Ernesto Sabato, algum testamento
Há muitas faces
que definem Ernesto Sabato. E duas delas são suficientes para ressaltar sua
grandiosidade para a literatura: ser o autor de O túnel (1948), Sobre heróis
e tumbas (1961) e Abadon, o
exterminador (1974) e o homem atormentado e horrorizado que presidiu a Comissão
Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) em seu país natal. Juan Cruz,
ao lembrar sobre o escritor para o jornal El
País, disse que “Ernesto Sabato
era um homem triste; de tão triste parecia que essa era sua natureza; mais que
seu corpo, seu olhar, suas palavras, mais que tudo isso, Sabato era fisicamente
triste”. A tristeza estava no lugar de pouco à vontade no mundo. Aliás, como se
pode ficar à vontade quando a humanidade é toda barbárie?
Descendente
de pai italiano e mãe albanesa, Sabato deixou ainda outras obras de grande
importância para a literatura latino-americana; além de romancista, foi o autor
que escreveu uma extensa e variada obra ensaística na qual tratou sobre seu
trabalho e a relação com a literatura, bem como a estreita atenção que manteve com
o temário da condição humana e os nebulosos tempos de obscurantismo político.
Num desses textos, lido por ocasião de quando obteve o Prêmio Cervantes, em
1984, chamou ao Dom Quixote de “simples mortal, terno desamparado, andarilho, o
homem que alguma vez disse que pela liberdade, assim como pela honra, pode-se e
deve-se aventurar a vida”. Uma releitura de si: ele próprio teve uma vida
andarilha, marcada pela literatura e por seu compromisso ético que, no fim da
vida, levou a declarar-se mais próximo do anarcocristianismo que do ativo comunismo
de sua época da juventude.
Ernesto
Sabato chegou ao romance quando viu a possibilidade de salvar-se do beco sem
saída onde havia se metido. Essa constatação aparece em Nós e o universo (1945) e seis anos depois em Homens e engrenagens (1951). O escritor começou sua vida
profissional como físico, em Zurique, na Suíça, mas rapidamente trocou de ofício
pela atividade literária alimentada com a sua amizade com o Grupo Sur, onde conheceu
Victoria Ocampo e Jorge Luis Borges, com quem manteve uma relação sempre conflituosa
mas que deu origem, em 1976, a um belo livro intitulado Diálogos com Jorge Luis Borges.
Seu primeiro
grande romance, O túnel, trata-se de
um agudo ensaio psicológico, cheio de ironia, mas também da amargura e do
pessimismo que marcaria toda sua obra posterior. Este livro lhe proporcionou um
imediato reconhecimento não apenas na Argentina mas internacional. Seu segundo
romance, Sobre heróis e tumbas inclui
seu grandioso Informe sobre cegos,
título este que serviu a alguns incautos
para acusar ao amigo José Saramago de tê-lo plagiado na escrita de Ensaio sobre a cegueira. Polêmicas e
fofocas à parte, o livro de Sabato serviu para confirmá-lo como um autor
extremamente original e o colocá-lo entre os grandes nomes da língua espanhola.
Na realidade,
o problema de estar num beco sem
saída não se resolve com a literatura porque ele, vê-se, o inclui
definitivamente na sua obra. E mais: torna a obra uma tentativa de apreender e
tornar comunicável esse inescapável abismo onde se meteu e que na sua opinião o
separa da ciência: o humanismo. Desde o abandono da ciência, o romance o
permite refazer-se no coração da verdadeira existência. Talvez não reste outra
alternativa a um homem desiludido do espírito científico que não se refugiar na
arte. Nela pode encontrar a sede de mistério da existência. Ainda mais quando
esse homem, Sabato, pertence à geração dos que nunca acreditaram na crise do
romance mesmo que nos anos setenta tenha sido um dos que se rebelaram contra a
ditadura estética em voga – o nouveau
roman (Três aproximações à literatura
de nosso tempo, de 1969). Sempre salvaguardou sua obra de todas as
tentativas de definição e redefinição porque nunca deixou de duvidar que fosse
o romance o espaço ideal para arejar os demônios do homem contemporâneo.
“De tanto
representar pensamentos de importância, a longa carreira de Sabato tem, ao que
parecem anos luz um do outro, poucos romances: O túnel, Sobre heróis e
tumbas e Abadon, o exterminador.
Nenhum mais. Tem demasiadas coisas que ser, pensar e representar para
conformar-se em ser apenas um romancista”, escreveu José Donoso sobre o
escritor. Sua obra ensaística, entretanto, é ampla. Além de Nós e o universo e Homens e engrenagens, escreveu, entre outros, A face do peronismo (1956), Romance
da morte de Juan Lavalle, Cantar a
gesta (1966), A cultura na
encruzilhada nacional (1973), Antes
do fim (1998) e Espanha nos diários
de minha velhice (2004).
