Os sofrimentos da jovem Lotte
Por Isabel Bellido
O pintor
alemão Wilhelm Amberg retratou em Vorlesung
aus Goethes Werther (1870) [imagem: detalhe], um de seus quadros mais conhecidos e belos, cinco
moças lendo Os sofrimentos do jovem
Werther, de Goethe, tranquilamente sentadas em meio de frondoso bosque
através do qual pode atravessar apenas uma nesga da luz do sol. Uma delas lê em
voz alta enquanto as outras escutam atentas as altas exclamações de Werther – a
de vestido púrpura segura um lenço úmido de lágrimas; outra tem o olhar
distante preso num vórtice de pensamento; por seus gestos, seguramente se
aproximavam das últimas páginas do romance, justamente quando a tragédia alcança
o summum. Com fez Marta Sanz em seu
romance Susana e os velhos (2006),
quando vi o quadro me apeteceu aproximar-me delas para conversar; libertá-las –
ainda que no fundo me comovam – dessas poses afetadas e austenianas, da contenção
da mão sobre o peito, dos lábios angustiados, da cabeça pensativa que cai sobre
o ombro da amiga. Baseando-se na obra homônima de Tintoretto (embora também
outros como Rubens, Rembrandt, Dalí ou Goya tenham feito sua própria versão), a
escritora torce o lenço – ou melhor o sacode – e o traz até o feroz século XXI,
fazendo com ele sua própria releitura.
A obra
representa a bíblica e piedosa Susana – a que vive com seu marido Joaquim no capítulo
13 do Livro de Daniel, Antigo Testamento –, uma bela mulher que dois velhos e
lascivos juízes espionam, perseguem e estupram-na sob a ameaça de acusá-la de
adultério caso se omita de cumprir com os desejos deles. Num ato agudo e vivaz,
Marta Sanz inverteu a ordem da história: faz os velhos dementes e enfermos e
Susana uma geriatra e dona de uma residência para doentes terminais; de
observada a observadora neste jogo de voyeurs.
Mas, tanto tempo depois, desde quando se escreveram os textos sagrados e as
personagens ainda que tenham se movido não saíram do quadro: Susana padece
agora o sofrimento de outras maneiras, sendo julgada por sua forma peculiar de curar,
relacionada precisamente com as práticas sexuais. O romance é sombrio, no sentido
das pinturas goyescas, pessimista, realista e sujo; escatológico, possuidor de
uma erótica rarefeita, decrépita e estridente.
Como reflete
o professor da Universidade de Córdoba, Blas Sánchez Dueñas, em seu artigo “Relecturas y creación desde la subversión: Susana y
los viejos, de Marta Sanz”, no romance, “Susana não se oferece como a mulher
fiel, submissa, passiva e recatada que ante a lascívia dos velhos prefere
morrer a ver manchado seu nome. A personagem de Sanz é ativa, generosa e
diligente frente ao estado de parada, passiva e resignada de sua fonte de
inspiração”. Apesar disso, acaba presa de sua própria origem – o pictórico e o
verbal –, retomando assim o desprezo primitivo do homem por ela, dos “homens, cheios
de si, que mesmo, presos, dariam a Susana uma bofetada ou lhe fariam alguma
insolência. Eu gostaria de escutar o que estarão contando os velhos enquanto
espiam Susana”, como sugere a autora em seu romance.
