Aurora Bernárdez, sem Julio Cortázar
O nome de
Aurora Bernárdez nunca conseguiu ser desassociado da figura de Julio Cortázar, com
quem se casou em 1953 e com quem viveu em Paris durante a etapa mais prolífica
do escritor argentino, incluindo a de criação de O jogo da amarelinha. Mas com a publicação de O livro de Aurora (Alfaguara), vem à luz uma faceta desconhecida
desta tradutora argentina filha de galegos, viajante ativa e, agora, escritora
póstuma.
A edição é
publicada graças ao empenho do compositor e cineasta francês, amigo íntimo de
Aurora Bernárdez desde o início dos anos 1980, e quem, junto com Julia
Saltzamnn organiza o livro. Segundo Philippe Fénelon, não há mais nada além dos
textos agora publicados. Isto é, este o primeiro e também o último livro da escritora.
Livro que
é uma revelação mesmo para alguns do seu círculo de amizades, afinal, se os mais achegados a Aurora sabiam que ela
escrevia, mesmo assim, grande parte não haviam lido nada.
“Ninguém, exceto sua irmã Teresa e Perla Rotzait, sua amiga poeta de Buenos
Aires, haviam lido nada de Aurora. Sabíamos que tinha poemas e textos em cadernos
e agendas porque estava em sua casa, sob uma mesa e outros móveis. E sabíamos
que não havia jogado fora”, comenta Fénelon ao jornal argentino Clarín. Foi ele quem escreveu uma breve
introdução para o livro onde diz que este trabalho tenta esclarecer o mistério
de por que Aurora Bernárdez preferiu “viver para dentro” até sua morte; distanciada de qualquer tipo de exposição pública que se referisse à escrita
própria e sem publicar nada do que escrevia.
Impossível não
ser este um livro que traga ao leitor também outros olhares, mais íntimos
talvez, sobre Cortázar, figura do qual ela acompanhou, mesmo com idas e vindas,
durante toda a vida. Foi um grande amor do escritor, mas não sua única companheira.
Mesmo depois de separados, no início dos anos 1970, o vínculo entre os dois nunca foi desfeito; foi ela quem, depois da doença que levaria a morte ao escritor, viveu com
ele e cuidou-lhe até os últimos dias, quando se converteria em herdeira e cuidadora da sua
obra. Entre as anotações soltas se lê:
“As virtudes pessoais de Julio bem conhecidas
pelos que o amavam, e ignoradas pelos demais, não são o importante: o que conta
é a obra. Nele há mais possibilidades de dúvidas. E mesmo quem pode se meter a
dizer, com certeza, como era um homem? No caso de Julio, suas atitudes foram às
vezes contraditórias: muitas delas te surpreenderiam. Não é o caso de convertê-lo
em paradigma. Ele repeliria. Do que há
para falar é da obra. Sobre o resto: silencio”.
Aurora Bernárdez fotografada por Julio Cortázar em Paris, 1956. |
O livro de Aurora começa com uma série
de poemas, dividida em duas partes. Uma primeira, em que se respeitou a ordem que
havia deixado a autora num de seus cadernos e que estão datados entre os anos
1980 e 1990. E uma segunda parte com poemas dispersos, entre os quais se pode
encontrar textos de 1954, de 2001 e muitos outros sem uma data específica.
Depois vêm
os contos e um compêndio de textos com reflexões sobre suas viagens, textos
sobre alguns escritores e artistas plásticos e também anotações diversas, tudo
ordenado por nomes e temas que vão desde Alejandra Pizarnik, o Guernica e o Surrealismo às viagens por
Deyá e Sanlúcar (na Espanha). Sobre Andy Warhol, por exemplo, reflete: “Passou
a vida juntando tudo e qualquer coisa: caixas vazias, tíquetes usados, copos de cristal,
cálices de prata, quadros, como se quisesse preencher com o mundo inteiro esse
incomensurável vazio que tinha dentro de si”. E define o trabalho de Pizarnik
assim: “A poesia de Alejandra: um pássaro que desenha no ar a palavra-chave”.