Em seus três
romances, o homem se converte em ser, suas personagens em indícios metafísicos
e suas tramas em itinerários infernais. Para Sabato, o homem é um mistério
sobre o qual vale a pena se interrogar. A partir do mistério o homem deve
combater todo o racionalismo sectário. Assim aproveita o escritor o surrealismo
e a maneira camusiana de concepção da narrativa romanesca. Apesar de não gostar
de epígonos, eis um escritor à moda engajada – uma das peças raras ao
questionamento das consciências: “Claro, nem todo romance produz no leitor a
mesma quantidade de perturbação. Os grandes romances são aqueles que nos deixam
diferentes do que éramos antes de lê-los”, disse.
Coerente,
persistente na busca pelas verdades e pessimista no diagnóstico moral do
presente, assim pode-se definir Sabato homem e escritor. Sábato autor de A robotização do homem (1981). Sabato
autor das revelações sobre os porões da ditadura argentina, registradas, parte
delas, em Nunca mais, terrível e
dolorosa crônica da investigação sobre os desaparecidos durante o regime
militar de Jorge Videla. E Sabato autor de Antes
do fim (1999), um texto autobiográfico, pessimista. Nestes três títulos,
aliás, lê-se um escritor radical na premonição acerca do futuro, desesperançado
e interessado em não deixar morrer na juventude argentina o triste passado de
seu país.
Assim, a
vida e a importância de Ernesto Sabato não se compreendem sem sua faceta de
lutador pelos direitos humanos. Isto é, escritor e homem crítico de seu tempo
estão galvanizados na mesma pessoa. E pensar que este mesmo Sabato ainda nutriu
algum interesse pelo regime; foi logo nos primeiros meses do golpe e na mesma
ocasião do flerte de Jorge Luis Borges com o general Jorge Videla. O escritor
mudou de opinião ao conhecer os contínuos assassinatos e abusos contra os
direitos humanos protagonizados pela ditadura e assinou todos os
abaixo-assinados que pode reclamando a aparição dos sequestrados políticos.
Depois da
ditadura, recebeu a tarefa do primeiro presidente democrático da Argentina, o
radical Raúl Alfonsín, para fazer parte da recém-criada CONADEP. A equipe sob
sua supervisão recolheu o testemunho e documentou minuciosamente 8 960
desaparições e a existência de 340 centros de detenção ilegal e de tortura. Nunca mais, entregue ao governo em 20 de
setembro de 1984, deu origem a abertura de processos e condenação dos máximos
responsáveis pelas juntas militares durante a ditadura, mandados para prisão.
Sabato sempre se opôs às leis de Perdão Político e aos indultos concedidos
posteriormente pelo peronista Carlos Menem. Esse longo processo levou o
escritor a padecer, durante anos, com uma forte depressão e a passar seus últimos
dias recluso em seu domicílio sem escrever nada.
Foi quando
mais se dedicou à sua outra vocação artística – a pintura. “A razão serve para
a existência”, dizia. Nunca quis ser rotulado por nenhuma tendência literária:
“Tenho pela literatura a mesma relação que se pode ter um guerrilheiro com o
exército”. E nunca deixou de acreditar no homem, “apesar de ser o animal mais
sinistro”. “A vida é tão curta e o ofício de viver tão difícil, que quando
começamos a aprendê-lo já é necessário morrer”, se queixava.
Agora, por
sobre todas estas considerações e tantas outras, Ernesto Sabato é e será o
autor referencial de Sobre heróis e
tumbas. Este romance que tantas discussões e interrogações abriram levou do
escritor argentino treze anos de trabalho infatigável. Para muitos de seus
compatriotas este é o romance de Alejandra Vidal. Para outros, a narrativa
iniciática de Martín del Castillo. Para alguns o desassossegante, o mais de mil
vezes lido, relido e reinterpretado, Informe
sobre cegos. Para todos, a metáfora de uma Argentina de história convulsa,
trágica e cheia de enigmas políticos. Naturalismo, ironia, sarcasmo, a busca de
um sentido existência, o enfrentamento niilista ante o que não se pode
explicar.
Para Juan
Cruz, a obra de Sabato “tem nas contradições do ser humano, nos medos pelo
vazio que também conviveram em sua pintura, a essência de suas imaginações, que
foram tão obscuras como as predições que fazia do destino dos homens,
condenados à cegueira, à mesquinhez e ao esquecimento”. As tentativas de traçar
um perfil do escritor fora dessa condição serão só tentativas. Há muito que
nele descobrir e as pistas estão numa obra que não se prende ao esteticismo mas
propositalmente o revela enquanto homem entre os homens e homem de consciência.
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