José Américo de Almeida: literatura se faz também com engajamento
Aconteceu com
a literatura brasileira um fenômeno que terá se manifestado em grande parte das
literaturas ao redor do mundo. Trata-se da integração no material literário de
elementos concernentes à realidade histórico-social do país. No nosso caso, tal
interesse remonta ainda ao período quando os intelectuais, filhos do país,
insistiam em demonstrarem-se capazes de produzir uma literatura à maneira da
produzida pelos europeus. A isto que Antonio Candido chamou de literatura empenhada cujos ecos são escutados
no interior de projetos como os oferecidos pela cena modernista, e que visam estabelecer
uma compreensão acerca de nossa identidade e do nosso sentido enquanto nação culturalmente
livre, é possível acrescentar o que ficou conhecido por literatura engajada.
Isto é,
apesar de contextos e situações bastante distintas, cada uma delas guardou uma
preocupação: revelar o Brasil, reconhecê-lo em sua pluralidade e discrepância.
A partir dos anos 1930, por exemplo, destacou-se um dos movimentos mais significativos
da era quando já havíamos nos recuperado do trauma da comparação inevitável entre
o produzido aqui e fora daqui. Formado por escritores como Rachel de Queiroz,
Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado – mas sem agremiações, é bom
que se destaque isso – os interesses de suas obras estavam em reanimar uma
linha de criação estética que começou a ficar visível a partir de obras como as
de Franklin Távora e Euclides da Cunha.
Esta linha consistia
em concentrar os olhos sobre o país e investigar suas nuances, positivas ou
negativas – estas mais que aquelas – e oferecer outra linguagem, genuinamente
nossa, com a riqueza e a diversidade de nossa fala, situada entre o popular,
rústico, e o erudito, sofisticado, em grande parte composição de uma terceira
língua, a inventada pela fusão dessas duas, e capazes de expressar de outra
maneira, mais significativa e plural, nossos jeitos e modos. Se a tarefa da
literatura estava, na ocasião, marcada, sobretudo, por um interesse de cunhar
novas formas e objetos, esse território, portanto, continha muito o que ser explorado
e não à toa significou um dos momentos mais valiosos da nossa criação.
Entre os
primeiros nomes desse período que antecede a literatura de corte regionalista,
acrescente o nome de José Américo de Almeida. Seu romance A bagaceira foi lido por Otto Maria Carpeaux como o que “abriu nova
fase na história literária do Brasil”. Filho de engenho, nascido na Paraíba, em
janeiro de 1887, toda sua obra constitui-se de um interesse ao mesmo tempo de dar
a conhecer o interior de um país, ocultado porque o olhar ou só via as influências
exteriores ou se reduzia à pequena parte do Brasil composta pelas regiões Sul e
Sudeste, e denunciar o que, por não ser mostrado, se perpetuava às expensas: o
horror da expropriação do homem pelo homem e o sufocamento do camponês pelas
agruras dos poderes inclementes da natureza e da política, sempre acomodada no
jogo de interesses individuais e em favor dos grandes, sobre a pequena parte
expropriadora.
Esse espírito
de denúncia não ficou restrito à literatura. Envolvido com a possibilidade de
fazer alguma coisa efetiva para modificar a péssima realidade do país, sobretudo
a da região sertaneja do Nordeste, tomada pela extrema miséria e toda sorte de
mazelas sociais decorrentes da seca, José Américo envolveu-se com a política.
Esteve à frente da secretaria de governo, e, logo depois, na secretaria de
Interior e Justiça do que então se chamava presidente da Paraíba, João Pessoa; foi eleito deputado
federal, mas teve seu mandato dissolvido numa retaliação produzida pelo governo
federal contra a Aliança Liberal, da qual a Paraíba fazia parte. De volta ao estado,
foi nomeado secretário de Segurança Pública. Depois, fez parte da comissão da
Revolução de 1930 no Norte e Nordeste, interventor do estado até a posse de
Getúlio Vargas, Ministro da Viação e Obras Públicas do Governo Provisório, onde
melhor pode agir em favor do combate aos efeitos da seca de 1932. Foi ministro
do Tribunal de Contas da União e candidato à presidência da República em 1937,
tendo perdido para golpe de estado neste ano – situação que o fez desacreditar totalmente das ações políticas
no seu país e devotar sua vida ao silêncio dos livros e do interior da família.
