logo, a angústia e o drama da repetição; ou ainda, o esvaziamento de sentido
da vida propiciado por isso – afinal, esta também é a crítica forjada pelo
dramaturgo irlandês em Dias felizes. As
vidas encontradas favorecem a uma fuga do mesmo que só trará a vida à calmaria
quando todas as incongruências forem respondidas ou cumprirem um sentido aos
afetados pelas situações; nesse ínterim, João Tordo nos provoca com a compreensão
de que a vida é isto, qual o enunciado por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas: “O correr da
vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
A
investigação do narrador da Biografia
involuntária dos amantes é – para usar novamente da compreensão proposta
pelo próprio romance, quando o narrador recebe de Saldaña um manuscrito
supostamente redigido por Teresa, ela assim inicia a narrativa, “Esta história
que vou contar é sobre o meu tio e é também sobre mim, embora os narradores
muitas vezes se escondam por trás de outras pessoas, como Alice se escondeu por
trás de um espelho” – é também a investigação de João Tordo. Uma investigação
sobre a impossibilidade do amor (não a de amar, porque afinal este romance está
rico em provas dessa possibilidade); ou melhor, sobre a compreensão de que o
amor só se realiza na ausência – mesmo os encontros nos quais forjam-se a
ilusão de sua existência ou a ilusão sobre a revelação de sua existência são
interdições.
Enquanto plenitude,
o amor está condenado, porque cedo ou tarde, os amantes serão tomados pela sensaboria
da mesmice; porque cedo ou tarde os amantes estarão confrontados com os amores
do passado e estes, porque estão no passado, serão sempre melhores, mais doces,
mesmo que futuramente possam ser realizados e constatados como irrepetíveis.
Estamos no pantanoso território do jogo entre o vivido e o idealizado e suas incompatibilidades.
Assim, Biografia involuntária dos amantes
é um romance sobre desencontros e solidões. Noutra margem, é ainda uma
narrativa sobre a compreensão de que enquanto impossibilidade o amor confunde-se
com a tarefa de ser força motriz da própria existência. Em sua pulsão, ele é a
prova de que ainda estamos vivos. Isso porque nenhuma existência se faz da pura
realidade, nem a pura realidade se sustenta sem a mentira. Apenas uns lidam
melhor com isso enquanto outros sucumbem. A vida ensina, mas uma amostra está
neste romance.
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