Pequeno poema pedagógico
Por Rafael Kafka
Há algum
tempo ouço que alunos são seres os quais devemos manter à distância de nós para
nossa própria segurança. Isso se deve a uma série de motivos, mas em especial
eles podem não reconhecer muito claramente os limites na relação professor e
aluno, o que levaria a conflitos bem constrangedores. Nesta semana, passei por
algo assim que me fez quase acreditar nessa visão. Na verdade, era uma situação
comum em meus tempos de rede privada, mas na rede pública eu dificilmente
passei por algo do tipo e me sinto me divertindo com meus estudantes enquanto
passo seus trabalhos, suas aulas e fazemos debates.
A situação
ocorrida se deu com um aluno extremamente brincalhão e que me faz rir com
facilidade. Na verdade, a maioria dos estudantes percebe em mim esse riso constante,
um jeito brincalhão mesmo em dias nos quais me sinto profundamente cansado e
aborrecido. Infelizmente, muitos viam isso como um motivo para deboche e
indisciplina em sala de aula e sempre fui muito criticado por alguns colegas de
trabalho pela falta de autoridade.
Porém, ao
ouvir os discursos de muitos dos meus críticos, percebia ali a presença de um
certo ressentimento com o ato de dar aula e as implicações psicológicas
inerentes ao ato da docência. A distância mantida por muitos professores não é
no sentido ético da coisa, mas sim na tentativa de impedir um contato maior com
um público que precisa mais do que fórmulas matemáticas e análise sintática.
Muitas vezes esse público precisa de afetividade.
Talvez eu
tenha errado a mão em alguns momentos, porém sempre tentei dar afetividade aos
meus alunos. Seja na forma de usar o cotidiano deles para discutir os temas, de
discutir leituras e visões de mundo ou de dar abraços fraternos em momentos de
encontros pelos corredores, sempre fiz questão de mostrar aos meus alunos que
os amo, não por demagogia, nem por dizer que sou dono de um dom que muitos
chamam de vocação para a docência.
Não tenho
vocação para docência. Eu escolhi ser professor. Escolhi dar aulas para ampliar
horizontes cognitivos e políticos de estudantes dentro da medida de meu poder.
Por isso, um aluno me dizer que não sei impor autoridade, ao mesmo tempo em que
ele reclama de professores que não lhe dão a devida atenção no âmbito
pedagógico, muitas vezes mal explicando a matéria ensinada, me feriu
profundamente. Como uma reação de desespero, escrevi uma postagem em meu
Facebook e estava prestes a deletá-la quando amigos, mãe de aluna, ex
professora e alguns alunos manifestaram apoio a mim.
Isso me
ajudou demais a não perder mais força em um dia ruim. No dia seguinte, cheguei
sério às salas de aula, em especial na sala onde tive o pequeno conflito com os
estudantes e falei:
-Vocês têm
todos os direitos do mundo de me criticar. Porém sinto que eu quero dar uma
oportunidade para vocês de praticamente leitura, estudar língua portuguesa de
um modo não gramatiqueiro e de produzir em vocês um pensamento crítico
reflexivo. Então espero que as críticas feitas a mim sejam ao menos com
respeito, não usando deboche.
A sala me
olhou com seriedade, pois mesmo sendo um recado provocado por um único
estudante, outros comentários me fizeram tomar a decisão de falar em tom mais
sério com eles. Depois de alguns minutos, algumas pessoas vieram a mim e
disseram:
-Professor,
não mude. Siga sorrindo. O seu jeito torna tudo mais legal.
No minuto
seguinte, eu fazia piada com o fato de minha seriedade se dever ao fato de ter
perdido meu cartão de meia passagem e eu já sofrer por antecipação nos gastos
abusivos com ônibus que terei no mês, o que reduzirá a quantidade de coxinhas
as quais poderei comer. Triste sina. Os alunos riram e de repente tudo
desanuviou.
Ontem,
peguei um livro na biblioteca central da universidade onde estudo. Mesmo diante
da fase do TCC, gosto de ler várias coisas e havia um livro cujo título me
chamava há algum tempo. Poema Pedagógico, de Anton Makarenko, parece ser
uma obra escolhida pelo meu inconsciente para gerar força em mim para as
batalhas da docência. Não há como comparar o grau de problemas existentes na
Colônia Gorki com os que enfrento diariamente, mas ver o autor do livro lidando
com paciência e voz firme quando necessário com estudantes que precisam apenas
de uma oportunidade para se tornarem autônomos e donos de si mesmos me encheu
de emoção mesmo com apenas 67 páginas lidas.