As jovens do
quadro de Amberg deixaram de ler o Werther
e estão escutando porque, certamente, o tema segue com elas. Embora repousem na
Antiga Galeria Nacional de Berlim rodeadas por obras de arte do século XIX,
neste tempo diferente ainda há que vagar para encontrar suas semelhantes, todas
aquelas que encontramos no Pinterest usando tags do tipo “quadro de mulheres
lendo”; por isso, que lhes incumbem: a arte, e mais especificamente a
literatura, que é o que nos traz aqui, tem sido durante séculos ingrata ou
injusta com elas. Utilizadas várias vezes como recursos passivos do texto – despojando-lhes
assim de todos seus atributos, necessidades e desejos intelectuais ou de
qualquer tipo – ou mesmo apresentadas como seres malévolos, as mulheres de uma
diversidade de textos reclamam hoje, desde seu, muitas vezes, pobre e curto diálogo
uma leitura com perspectiva de gênero que ofereça distintas linhas para conhecê-las
melhor. Os clássicos, todos se livram, e precisamente por sua condição de
imperdurável deveriam ser mais suscetíveis de uma revisão. Ocorre, por exemplo,
com Os sofrimentos do jovem Werther
(Ou simplesmente Werther), o primeiro
grande romance de Johann Wolgang von Goethe, escritor universal e precursor
alemão do Romantismo. Alguém termina o livro, pensa no trágico e excessivo
protagonista – e reconhece, inclusive, ter sofrido com ele –, reflete sobre seu
valor como suspensão do racionalismo e, em última circunstância, é que se
pergunta, e o que acontece com Lotte?
Lotte é a
amada de Werther, o protagonista do romance e, por isso, uma mulher sem voz nem
escolha. A partir disso, o crítico literário Benjamin Bennett encontra motivos
para suspeitar que é “uma parte-corações”, assim afirma em seu trabalho
“Goethe’s Werther: double perspective and the game of life”; outros, como Thomas Saine e Kathleen Warrick culpam
a personagem, diretamente, pelo suicídio do protagonista ou mesmo por desejar
premeditadamente sua morte, tal e como sugere M. D. Faber em “The suicide of
Young Werther”. Todas estas taxativas afirmações datam de finais do século XX e
fora elas é preciso ir a um texto fundamental para compreender o quid desta
história: Lotte é, segundo as noções que nos legou Simone de Beauvoir em O segundo sexo, “o outro”, uma construção
idealizada do homem (Goethe-Werther) que Werther nos apresenta através de uma
de suas cartas para seu amigo Wilhelm:
“Um anjo?
Fora! Todos os homens dizem o mesmo de suas amadas, e contudo eu não estou em
estado de te dizer quanto ela é perfeita, e por que é perfeita: basta que tu
saibas que ela cativou todos os meus sentidos. Tanta simplicidade com tanta
viveza, tanta bondade com tanta firmeza e a alma em tranquilidade no meio de
uma vida real, vida ativa...”
Charlotte –
Lotte – aparece no romance como uma dama possuidora de todas as virtudes e
qualidades do modelo ideal de mulher inteligente e burguesa: um anjo sensível à
música e à literatura; rica, conservadora, boa e precoce mãe de seus oito
irmãos órfãos, além de estar comprometida com outro homem, Albert. Cumpre com
perfeição o protótipo sem evidenciar os limites sociais de seu tempo, já que na
Alemanha de finais do século XVIII a mulher ainda estava subjugada ao sistema
patriarcal e aos deveres familiares, e a tudo isso que vem junto: há coisas que
Lotte, sensivelmente, não pode fazer sem colocar em risco sua reputação para
todo e sempre.
Nas palavras
de Simone de Beauvor em sua obra capital, “esse papel misericordioso e terno é
um dos mais importantes que foram atribuídos à mulher. Mesmo integrada na sociedade,
a mulher ultrapassa-lhe sutilmente as fronteiras porque tem a generosidade
insidiosa da Vida. É dessa distância entre as construções voluntárias dos
homens e a contingência da natureza que prece, em certos casos, inquietante,
mas ela torna-se benéfica quando a mulher, demasiado dócil para ameaçar a obra
dos homens, limita-se a enriquecê-la e amaciar-lhe as linhas por demais acentuadas”.
