Em teu ventre, de José Luís Peixoto
Por Pedro Fernandes
Em teu ventre, de José Luís Peixoto é um
romance que pertence à categoria dos enganos produzida pela publicidade. A
edição portuguesa afirma que esta é uma obra que “retrata um dos episódios mais
marcantes do século XX português: as aparições de Nossa Senhora a três crianças,
entre maio e outubro de 1917” e acrescenta que “este livro propõe uma reflexão
acerca de Portugal, naquilo que tem de mais subtil e profundo”. Esta sinopse se complica ainda mais
quando o livro chega ao Brasil com uma capa que muito aquém daquela imagem
poética da edição original exibe a imagem do registo historiográfico, isto é, a
fotografia das crianças de Fátima.
Mas deixando de fora os jogos editoriais de
promoção da obra, que não é este o interesse deste texto e sim a inquietação de
um espírito que guarda certo carinho e zelo pelo trabalho dos escritores,
guarde o leitor mais exigente uma recomendação: abstrair-se disso tudo o levará
a uma descoberta fabulosa. Sim, Em teu
ventre é uma poderosa fábula que integra em sua composição o fato religioso
de 1917. O que isto significa dizer é que esta obra não se trata de uma reconstrução ficcional
sobre as aparições de Fátima, apesar de ser a história das personagens
envolvidas com esses acontecimentos. As leituras que se fecham apenas nesse elemento castram o texto no que há de mais interessante e significativo. A própria maneira como se porta as três
vozes narrativas – distanciadas e indefinidas – comprovam isso. José Luís
Peixoto empreende uma livre interpretação sobre o mito da alma mater, revelando suas acepções e suas contradições.
Cabe expor
a maneira como o escritor construiu essa narrativa capaz de figurar entre os
objetos mais complexos engendrado por sua criação literária. A narrativa desenvolve-se
em torno dos fenômenos de Fátima mas não nutre interesse algum em corroborá-los
ou negá-los. A literatura é de natureza herética e sua é preocupação é a
figuração, sem se ater ao enfadonho debate entre o acontecido e o não acontecido.
Faz sentido então a citação de Alain Badiou colocada logo à entrada de Em teu ventre: “Nada pode atestar que o
real é real, nada senão o sistema de ficção no qual ele desempenhará o papel de
real”. Isto é, importa aqui não o narrado, mas a maneira como se narra – este
precisa se portar com a autenticidade.
O compromisso da ficção com a realidade
é nenhum porque sua lógica conciliada pela interação dialética entre o
imaginado e o acontecido é uma terceira via na qual nem uma e nem outra prevalece.
Significação, seu valor é o de ser real aos sentidos de quem a toca.
Interpretação, seu valor é o de ser ou se fazer coerente a quem lê. Ao dizer
isto, constata-se que o mesmo o discurso determinista da publicidade da obra
tem seu valor no âmbito da interpretação. Sim, porque se o propósito do escritor
não foi refutar ou concordar com os acontecimentos também não foi propor uma
via entre o registro historiográfico ou o meramente ficcional. Há outras delicadezas
recorridas pela narrativa que rompem com o episódico ou factual.
A primeira voz
que abre o romance forma parte dos narradores bíblicos. Perene, exerce a função
de intervir na narrativa principal sempre que encontra possibilidade de uma
reflexão mais de corte filosófico: a esperança (seg.1-2), tristeza da mãe pela
perda e sua relação com o filho (seg.3-4), a vida (seg.5), o significado do nome (seg.6), a recompensa/
consolo (seg.7), o exercício da criação materna (seg.8), a vontade divina
(seg.9), a variabilidade da vida (seg.10), palavra e ação (seg.11-14), o olhar
(seg.12), a lei (seg.13), bem e mal, pecado, perdão (seg.15, 16-17),
entendimento (seg.18). É dessa maneira que esses segmentos guardam as
proporções do versículo. Agora, diferentemente das vozes bíblicas marcadas pelo
tom masculino, a voz dessas passagens é eminentemente feminina: à primeira
vista um evangelho segundo Lúcia, a que almeja aprender a ler e escrever para
melhor traduzir as vozes de Nossa Senhora; assim, um evangelho segundo Lúcia cuja
voz é a de Nossa Senhora. Outra vista, um diálogo impessoal entre a mãe e a criação
e em que esta última assume o papel (seg.17) do perdão por se voltar contra o
esteio materno. Ainda: diferente do tom inquisitorial e da interdição da voz
bíblica, aqui o tom é o da reflexão e renovação dos valores fundamentais à
liberdade, uma vez ser este um evangelho
da esperança.