José Américo e Jorge Amado |
O gesto do
silêncio, só rompido em 1945, quando concedeu uma entrevista ao jornal Correio da manhã, na qual sondava a
queda do Estado Novo, muito se compara à reclusão de Lúcio, espécie de seu alterego
em A bagaceira, seu romance mais conhecido,
publicado em 1929, depois de passar quatro anos à espera de editora. Na obra, o
rapaz, volta ao engenho depois da morte do pai e estabelece na propriedade um
sistema próprio de divisa de terras ao abrigo dos sertanejos que migravam para
a zona da mata em busca de alguma condição de trabalho. O gesto de Lúcio difere
do do pai, interessado apenas na mão-de-obra porque guardava consigo a ideia de
que o homem do sertão era falso e na primeira notícia de chuva em suas terras ia
embora do engenho, colocando em risco a produção de todo um período. Para Lúcio,
a terra serve para oferecer dignidade e não injustiça ao povo.
José Américo
percebe, tal como a personagem que nenhum gesto de bravura é capaz de
transformar uma realidade condenada a ser a mesma por outras forças de maior
poder; logo, a atuação deve se desenvolver noutra frente – no seu caso, a
estima que dedicou à palavra foi-lhe uma saída honrosa e uma maneira de não se
entregar de um todo ao apagamento de seu ideal político por um mundo mais justo.
Além de A bagaceira, romance que
retrata o embate de forças históricas, antropológicas e políticas entre o
brejeiro e o sertanejo (e no qual o narrador dá a vitória ao do Sertão), há uma
diversidade de outras obras que sistematizaram a obsessão do escritor com sua realidade.
Primeiro com
os livros Reflexões de uma cabra, Coiteiros e O boqueirão, trilogia que, na pausa de entre 1922 e 1935, datas em
que foram publicados o primeiro e os dois últimos títulos, respectivamente, deu
cor ao romance A bagaceira. Nesse
ínterim também foram publicadas outras
obras de corte ensaístico e sempre em busca de uma compreensão sobre a Paraíba
e os paraibanos. Mas, Reflexões, que
marcaria de um todo sua estreia como escritor, saiu primeiro na revista Nova Era e trata-se de uma novela satírica
sobre o comportamento dos nordestinos emigrantes. O outro, Coiteiros, ficcionaliza uma preocupação da qual foi protagonista no
Brasil, a reflexão sob o ponto de vista sociológico do fenômeno do cangaço no
Nordeste revelada no livro de 1923, A Paraíba
e seus problemas. A obra retrata a ação de cangaceiros nos confins da
região nordestina. E, O boqueirão, concentra-se,
além desse tema, no da construção dos primeiros açudes e da cultura irrigada para
suprir a seca no sertão.
A bagaceira foi o título que o revelou
fora de seu estado. Além de receber acaloradas críticas pelos mais importantes
nomes da crítica de seu tempo, a obra é importante porque alberga uma
diversidade linguística em parte perdida e em parte em acelerado processo de
perda pelas elevadas transformações que empurraram no fluxo das emigrações a
população rural para os centros urbanos e a imposição da norma culta e gramatical
como padrão oficial de comunicação (marca disso o extenso glossário com termos
desse vocabulário que serviu inclusive a Aurélio na composição do Dicionário da
Língua Portuguesa no Brasil). Além disso, o espaço que pareceu servir de exercício
criativo capaz de traduzir em ficção todo o registro ensaístico de suas vivências
com a gente do interior, ultrapassou as fronteiras: não apenas nos coloca em
relação com a gente brejeira e sertaneja, como nos coloca ante uma clara denúncia
sobre a omissão pública para com o seu povo e logo o ideal de nação conceituado
pela Constituição.
Além dos
romances e do ensaio (A Paraíba e seus
problemas), das memórias (O ano do
Nego, Antes que me esqueça e Sem me rir, sem chorar), José Américo
publicou poesia, que foi reunida na antologia Quarto minguante. Aí descreveu sua intimidade com o silêncio nos
anos que se dedicou integralmente à literatura na sua casa na praia de Tambaú,
em João Pessoa: “Andar é tudo que faço / Nesta praia, nesta areia. / E depois
olhar meu traço / Até vir a maré cheia [...] Já escrevi minha história. / Já
fui trunfo, já fui rastro / E hoje minha trajetória / É simplesmente esse
rastro”. O escritor morreu em dezembro de 1980.
Ligações a esta post:
>>> Veja curta preparado pelo escritor Fernando Sabino sobre José Américo da Almeida
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