Por isso, é curioso que, neste sentido complementário ou de outridade,
elementos como as cidades ou as instituições revistam-se de “traços femininos:
a Igreja, a Sinagoga, a República, a Humanidade são mulheres, e também a Paz, a
Guerra, a Liberdade, a Revolução, a Vitória. O ideal que o homem põe diante de
si como o Outro essencial, ele o feminiza porque a mulher é a figura sensível
da alteridade: eis por que quase todas as alegorias, tanto na linguagem como na
iconografia, são mulheres”. Desta forma, “a mulher não é mais carne então, mas corpo
glorioso; não se pretende mais possuí-la, veneram-na em seu esplendor intato;
as mortas pálidas de Edgar Allan Poe são fluidas como a água, como o vento, como
a lembrança; para o amor cortês, para os preciosos e em toda tradição galante a
mulher não é mais uma criatura animal e sim um ser etéreo, um sopro, uma luz”.
É exatamente o que ocorre com Lotte.
Mesmo que ao
longo de quase toda obra fique como uma personagem passiva e sem maior
interesse que o do ser o próprio impulso da narração, a amada do jovem Werther,
não é apenas o centro do seu mundo, também é o do romance. Sem dúvidas, o olhar
unilateral de Werther – o narrador em duas das três partes da obra – provoca
que conheçamos Lotte apenas unilateralmente, como uma simples depositária do
desbrago afeto do protagonista. Lotte, portanto, é outra tradicional musa, igual
ao que Charlotte Buff – a Lotte de carne e osso – foi para Goethe: ele, antes
de escrever sua obra-prima, com vinte e quatro anos, também se apaixonou por
uma mulher casada, mas preferiu fugir em tempo de não ter o mesmo fim da sua
personagem.
O olhar
restringente do narrador, portanto, impede o leitor de ter acesso à subjetividade
da personagem feminina principal, e não só isso; por isso que “a visão de
Werther da alteridade de Lotte – sua diferença de si – exagera sua
sensibilidade, e como a simplicidade é o que agrega, aumenta sua atração”, como
assegura R. Ellis Dye em seu artigo “Werther’s Lotte: views of the other in
Goethe’s first novel”, publicado no volume 87 do The Journal of English and Germanic Philology. Muito além de conhecer
as características básicas da personagem, ignoramos os defeitos, os desejos, as
fadigas de uma mulher que, mesmo desperta e vívida intelectualmente, está
submetida à norma patriarcal e a outros ângulos do triângulo amoroso, o que lhe
impede de libertar-se e decidir livremente se prefere permanecer ao lado de
Albert ou, do contrário, eleger Werther, que nos mostra sua co-protagonista
apenas a partir de narrações de seu ponto de vista, que algumas ocasiões soa como
egoísta e possessiva:
“Wilhelm,
para te falar com sinceridade, jurei a mim mesmo que nunca consentiria a uma
menina que eu amasse dançar semelhantes alemandas com outro que não fosse eu;
ainda que me matasse ali... tu entendes-me”.
Lotte é
ainda mais silenciada na terceira e última parte da obra, quando começa a escrever
“o editor”, isto é, Wilhelm, o amigo e confidente de Werther. Este se converte
numa sorte de narrador onisciente – reforçando o triângulo narrativo masculino
formado por Goethe-Werther-Wilhelm – que nos mostra Lotte apenas com seu
pensamento, angustiada pela abrupta despedida de Werther e sua promessa de não se
verem nunca mais:
“Estava acrescentando
o que se segue, pertencente à carta que dirigia a Charlotte: É pela última vez
que abro os meus olhos: ah! Eles não tornaram mais a ver o sol; uma nuvem
sombria e fúnebre o cobre. Ó Natureza! Envolve-te em luto! Charlotte o teu
filho, o teu amigo, o teu amante está próximo à sua hora derradeira. Charlotte,
o sentimento que experimento agora é único na minha imaginação: está ali
gravado com muita força. E contudo coisa alguma me parece assemelhar-se mais a
um sonho do que dizer eu: este é o último dia. O último, Charlotte, eu formo
ideia que se possa conciliar com esta palavra último! Acaso não tenho eu hoje
toda a minha força?”
