Mães de tinta e papel: onze livros

Arshile Gorki.


Dizem que todas as mães são iguais, só mudam de endereço. Mas, bem sabemos que, quando o assunto é livro, é muito redutor permanecer entregue a essa certeza. Como também dizer quais são os recomendados para elas é outra redução. Tal como a querela sobre os livros infanto-juvenis, não somos ingênuos de apostar que existam grupos assim tão segmentados, entre eles, o de mães que só leem determinadas obras. Os mistérios que envolvem o gosto estão longe de ser aclarados.

Por isso, esta lista agora apresentada gostaria de ser uma lista de livros para o Dia das Mães, mas não ser uma lista de livros para mães. Em parte, são livros que trazem algumas das personagens mães que já se assumem como figuras icônicas no universo literário, noutra parte atentam por investigar a complexa relação entre elas e filhos ou sobre esse sentimento que só elas podem sentir, o que é ser mãe, ou como se porta esse amor materno, tantas vezes sempre definido como desmedido e logo capaz de qualquer coisa pelo bem dos filhos.

É, como toda lista, um conjunto formado por escolhas e, por isso, limitado e não interessado em esgotar os temas suscitados pelo termo numa simples ordem de textos. As indicações são acompanhadas ora das observações citadas em sinopses produzidas pelas editoras que publicam as obras por aqui ora das nossas impressões de leitura. Certamente é um convite a experimentar pela palavra a diversidade criativa de escritores que se interessaram em, de alguma maneira, investigar um tema tão interessante, complexo e variável para a composição da cultura e do imaginário humanos.

A mãe, de Maksim Górki. Há obras que marcam a literatura por seu caráter épico. Esta é uma delas. Não apenas por relatar a transformação de uma mulher oprimida em uma militante em idade avançada, mas por trazer uma reflexão atual e profunda aos leitores sobre o processo da revolução socialista, na Rússia, e a importância da participação das mães na luta contra as injustiças. O romance foi escrito em 1907, inspirado em acontecimentos reais: a manifestação do 1º de Maio de 1902, na cidade de Sormovo, e o subsequente julgamento dos jovens trabalhadores pela repressão czarista. As personagens centrais desses acontecimentos – o operário Piotr e sua mãe, Anna– passam da tragédia familiar e alcançam a força épica da luta de classes. A obra é um retrato dramático e fascinante da luta revolucionária vista a partir da ótica da mulher oprimida que conquista a participação política na luta de classes.

Cantiga de findar, de Julián Herbert. O título, no Brasil, integra a coleção Outra língua, editada pela Editora Rocco. Seu autor é dos poetas mexicanos mais importantes da atualidade e com este livro ganhou o Prêmio Jáen de romance e o Prêmio Elena Poniatowska, em 2012. O romance explora um filão literário moderno que já desfruta lugar cativo no rol do temário tradicional: a narra em que se cruzam verdade autobiográfica e ficção, resultando, no caso específico desta obra, numa ambiguidade fascinante. Enquanto cuida da mãe com leucemia, um homem chamado Julián Herbert escreve sobre ela, uma mulher que ganhou a vida como prostituta, e rememora a vida pregressa de mãe e filho pelo México. Este é um romance que, a um só tempo, é magnífico e doloroso. Pretender falar de nossa mãe sem falar de nós mesmos é uma tarefa quase impossível. E talvez, por isso, ciente dessa impossibilidade, Julián perfaz sua biografia pela estreita relação dela com a mãe Guadalupe Cruz. Nesse itinerário revela-se ainda um México violento e entregue à corrupção.

O quinto filho, de Doris Lessing. Harriet e David Lovatt têm os mesmos anseios – fidelidade, amor, vida familiar e, acima de tudo, um lar. Teimosamente fora das modas dos anos 1960, decidem casar e assentar as bases das suas vidas numa casa vitoriana. A princípio, parece o paraíso. As crianças preenchem-lhes o cotidiano, e os familiares sentam-se à mesa da cozinha no Natal, desfrutando avidamente do calor humano da família Lovatt. Mas é com a quinta gravidez que as coisas começam a alterar-se. O bebê desenvolve-se dentro de Harriet demasiado cedo e com demasiada violência. Após um nascimento difícil, Ben revela-se uma criança estranha e cruel, cuja violência é instintivamente rejeitada pelos irmãos. Lessin, Prêmio Nobel de Literatura, confessou que suou sangue para escrever este romance, descrito por ela como “uma história de terror”.

