Um amor incômodo, de Elena Ferrante
Por Pedro Fernandes
É e não é
sempre o mesmo universo da tetralogia napolitana o que Elena Ferrante se preocupa
em descrever nos demais livros que compõem sua obra – como A filha perdida e Um amor incômodo.
É, porque o cenário é sempre a degenerada periferia de Nápoles, seus habitantes
e os dramas os mesmos de natureza diversa que acometem as sensibilidades
femininas e seu lugar numa sociedade marcada pelo estreitamento machista. E não
é porque a natureza diversa dos dramas não o fazem ser únicos e tampouco compreendidos
por um só prisma.
No caso
destes dois romances, o leitor se encontra diante da relação controversa entre
mãe e filhos, sendo que, no primeiro, tal relação é vista pelo prisma da mãe
interessada em recuperar sua independência social depois da saída de casa dos
filhos e, no segundo livro, pelo ponto de vista da filha, depois que esta perde
a mãe. Para todos os casos, o tema da libertação e melhor compreensão sobre seu
lugar no mundo é, quando não o principal da obra, um dos recorrentes. É
possível acrescentar nesta lista também Dias
de abandono, em que a narrativa acompanha Olga nos dias que se seguem
depois do abandono da casa por Mario, seu companheiro. Por falar em abandono,
as personagens de Elena Ferrante estão sempre em impasse, em vias de deixar algo (em parte sempre quando
atingidas por alguma força das circunstâncias) para serem outras ou o que
gostariam de ser mas essa mesma força circunstancial alguma vez interviu em
direções diferentes das esperadas.
Em A filha perdida, a professora Leda sai
de férias para uma das praias da costa sul da Itália, retorno que favorece à
narradora uma aguda observação sobre o tipo italiano dessa região – o espaçoso
porque parece sempre alheio ao respeito com o lugar público – e sobre sua
própria vida a partir de quando se encontra envolvida com algumas situações de uma
extensa família de napolitanos dos recém-acendidos a uma condição financeira
razoável e ainda presos numa diversa variedade de comportamentos, que vão da
integração considerável no novo universo à imersão nos dramas de ordem subjetiva
e amorosa. É nestes últimos que Leda penetra imperceptivelmente porque
interessada em encontrar algumas respostas sobre seu próprio passado que são retomadas
pelas circunstâncias em que se vê envolvida. Como se verá em Um amor incômodo, Leda integra o grupo
das personagens de Ferrante que, a partir do outro, reflete a si e busca nessa
reflexão encontrar uma resposta acerca dos dramas adormecidos: nesse caso, o
abandono das filhas quando estas eram ainda crianças e, depois da retomada
delas, sua dedicação ostensiva para criá-las até quando saem de casa.
A narrativa
de Um amor incômodo abre-se com um
mistério: Amalia, mãe de Delia, deixa
de realizar uma das constantes visitas que faz à filha, e, logo depois, esta
descobre que ela foi encontrada morta numa praia em Nápoles. O acontecimento
repentino levará Delia ao reencontro com seu passado, à tentativa de compreender
sua relação com uma mãe, que na infância pareceu-lhe o símbolo da perfeição e
agora, depois de morta, tem essa simbologia agravada ao ser colocada em ponto de
suspeita durante a vida adulta, e a convivência com a separação definitiva,
aquilo que sempre almejou mas temia encontrar o desfecho que encontra.
Em relação
aos demais romances de Elena Ferrante, sempre tomados por uma estrutura de corte
realista, este é que o melhor se distancia dessas feições e flerta com o
conteúdo poético, subjetivo e lida com os vultos de uma consciência que se
mostra o tempo todo afetada pelo vazio do luto e pelo ímpeto de libertar-se em
definitivo dos estreitos laços com mãe. Um processo que levará a personagem a
vários estágios de compreensão: quem era Amalia, quem são os que diretamente se
envolveram com ela tempos antes de sua morte, quem é sua família. Todas as
indagações partem de uma única suspeita: Amalia estaria envolvida com um homem
que a perseguia e contra quem travaria a luta para não o deixar se aproximar
dos filhos. Cada um desses estágios responde pelas dúvidas secretas da própria
identidade de Delia. Isto é, as questões aí colocadas uma vez respondidas
revelam igualmente sobre quem é Delia, quem foram os que diretamente se
envolveram na sua infância, quem é ela na sua família.
Ao que parece,
à meia-idade, ao lado deste homem misterioso – quem logo descobrimos mais
próximo da família do que o inicialmente pensado – Amalia estaria finalmente,
não se sabe se por obrigação ou interesse próprio, livrando-se da condição de
subjugada. Fora casada com o pai dos seus filhos, mas dele muito apanhara e só
tinha refúgio (ao menos é essa a imagem infante construída por Delia e que aos
poucos passará pela crise da suspeita) no trabalho de costureira, na reserva
integral de tempo para enfeiar-se,
despir-se das vaidades no intuito de se desligar da mácula original de ser a
mulher, a provocadora do mal no mundo, como acentua fala do irmão Filippo ao
rememorar para Delia sobre algumas passagens do passado de Amalia – Fillipo é o
único irmão de Amalia com quem Delia tem melhor relação. O que assinala a
possível libertação dessa senhora? Delia encontra, de presente, uma mala com
roupas íntimas e sociais que não condiziam com os rebotalhos com que a mãe
sempre esteve acostumada a se vestir e um vestido que seria presente para Delia.
