Medeia, de Pier Paolo Pasolini

Por Pedro Fernandes



A obra cinematográfica de Pier Paolo Pasolini é, sem dúvidas, uma dentre as mais ricas de sempre. Ancorada entre o imaginário cultural universal e literário, suas releituras acrescentaram e muito na composição interpretativa e significativa das obras com as quais buscou diálogo. Uma delas, a tragédia de Eurípides, Medeia, que bem mais tarde ganhou outra poderosa versão para o cinema ao ser encenada por Lars Von Trier – em 1988; a de Pasolini é de 1969.

Encenada pela primeira vez em 431 a. C., num concurso teatral em Atenas, a peça, pelas mãos do italiano, ganha outros contornos que ampliam sentidos e possibilidades simbólicas, além é claro, de introduzir na composição imagética, um rosto muito próprio para uma figura de rara força e vigor dentre as criações dramáticas. Nesse caso específico a narrativa adquire os contornos que se ausentam da peça: a vida anterior de Medeia, antes de chegar a Corinto com Jasão e receber as ordens de Creon de exílio, visto que, do pacto entre o rei e Jasão para recuperar o velo de ouro, estava o casamento deste com Glauce, sua filha [do rei].

Assim, Medeia, de Pasolini, é uma tentativa de recompor uma identidade que perpassa grande parte do imaginário grego: a personagem trágica é citada por Hesíodo na Teogonia, onde alude sobre casamento entre Medeia e Jasão, por Píndaro na Olímpica, onde aborda além das núpcias, o seu papel na expedição dos argonautas e em Pítica, sobre sua habilidade em manipular venenos e a morte de Pélias e, pelo próprio Eurípides, quem, em Pelíades, peça centrada no assassinato de Pélias concebido por Medeia e depois em Egeu, onde aborda a estada de Medeia em Atenas e seus planos de assassinar Teseu. Tamanha vivência para com a emulação da morte, deu a Trajano Vieira, o tradutor da peça no Brasil, a compreensão de que com Medeia, Eurípidis se apresenta como um autor moderno pela introdução de um novo temário no teatro trágico – o horror.

A Medeia de Pasolini divide-se em duas partes: na primeira, o cineasta recobra todas as histórias que culminam no dia de horror registrado por Eurípides na peça que guarda o nome da heroína; na segunda parte, a narrativa cinematográfica se detém nos acontecimentos relatados na peça. O cineasta italiano faz questão de evidenciar de maneira muito meticulosa como compreende a narrativa de Eurípides: pelo embate entre algumas extremidades e dicotomias, razão e desrazão / sentimento, a urbe racionalista e o rural arcaico e bárbaro formam duas delas e este não é um traço marcadamente novo na leitura desse filme.

É notável que sua Medeia, figura desterrada, é a que não se ajusta à ordem e à lei dos homens, é a que traz em si todas as forças (talvez as últimas) do tempo imemorial, centrado noutros valores, sobretudo, os do apelo ao poder e não aos desígnios do corpo. Ganha significado então a longa conversa entre Jasão quando criança e o centauro Quíron, seu criador. Isto é, diferentemente de Medeia, cuja educação está estritamente ligada ao ritual e às forças do espírito selvagem (isso é visível na também longa passagem das celebrações no seu reino), Jasão é o educado para o bom uso da esperteza e decifração do enigma dos homens – então, desde Ulisses, sinonímia de razão.

Pasolini parece visitar, ainda para a composição da primeira parte do filme, um texto do escritor alexandrino Apolônio de Rodes, Argonáuticas, sobre a longa viagem de Jasão rumo a Cólquida, onde o rei Eeta, filho do Sol e pai de Medeia, lhe propõe três provas para obtenção do velo de ouro: amansar dois touros selvagens, arar um campo onde seriam semeados os dentes do dragão de Ares de que nasceriam guerreiros armados e enfrentar estes guerreiros. Por fim, Medeia é quem, ao lado do irmão Apsirto, auxilia Jasão e os argonautas na empreitada do rapto do velo de ouro. E, com medo da fúria do pai, foge com eles.

Nesse ínterim, a narrativa perfaz sua própria leitura, sempre apostando no exercício emancipatório da razão e acentuando o caráter bárbaro de Medeia. Por exemplo, no curso da viagem de Cólquida para Corinto, é ela quem mata e espalha os restos mortais do irmão, enquanto que, numa das versões mais citadas, nesse ínterim, Medeia teria planejado a morte de Pélias, tio de Jasão que havia usurpado seu trono; ela teria convencido suas filhas [de Pélias] a esquartejá-lo e cozinhá-lo no que seria um ritual de preservação da juventude. Após a união informal com Jasão na ilha dos feácios – outra tentativa de despistar a família de puni-la dos crimes que cometeu –, ao chegar em Corinto, é quando se apresenta todo o enredo já conhecido: a negação de Jasão em nome de Glauce, a morte desta, do pai e dos filhos de Medeia com Jasão e fuga no carro do Sol para os braços de Egeu.