Nora Wbester, de Colm Tóibín. Ambientado na Irlanda, este romance apresenta a formidável Nora Webster. Viúva aos quarenta anos, com quatro filhos e pouco dinheiro, Nora perdeu o amor de sua vida, Maurice, o homem que a resgatou do mundo acanhado em que foi criada. E agora ela teme ser arrastada de volta para esse universo. Ferida, determinada, inclinada à discrição numa comunidade onde todos querem saber da vida de todos, Nora afunda na própria dor e fecha os olhos ao sofrimento dos filhos. Mas ainda assim ela tem momentos de impressionante empatia e bondade, e, quando volta a cantar, depois de décadas, encontra um consolo, uma causa, um porto seguro – ela mesma. Um romance sobre recomeços vitais em toda regra para uma mulher cuja dor e reinvenção assistimos como leitores. O romance de Tóibín é uma obra-prima de construção de personagem e ponto máximo na obra de um escritor no auge de sua carreira e a protagonista foi inspirada na sua mãe.

O filho da mãe, de Bernardo Carvalho. Este romance orquestra uma multiplicidade de vozes e pontos de vista, sem nunca perder de foco o motivo recorrente da maternidade, imbricado com o seu avesso: o sentimento de orfandade, de desamparo e desajuste, cuja representação mais crua é a guerra. "As mães têm mais a ver com a guerra do que imaginam", diz a certa altura uma personagem. O livro, de certo modo, é a demonstração poética disso. Embora o pano de fundo da história seja a segunda guerra da Tchetchênia, em 2003, Carvalho volta-se neste romance à figura da mãe, ao tema da maternidade. Serão as mães, moduladas e refratadas nas diversas histórias que aqui se entrelaçam, o fio condutor de uma trama singular, cuja ação se expande vertiginosamente no tempo e no espaço. Do Oiapoque ao Nieva, de Grozni ao mar do Japão, chegam os estilhaços desses dramas nucleares de mães culpadas, filhos extraviados e pais tirânicos ou ausentes. Todas as personagens parecem, em alguma medida, estar fora do lugar, em famílias e países alheios – daí a força que adquire, no contexto, a figura monstruosa da quimera, aberração rejeitada pela natureza e pelo homem. 

Um amor incômodo, de Elena Ferrante. Que impressões de mãe ficam registradas num filho para além do DNA? Delia, que nutre um sentimento de querer libertar-se da mãe, descobre, ao acaso que Amalia está morta. Ao voltar a cidade natal a fim de conduzir os procedimentos com a sepultura da mãe, ela mergulhará num turbilhão de memórias, afetos, desafetos, histórias contadas, vividas e inventadas cujo interesse recai na compreensão de que na sua memória, história e imaginação a figura materna está ainda viva, repetível e perturbadora. Como se não fosse incapaz de separar-se dessa outra, que muito de si, Delia mergulha numa diversidade de episódios que a princípio teriam a função de libertar-se da mãe e ser ela própria. Mas, como é possível se desvencilhar de alguém que, em toda parte, lhe acompanha – seja pela idealização contínua que faz da mãe desde a infância aos titubeios marcados pelas impressões alheias atribuídas de maneira pejorativa sobretudo por um pai violento e machista e um tio capaz de acreditar que as mulheres são as responsáveis principais por todo mal que há no mundo, desde a origem de todas as coisas.

Em teu ventre, de José Luís Peixoto. O mito mariano é, sem dúvidas, um dos de maior culto no cristianismo moderno. A imagem da mãe de todos, generosa, submissa e capaz de passar tudo no bem interesse de servir de ordem ao mundo e paz aos homens serviu de alimento para uma série de histórias sobre a descida à terra de Nossa Senhora, interessada em renovar esses seus votos maternos para com a humanidade. Um dos episódios mais marcantes, nesse imaginário é das aparições em Fátima, Portugal, em 1917. Alimentado das diversidades de significações que o registro da relação materna propicia a crentes e não crentes, o escritor português recria a vida das personagens envolvidas com os episódios parte já do imaginário de seu país, para refletir sobre as relações entre mães e filhos – desde a concepção à educação e convívio para a vida. Uma das experiências literárias mais poéticas de José Luís Peixoto.

Ana terra, de Erico Verissimo. "Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando", costuma dizer Ana Terra, que reside com os pais e os dois irmãos numa estância erma do interior gaúcho, na segunda metade do século XVIII. O cotidiano dos Terras é duro, penoso, arriscado. Tiram sustento da colheita. Calculam a passagem do tempo observando a natureza. Vivem sob o perigo de ataques de índios ou de renegados castelhanos, estes últimos recentemente expulsos do Continente de São Pedro.  Ana Terra, única filha mulher, é impedida de comprar um espelho, "coisa do diabo", objeto fútil nesse ambiente austero. Sem ter onde mirar-se, só pode contemplar sua figura na superfície do regato onde lava a roupa da família. É nesse regato que ela depara com Pedro Missioneiro, ferido à bala. Mestiço de índio nascido numa missão jesuítica, Pedro lutara ao lado dos estancieiros pela expulsão dos castelhanos. Após restabelecer a saúde, pouco a pouco vence a desconfiança dos Terras e a repulsa de Ana, para quem sua "presença era tão desagradável como a de uma cobra". Sem perceber, a moça enamora-se de Pedro, uma atração trágica e irresistível que muda a vida da família Terra para sempre. Ana será a grande matriarca da saga O tempo e o vento.