Se no texto
literário, nada é mero acaso e sob a superfície escondem-se múltiplas camadas capazes
de ampliar significativamente a extensão da narrativa, nada no romance de Elena
Ferrante parece solto e nem em desajuste – isto é, o mínimo detalhe ou o
trivial é tornado em metáfora ou revestido de um valor simbólico importante
para o aprofundamento da narrativa. Assim, o retorno de Delia a Nápoles colocará
a personagem em confronto com essa mãe morta, mas que aqui é mostrada e ganha a
dimensão como o outro de Delia e
vários outros duplicados. Aliás, Um amor
incômodo investe no tema do duplo. Não tarda e, tão logo visita à casa onde
vivia a mãe, Delia se vê refletida, misturada e reconhecida (e desconhecida de
si e de seu passado) entre as características de Amalia.
Envolvida
pelo torpor do cansaço e pelo sono não conseguido, entre deitar-se na cama da
mãe, descobrir seu envolvimento com um tal Caserta e ir ter com o tio Filippo
muitas são as coincidências e os elementos mínimos corroborativos do tema do
duplo. A começar pela ligação que recebe do tal Caserta, quem não acredita na
notícia dada por Delia sobre a morte da mãe e, acreditando falar com Amalia insiste
em lhe deixar as roupas que substituiriam os trapos encontrados pela filha no
saco de lixo. Depois, as cenas em que, de posse das roupas deixadas por Caserta,
vai ter com a loja de onde saíram a diversidade de peças, uma importante marca
para senhoras (ao menos era no tempo de quando Delia viveu em Nápoles).
Interessada
em saber melhor sobre esse homem com quem sua mãe saía, Delia mete-se numa
série de confusões e, quando menos espera se vê com as mesmas roupas de Amalia,
do traje íntimo ao vestido muito decotado e antes disso com o rosto tomado pela
maquiagem também deixada por Caserta para Amalia. A cena da maquiagem é
extremamente simbólica porque recobra o caráter da máscara, do disfarce e do
embotamento dessa figura na figura da mãe como repara mais tarde o tio Filippo.
Ciente de que as roupas foram dadas de presente a ela pela mãe, uma falsa convicção
que usa a fim de conseguir informações sobre a relação de Amalia com o amante,
reconhece-se, apesar de estranha àquelas roupas, ela própria quando se vê confrontada
com a fotografia na identidade que impulsivamente apresenta ao dono da loja como
sendo de Amalia.
Ainda nessa
série de mal-entendidos, transtornos e dificuldades de resolução do dilema que
lhe aflige, Delia, juntamente com o tio Filippo, encontra-se em meio a um
temporal que amplia sistematicamente o caos em Nápoles (caos que se configura
também no interior dessa personagem) e levará a uma série de acasos – a
descoberta sobre Caserta a partir do gerente da loja – quem depois de
rejeitá-la sai em sua procura – e marcará significativamente o que podemos chamar
de uma possiblidade de reencontro da personagem com seu eixo individual, não
sem passar pelo dilema de separar-se em definitivo dos laços que prendem à sua
mãe. É simbólico ainda, portanto, depois de meter-se sob a chuva em busca de
aproximar-se de Caserta o desfazer-se de toda a imagem aparentemente perfeita
(a maquiagem, a roupa nova e sensual) mas que não é Delia e sim um símile da
mãe; assim como é simbólico também a descida da personagem, a desfazer-se, do
funicular à parte baixa da cidade, onde finalmente poderá elucidar algumas coisas
sobre as quais busca resposta.
Essa é
apenas uma pequena parte do périplo que realiza a personagem nesse exercício de
buscar construir respostas acerca do passado e sobre a morte de sua mãe. Há
ainda o envolvimento de Delia com
esse vestido possivelmente presente de Amalia que amplia as considerações aqui
demonstradas, mas é preciso de ser lido com toda a delicadeza e parcimônia exigidas
no desvelamento dos extensos véus com o quais Ferrante compõem a tessitura dos
acontecimentos.
Se esse exercício
de expurgar o outro de si resolve a desidentificação
ou de esfacelamento do eu, só a leitura de Um
amor incômodo talvez revele. O fato é que Ferrante faz coro à ideia de esfacelamento
das identidades e demonstra acreditar que não há eu-puramente. Somos confrontados com o lugar do outro ao ponto de
sermos mais projeções alheias e ilusoriamente acreditamos nos distanciar delas.
Mas, escutemos a voz de Delia a fim de aguçar uma resposta para o drama: “Eu
não quis ou não consegui enraizar ninguém em mim. Mais algum tempo e perderei
até a possibilidade de ter filhos. Nenhum ser humano jamais se desligaria de
mim com a mesma angústia com que me desliguei da minha mãe apenas porque nunca consegui
me apegar a ela definitivamente. Não haveria nenhum mais ou nenhum menos entre
mim e um outro ser feito de mim. Eu permaneceria sendo eu até o final, infeliz,
insatisfeita com aquilo que arrastara furtivamente para fora do corpo de
Amalia”.
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