Logo somos colocados
ante a narrativa das personagens protagonistas do fenômeno de Fátima. O dia-a-dia da
extensa família de camponeses que divide a terra com despossuídos para a agricultura
e subsistência. O trabalho, os sonhos infantis, os divertimentos, a
religiosidade, a posse do corpo, as liberdades dos homens, os anseios das
jovens, os silêncios, as relações embrutecidas, a caridade, o desapego aos bens
materiais, o choque entre culturas, as histórias de santidade e aparições contadas pela mãe aos filhos, nada escapa ao olho desse narrador
imaginativo que fala ao narratário como uma figura que descreve cenas, preenche
situações com vozes improvisadas, arquiteta uma realidade a partir dos registros
que tem ante si, alguns que saltam da massa narrativa para se mostrar em sua
inteireza: o registro do jornal ou a inscrição da folha de rosto de um livro.
E, no exercício de reinvenção da narrativa, o olhar concentra-se no drama da mãe
e da filha. Da mãe afeita às tarefas do lar, ao zelo pelos filhos dos males do
mundo, da relação de respeito e submissão aos caprichos do homem, a peça de
usar para o sexo e parição; da mãe angustiada ante a miséria, o horror da
guerra; da mãe marcada de dores pela perda do filho no ventre, pela possibilidade
de perder o filho para o front, pelo medo de as elucubrações mentais da filha
mais nova se voltar contra ela em forma de castigo divino; da mãe afeita às
verdades do que vê e impossibilitada de, mesmo sendo outra consciência a que mantém com o mundo, vê o que se oculta. Da mãe que, embora não anseie pelo
filho à sua imagem e semelhança, espera que ele não padeça as dores do mundo.
Forma-se aqui, o imbróglio narrativo: a filha mais nova ainda em criança vai na
direção oposta dos anseios da mãe.
A terceira
voz, sempre apresentada entre parêntesis e que depois se mostra a maior sobre
todas, universal, mãe de todas mães, espécie de inconsciente do texto capaz de
assumir formas diversas, a que não cabe num parêntesis, é igualmente feminina. Onipresente,
ela demonstra corresponder ora a que se coloca por trás da narrativa principal
ora a um caráter de instrutora da voz dos acontecimentos. Seus comentários são
sempre em diálogo com os acontecimentos que se desdobram na segunda linha e
porta-se como alguém que rememora esses mesmos acontecimentos para depois muito
se distanciar e tecer comentários sobre o desdobramento do próprio texto e reflexões
que concorrem com a primeira voz. É esta voz a responsável pelas passagens mais
poéticas do romance, embora seja essa característica uma dominante que alinhava
todas essas três narrativas que, sendo distanciadas (no modo como se portam) não são linhas soltas, são estruturantes da
obra.
A maneira como
esse romance está estruturado é um efeito à parte. Seu valor criativo reside no
cruzamento entre linguagens, sempre um dialogismo entre a fala simples,
popular, rural, perdida num tempo não datado e a erudita, mas não rebuscada,
urbana e contemporânea do escritor. Esta tecelagem é o que melhor enovela o
leitor por esses acontecimentos vistos com os olhos distanciados, mas não
distantes, e marcado, no mesmo instante das infiltrações poéticas, por um real
maravilhoso. É essa tonalidade capaz de servir a compreensão fabuladora da literatura e um bocado escassa
nas criações desse tempo. É essa interseção de tonalidades as que fazem de Em teu ventre servir às opiniões
diversas sobre os fenômenos de Fátima sem recorrer ao cansado debate entre fé e
ciência.
Quando visitei Fátima, totalmente descrente – isto é, totalmente ao
oposto do tom deste romance – o que me chamou atenção foi a quantidade muito considerável
de bibliografia sobre os acontecimentos de 1917; claro que ali todos os livros
buscavam pelo método mais traiçoeiro e mesmo assim o mais convincente a
reforçar tais acontecimentos como fato histórico e documentado, condições favoráveis à construção de um imaginário religioso. Sei bem, de
outra extensa bibliografia que coloca os tais episódios no território do farsesco,
“história de mulheres”, para retomar uma passagem do romance de Peixoto acerva da posição do administrador do concelho
quando o pai leva os filhos a lhe falar [com o administrador] sobre as
aparições. Faltava, entretanto, uma obra como a de José Luís Peixoto, capaz de se
afastar do debate trivial e dizer que na literatura há mais mistérios que
imagina a vã filosofia da verdade e da mentira.
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Em teu ventre
José Luís Peixoto
Companhia das Letras, 2017
Companhia das Letras, 2017
160p.
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