Pouco depois
– no fim do romance, depois de ler em uníssono uma passagem de Ossian que exalta o herói sentimental e
romântico frente aos tradicionais protagonistas trágicos das grandes epopeias
germânicas – quando ela “se inclina para ele num arroubo de nostalgia” e se
beijam durante alguns segundos antes de separarem-se e reprovar seu comportamento.
Ele, por sua vez, se mata com o convencimento de que o ama e é sua para sempre,
mas Lotte não exige nada na vida a mais que sua própria paz e a do seu marido,
e seus sentimentos por Werther, distantes do louco amor, “parecem menos uma
questão de Eros ou Ágape de culto e entusiasmo comuns”, sublinha R. Ellis Dye.
Não apenas é
lógica a eleição argumentativa de Goethe (um homem estável que escreve seu
primeiro romance sobre um desengano amoroso em finais de 1700), mas também respeitável.
A identificação com Werther já não é tão poderosa ao ponto de os jovens
imitá-lo em suas maneiras de se vestir ao destino final (naquele tempo chamou o
elevado índice de suicídios com base no romance de Síndrome de Werther) mas é certo
que ainda hoje o leitor continua simpático a Werther e renegando Lotte como a responsável
pelo fracasso desse amor e que todos nós sofremos alguma vez – também neste século
–, por encarnar, junto com Albert, o enfadonho racionalismo do casamento
burguês ao invés das apaixonadas trombetas que anunciavam o Romantismo. Enfim,
uma leitura não crítica de Werther continua
ignorando as pressões contra as quais Lotte precisava combater a cada dia mesmo
que não totalmente consciente disso, tomando-lhe como uma mulher covarde, enquanto
verdadeira heroína romântica que houvesse renunciado a família, a reputação e o
marido por Werther.
Como Marta
Sanz, Pilar Miró teve certa vez a oportunidade de construir sua Lotte em Werther, o filme que dirigiu em 1986
tomando como forma as personagens e a conjuntura da obra de Goethe. Com Eusebio
Poncela como um Werther moderno – sem dúvida mais moderado na postura e na
palavra – e Mercedes Sampietro no papel de Carlota, Miró quis dotar Lotte de
uma melhor condição, independência e fortaleza que a personagem original: Carlota
é no filme uma prestigiada cirurgiã – embora, em poucas cenas apareça sem sua
bata branca como marca disso – que há seis anos está separada de Alberto, seu
ex-marido e pai de seu filho, figura da nova criação na obra de Miró. É claro
que esta adaptação livre honra a obra original copiando seu final sem fazer
apenas algumas modificações, retratando assim de novo Carlota como simples
vítima da confusão amorosa entre dois amantes antagônicos.
Finda o
romance e de Lotte só conhecemos sua dúvida, já que, falta-lhe voz, falam por
ela suas ações. O leitor comum – tirando Virginia Woolf – entende que, embora
ame Albert, não consegue definir seus sentimentos por Werther, quem, sem dúvida
existem e excedem a amizade. Esta indecisão
tem sua justificativa narrativa porque mantém atento o leitor mas os excessos
oferecidos pelo olhar de Werther nos impede de conhecer uma personagem tão
valiosa como Lotte que poderia ter com sua herdeira uma Madame Bovary, escrita
por um homem, Gustave Flaubert (impostando “lógicas e perspectivas”, como diz
Marta Sanz em seu artigo “Nombrar al cuerpo, conquistar el territorio”, referindo-se
a uma espécie de literatura travestida), ou uma heroína romântica como também foram
Elizabeth Bennet de Orgulho e preconceito,
Jane Eyre, do romance de mesmo nome, Jo March de Mulherzinhas ou Anna Kariênina, da obra de mesmo título de Liev Tolstói. Ainda terão que passar muitos anos
para isso – porque Werther está na
fronteira – e outros tantos para que Lotte pudesse, realmente, decidir sobre o
seu destino.
* Este texto é uma tradução livre de "Las desventuras de la joven Lotte" publicado no El País
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