Além do debate entre razão e desrazão / sentimento, há outro tema que, principalmente agora com o alargamento das discussões sobre o feminismo, ganha fôlego inédito para a leitura tragédia de Eurípides e é acentuado pela Medeia de Pasolini: a grandiosidade da personagem feminina num mundo comandado por homens e a tentativa de ruptura de seu poder em todo périplo da heroína. É Trajano Vieira quem destaca o desequilíbrio entre Medeia e Jasão, opinião que se soma a essa compreensão simbólica da personagem trágica. Ela “foi responsável pelo sucesso de Jasão na expedição dos argonautas. Foi ela quem instruiu o futuro marido nas três provas a que se submeteu. Se dependesse apenas de seus dotes naturais, Jasão teria sucumbido”. A essas condições é possível acrescentar ainda, dentre as subversões introduzidas pela personagem, a de ser aquela que traz para Corinto o ritual arcaico sobre a incumbência modernizante de Jasão, abrindo o reino a outra postura, aquela enunciada pelo centauro Quíron nas lições a Jasão mas ao que parece esquecidas por ele: tudo no mundo é santo. 

Todas as tentativas de Medeia são dissonantes com a normalidade e repetibilidade do status quo e suas atitudes não significam a mera vingança da mulher traída mas respondem por uma necessidade de se fazer notada e não subjugada. Nesse ínterim, mesmo o assassinato dos próprios filhos não lhe incrimina porque ela se coloca como a que foi imiscuída da força de vingar Jasão pelas atitudes que atentam contra sua palavra firmada ante a inocência alheia e os deuses. Também não é este um crime cujo motivo seja o ciúme, porque em relação a Jasão, Medeia não se vê como sua posse e nem tem por ele um laço afetivo (cf. cita Trajano Vieira) – daquele amor que muito mais tarde, já no nosso tempo, poderia ser descrito como romântico.

Logo, é impossível registrar a personagem com um rótulo qualquer que seja. Medeia é sophía, conhecimento das coisas do mundo e de fora dele. A que luta pela sua totalidade (Notem a cena de quando chega à ilha dos feácios com Jasão e os argonautas e ela se isola para buscar pelas vozes dos deuses que durante anos se calam e faz com que pense está ser entregue para ruína; uma perspectiva sobre seu futuro, de certo modo, mas que responde pela condição de ver-se apartada das forças do mundo e de fora dele). A heroína é ainda dotada de um traço intelectual, que conjuga a intuição e a razão, é a que perscruta as saídas variáveis, os caminhos para a sobrevivência, como se deixa perceber por suas ações e pelo diálogo que trava com uma de suas amas, depois de receber o decreto do exílio de Creon e maquinar uma saída que colocaria a casa de Corinto na ruína.

Há uma passagem na Odisseia em que Ulisses consegue derrotar ciclope Polifemo em que este se apresenta, como parte de seu embuste ante o gigante, como Ninguém. Isto é, o herói da epopeia usa da astúcia da palavra a fim de fazer cumprir mais uma saída do desafio imposto ao seu périplo de Tróia a Ítaca. Medeia, é se apresenta como a heroína capaz do uso extensivo da linguagem a fim de conseguir seus propósitos. Por três vezes seguidas ela se desfaz das amarras impostas pelo homem da mesma maneira, pela palavra. Creon concorda-lhe que permaneça mais um dia em Corinto a fim preparar sua mudança; Egeu jura-lhe recebê-la e protegê-la em Atenas no seu desterro; e Jasão aceita-lhe que os filhos entreguem os presentes a Glauce.

A Medeia de Pasolini tal como a original, da tragédia grega, é, portanto, figura complexa e impossível de agarrá-la por um só padrão ou conceito. E, apesar de o cineasta escolher uma via de acesso a apresentação da personagem, não ignora isto. Ele não mostra apenas uma sobreposição de polos das dicotomias, mas num espelhamento que colocam tais polos em relação de extensão e contraste. Outra parte de seu trabalho é, como foi comum às recriações modernas do mito e da literatura clássica, o do deslocar o foco do coletivo para o individual oferecendo-lhe uma amplitude dessa complexidade, mas sem perdê-la das simbologias recorrentes à narrativa clássica.

Nada neste filme é gratuito e nem destituído de pendor simbólico. O traço grego de Maria Callas, sua expressão lírica, a sintaxe da câmera na captura das expressões da personagem em situações que assomam os seus estados psíquicos, a textualidade na marcação dramática, a sonoridade e a cromatografia conferem um tratamento irrepetível no cinema. Mais: corroboram um magistral trabalho tecido com engenho, criatividade e sensibilidade – indispensável ao leitor do texto clássico, ao interessado na relação entre a textualidade verbal e a visual, ou o mero espectador do bom cinema, aquele capaz de favorecer ao exercício de desacomodação da consciência pela cobrança de seu lugar como partícipe no desfiar de sentidos e simbologias exigido pela boa arte.

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