O
desenraizamento, a identidade difusa e a incerteza são temas recorrentes em
seus textos o que geralmente aparecem expostos com imagens marítimas e uma insistente
preocupação com o sentido de viajar. “Alguma vez deixarei de ser estrangeira
para mim mesma?” – se pergunta num de seus cadernos. “Não conseguia sentir-se de um país, era uma
mulher de muitos mundos. Tinha como uma indefinição de lugar, estava num lugar
e pensava em seguida quando estava em outro”, diz Fénelon.
E ante sua constante
negativa a publicar em vida, a pergunta sobre a autorização de que sua
obra venha a lume postumamente é
inevitável. Fénelon assegura que “uma vez me disse que, se depois de sua morte,
alguém achasse que isto [seus escritos] valia a pena, que se publicasse”.
Muitas vezes, entretanto, chegou a falar sobre por que nunca se tornara escritora
e, nessas ocasiões dizia que “com um escritor em casa já bastava e não queria
enfrentar esta meta”.
Fénelon conhecia
a existência de poemas e contos de Aurora, mas quando começou a organizar os
materiais descobriu também agendas e cadernos com notas dispersas. “Eram
diários esporádicos, cadernos que vão do ano de 1958 a 1964 e depois salta para
1972. As agendas eram usadas para escrever as atividades diárias e como rascunhos
de suas cartas”.
O responsável
por O livro de Aurora, dentre seus
trabalhos, adaptou Os reis, de Julio Cortázar
para a ópera; mas foi o filme que Philippe Fénelon fez sobre Leni Alexander,
uma compositora polonesa exilada no Chile durante o nazismo, um dos que mais fascinaram
Aurora. Ela, que nunca havia dado nenhuma entrevista a ninguém, se propôs ao
amigo em fazer algo parecido. Desta maneira, entre os dias 23 e 25 de março e 7
de novembro de 2005 ele gravou uma série de conversas com a escritora – sempre no
n.9 da Place del Général Beuret de Paris, a casa onde Cortázar escreveu O jogo da amarelinha e onde Bernárdez
viveu até sua morte em 2014. O material foi editado e transformado no documentário
La vuelta al día e o texto integral
da entrevista compõe a última parte da edição agora publicada. Nele, ela revê
sobre sua vida como leitora, viajante, companheira e Cortázar e, timidamente,
sobre o seu ofício como escritora.
“Nunca tive
a ideia de alguma coisa é definitiva”, diz numa passagem da entrevista. E a
publicação de O livro de Aurora,
assim intitulado, como uma totalidade, tem um pouco mais definitivo. Porque a
partir de agora, já se pode dizer, de maneira definitiva: Aurora Bernárdez, escritora
e tradutora.
***
(fragmentos
inéditos)
Sanlúcar, 1989
Eu não se o
delírio da mobilidade tem a ver com a paixão por viagens. O viajante foi substituído
pelo turista, essa partícula de um montão que não se deixa viajar pelas coisas,
que arrasta consigo a necessidade de seguir comendo chucrute no país da paella,
de encontrar tamboris quando o mesmo rock se escuta em Hamburgo, Moscou ou em
Sevilha. O gosto pelo diferente requer uma imaginação. E a viagem é isso: imaginação
em ponto de partida, memória em ponto de chegada como partida de outra
imaginação: a imaginação da memória. A viagem mesmo, como na história de Zenão
e a tartaruga, é uma impossível sucessão de imobilidades porque o passado de
uma imobilidade a outra é infinitamente divisível. E ter constantemente um
bilhete de avião no bolso não demonstra nada. A viagem (como o movimento) não se
demonstra andando”.
Marilyn
E. acha vulgar Marilyn e belíssima Ava Gardner. Eu,
sem negar a beleza de Ava, digo que a de Marilyn me comove mais. Agora sei por
que: Ava tem sempre o cabelo laqueado. Marilyn comprou o estojo de maquiagem na
Prisunic e cheira à pintura. E todos sabemos, desde o primeiro momento, que
será a Milonguita que dará o mal passo, que está perdida.
Último testamento
O que se
ausenta leva algo.
Pouco vai me
ficando do que acreditei ter no princípio. Também meus herdeiros mudam, rareiam
por desamor, distância, esquecimento.
Assim, cada
dia volto a escrever meu testamento, cada dia mais breve. Pouco vai me ficando.
Quando se
estiver todo numa folha de papel me dobrarei em quatro, esquecida me deixarei
entre as páginas que lia quando ainda restava algo.
Alguém
apagará a luz.
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