Muitos
pensam que o marxismo de autores como Paulo Freire é o culpado dos péssimos
índices da educação brasileira. Mas na verdade, há pouco de Freire em nossas
escolas. Ele ainda está muito preso ao ambiente acadêmico como elemento de
problematização, porém são raros os espaços onde realmente se ensina para a
autonomia e para a motivação dos estudantes no sentido de se tornarem donos de
si mesmos. A utopia maior marxista não é a sociedade sem classes, mas o efeito
causado por ela: seres autônomos e donos de si, com um trabalho concreto
voltado para a existência individual e coletiva.
O estudante
se sente desmotivado em tempos atuais porque a escola se tornou um ambiente
sucateado por uma série de políticas privatistas ao mesmo tempo que seu currículo
foi modificado, mas não há o devido investimento na formação de professores,
inclusive na continuada. Nesse sentido, muitos educadores chegam cheios de
sonhos ao ambiente docente, logo, contudo, perdendo esperanças diante de tantas
problemáticas sociais com as quais não conseguem lidar. O estudante não vê no
discurso pedagógico formas de entendimento da realidade na qual vive, por isso
tanto encanto com um sorriso de quem se mete a brincar com eles e a entender
seus mundos e a necessidade nós ensinarmos a eles que professores não precisam
chegar com cara amarrada em sala para impor autoridade.
O que tento
fazer é o que Makarenko tenta na colônia: levar o concreto aos estudantes,
fazê-los pensar o seu mundo a partir da língua e da literatura. Seria fácil
demais para mim fechar a cara, encher o quadro de letra cursiva, explicar
brevemente, passar uns exercícios, ir embora e repetir isso ad infinitum,
culpando os estudantes pela problemática educacional em si. Muitos dirão que
isso se dá por eu ser iniciante, mesmo com quase dez anos de trabalho nas
costas. Mas prefiro crer que sempre procurei viver bem com pouco - o que para
muitos é pouco - e ter tempo de ler, ver filmes, séries, sentir o prazer
estético do mundo e falar aos meus alunos sobre a necessidade de ocupar e
resistir a cidade e a escola. Surtiu alguns efeitos bons nesses anos todos:
minhas aulas nunca foram entendiantes e aprendi demais com meus alunos,
inclusive os de pensamento mais reacionário.
Makarenko,
uma de minhas leituras atuais, consegue me emocionar com uma prosa simples, sem
firula, quase um relatório de atividade pedagógica intensa numa colônia largada
pelo governo soviético, acreditando piamente na utopia de seres donos de sua
própria existência, vivendo a sua condenação a ser livre de forma plena. Como
muitas outras obras de arte e de pensamento crítico, o seu livro me faz pensar
que professores devem se fortalecer criticamente ao irem para as ruas,
conversando com seus alunos e explicando a importância de lutarmos e não
esperarmos que as coisas mudem por si sós. Essa luta se dá no plano pedagógico
inclusive, conosco aprendendo mais e mais e compartilhando com o colega ao lado
o pão da fome e o livro para provocar rumo a outro horizonte.
Foi isso que
aprendi com diversos professores e por isso, mesmo reclamando e sendo duro com
muita gente, acredito na beleza da docência, não como dom e sim como escolha
existencial, como projeto de vida. Sei que um dia ouvirei outro aluno dizer que
não sei dar aula e terei de explicar a ele que a sua imagem de professor que
saber impor autoridade é errônea e baseada em pressupostos militaristas tolos.
Autoridade é algo que aprendemos a ter pela socialização e uma sociedade doente
como a nossa prefere a tirania ao livre pensamento na hora de existir. Não
quero isso para meus alunos. Quero que eles sigam a pegar livros na sala de
leitura, trazer seus anseios, me fazer pensar no que virá por aí, enquanto com
um sorriso, mesmo pagando uma passagem mais cara, eu tiro um livro da mochila e
o leio, pensando em como compartilhar com eles o espírito rebelde que a
literatura acende em mim, tornando a vida mais bela em quentes manhãs de sol e
sonolência.
***
Rafael Kafka
é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a
crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o
pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um
apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande,
devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose.
Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e
sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e
resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance,
porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade
natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista
cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e
começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal
do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo
que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande
amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca
ideias sobre essa coisa chamada vida.
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