As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta. Na década de 1980, autoras africanas anglófonas, exploraram já os deveres e gratificações maternos, assim como a sua obrigatoriedade socialmente imposta. Este romance de Emecheta revelou como na África a identidade feminina é determinada pelo fato de ser mãe e desmistificou a carga unicamente positiva ligada à maternidade. Nnu Ego atribuía ao seu chi, o seu deus pessoal, o seu destino conturbado de menina, mulher, estéril no primeiro casamento mas tornada mãe de vários filhos aquando do segundo. Sabia que o seu chi era uma mulher, não só porque somente uma mulher castigaria outra tão rudemente mas também porque muitas vezes lhe haviam relatado na sua terra, Ibuza, que o seu chi era uma escrava que fora sepultada viva com a sua falecida dona. Esta mulher-mãe vive uma história cheia de percalços, dificuldades em sobreviver à miséria e à fome que sucessivas vezes se vai instalando no seu percurso de vida, às privações, às desavenças com o marido, à morte e doença de filhos e, por último, à ingratidão de alguns deles por quem tanto lutou e de quem esperava comportamentos diferentes. Mas as alegrias da maternidade foram preenchendo e fazendo história na vida desta mulher lutadora cuja vida revemos neste conjunto de páginas repletas de uma escrita deliciosa, envolvente, clara e realista e com um humor muito peculiar. O quadro de vida apresentado nesta obra, muito graciosamente dedicado «A todas as mães» pela autora, espelha as múltiplas facetas da mulher-mãe ansiosa por descobrir as alegrias da maternidade e que vive exclusivamente em função dessa maternidade e para essa maternidade, sem tempo de sobra para cultivar amizades e cujas alegrias muitas vezes são transformadas em sofrimento alegremente sentido, porque o mais importante para a mulher igbo é a concretização da maternidade.

Amada, de Toni Morrison. Este é o romance mais conhecido da escritora estadunidense Prêmio Nobel de Literatura de 1993. A história se passa nos anos posteriores ao fim da Guerra Civil, quando a escravidão havia sido abolida nos Estados Unidos. Sethe é uma ex-escrava que, após fugir com os filhos da fazenda em que era mantida cativa, foi refugiar-se na casa da sogra em Cincinatti. No caminho, ela dá à luz um bebê, a menina Denver, que vai acompanhá-la ao longo da história. Amada tem uma estrutura sinuosa, não-linear: viaja do presente ao passado, alterna pontos de vista, sonda cada uma das facetas que compõem esta história sombria e complexa. Considerado um clássico contemporâneo, faz um retrato a um tempo lírico e cruel da condição do negro no fim do século XIX nos Estados Unidos.

Terra sem mapa, de Ángel Rama. Este livro é descrito como um tributo à mãe do autor, Carolina Facal, imigrante galega como seu pai, e tem a história de sua gênese inscrita nos capítulos de abertura e fechamento da narrativa, "Entrada" e "Adeus", narrados em primeira pessoa por uma voz que se confunde com a dele. Para Fábio de Souza Andrade, “trata-se de uma reinvenção ficcional de relatos da infância da menina que foi a mãe, na Galícia do primeiro quartel do século 20, precipitada justamente pela notícia de sua morte que, por ironia, alcançou Rama no desembarque de sua primeira visita à Europa, em 1955. Composto em quadros quase autônomos, o livro traz uma evocação viva do cotidiano de um vilarejo rural espanhol, a partir da ótica de Lina, órfã de pai e cheia de irmãs, numa casa pobre, só de mulheres. Atravessada por uma religiosidade santeira e supersticiosa, pelas vozes rumorejantes da província, sua descoberta do mundo alterna uma participação feliz no ritmo arcaico, imemorial, da vida livre no campo galego (com suas mulheres cobertas de preto, aparições e duendes amarrando rabos de vaca), com o aprendizado do mundo torto, em que cabem destinos individuais tolhidos por variadas formas de injustiça, estas muito presentes. Ocupando-se de ilhas de lembranças descontínuas, mas de vocação totalizante, Rama pereniza a memória da mãe, dá-lhe consistência simbólica de trajetória exemplar”. 

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