Cem anos de solidão cumpriu a profecia de Melquíades

Por Conrado Zuluaga


Gabriel García Márquez. Foto: Ben Martin. 

Nos anos anteriores aos 13 meses de reclusão – o tempo gasto para colocar em pouco mais de quatrocentas folhas a história que havia ruminado durante 20 anos –, Gabriel García Márquez enfrentou dois assuntos cruciais que ele próprio contou em diversas ocasiões. De um lado, era o autor de quatro livros publicados (A revoada, O veneno da madrugada e Ninguém escreve ao coronel), que vendiam pouco e tinham pouca repercussão; de modo que, na prática, continuava sendo um desconhecido. E, de outro, tinha mais coisas a dizer, mas não encontrava nem o tom e nem o modo de fazer: "Meu problema maior de romancista era que depois daqueles livros me sentia preso num beco sem saída, e estava buscando por todos os lados uma brecha para escapar. Sentia ainda que me restavam muitos livros pendentes, mas não conhecia um modo convincente e poético de escrevê-los".

O "modo convincente e poético" encontrou quando se deu conta de que para contar essa história tumultuosa, que o rondava desde seus 17 anos, devia usar o mesmo tom de sua avó e colocar a mesma cara sisuda dela quando, na infância, lhe contava umas histórias tremendas com uma naturalidade que descartava qualquer dúvida. Assim, poderia contar as histórias que acreditava, mas necessitava que o leitor também acreditasse. A mesma cara sisuda de Kafka em A metamorfose, a mesma cara sisuda de Rulfo em Pedro Páramo: "Aquela noite – confessa García Márquez em sua crônica ‘Breves nostalgias sobre Juan Rulfo’, quando leu o romance do escritor mexicano – não pude dormir enquanto não terminei a segunda leitura. Nunca, desde a noite tremenda em que li A metamorfose de Kafka numa lúgubre residência de estudantes de Bogotá, quase dez anos atrás, havia sofrido uma comoção semelhante".

Com essa cara sisuda se podia contar as histórias truculentas dos ciganos e as demonstrações assombrosas de suas invenções inúteis, também os esforços de um homem determinado a duplicar o ouro, e quem por pura especulação astronômica descobre num fim do mundo, que a terra é redonda como uma laranja; e, ainda, que um menino de seis anos de idade seja conduzido levado a um circo para conhecer o gelo e que ao tocar a pedra transparente exclame: "Está fervendo". Isto é, uma das duas situações críticas foi assim resolvida.

A outra, o da reduzida venda de seus livros e, logo, a escassa divulgação e repercussão de suas publicações, noutras palavras, o reconhecimento de seu talento pelo público, também começa a ser revertida. Numa de suas crônicas, "Desventuras de um escritor de livros" (divulgada no jornal El Espectador, Magazín Dominical, 7 de agosto de 1966), García Márquez adianta uma revisão rigorosa sobre as vicissitudes do escritor. E anota que apesar de tantas circunstâncias adversas (o escritor só ganha dez por cento do preço de venda, vive de outros trabalhos ou escreve roteiros para o cinema com pseudônimos, recebe subsídios de mecenas ou do Estado que coagem sua liberdade de criação) o escritor segue preso ao seu ofício "ainda com os sapatos rotos e mesmo que seus livros não vendam", porque "se é escritor como se é judeu ou se é negro". E García Márquez, que por esses dias (agosto de 1966) havia terminado Cem anos de solidão depois de afrontar muitas dificuldades e limitações comenta: "Não acredito que sejam muitos os leitores que ao terminar a leitura de um livro se perguntem quantas horas de angústia e calamidades domésticas tenham afetado o autor nessas 200 páginas e quanto tenha recebido pelo trabalho".

Desde então foi consciente de que todo livro deve começar a promover-se muito antes de sua aparição, deve gerar uma expectativa – como acontece com qualquer outro produto; no fim, um manuscrito transformado por um editor num livro para venda é uma mercadoria. E isso foi o que aconteceu com Cem anos de solidão.

Antes de mergulhar na literatura, o jovem García Márquez teve duas paixões: o desenho e a música. Embora não tenha se dedicado ao desenho como profissão, gostava de desenhar flores de longo caule ao dedicar seus livros aos amigos mais próximos, como é o caso da flor que figura nesta primeira página de Cem anos de solidão, presente ao seu amigo Álvaro Cepeda Samudio. Arquivo Harry Ranson Center


Um ano antes da aparição do romance, no domingo primeiro de maio de 1966, o jornal El Espectador publicou o primeiro capítulo da obra. No sábado, dia 30 de abril anunciou: Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez, amanhã no Magazín. E no dia seguinte, sim, o primeiro capítulo acompanhado de desenhos de Osuna ocupou as páginas 8, 9 e 10 do caderno de domingo. Em agosto, a revista Mundo Nuevo, editada por Emir Rodríguez Monegal em Paris, publicou um fragmento enviado por Carlos Fuentes. No ano seguinte, em janeiro, a revista peruana Amaru publicou o fragmento de Remédios, a bela subindo ao céu. Em fevereiro, Eco, a revista da Livraria Buchholz, em Bogotá, publicou outro fragmento do romance.

Ernesto Schoo, membro do conselho editorial de Primera Plana, o semanário argentino cujo chefe de redação era Tomás Eloy Martínez, entrevistou García Márquez no México e a reportagem foi publicada alguns dias antes da aparição do romance: "As viagens do Simbad García Márquez". Oito meses antes havia publicado Os nossos, o livro de Luis Harss com dez entrevistas a outros tantos escritores latino-americanos destacados desde então como o melhor e o mais promissor da literatura que se gestava na América Latina. García Márquez foi o último a ser incluído e só foi porque durante sua visita anterior ao México, Harss ouviu falar sobre ele através de Fuentes e este lhe enviou os livros do escritor colombiano. Harss regressou a Buenos Aires e em sua primeira entrevista com Paco Porrúa – também seu editor – lhe disse que havia um escritor a mais para seu livro, um tal de García Márquez.

Por sua vez, Cortázar, Vargas Llosa, Germán Vargas e Cepeda Samudio também comentaram entusiasmados suas leituras. Fuentes falava do maravilhoso romance que García Márquez ainda não havia terminado, mas do qual já havia lido suas primeiras oitenta páginas e as qualificava como magistrais. Em abril, algumas semanas antes de sua aparição, Germán Vargas afirmava no artigo "Um livro que fará barulho": "Gabriel García Márquez, aos 40 anos, está corrigindo as provas de um romance que este ano dará muito o que falar. Há razões suficientes para acreditar que Cem anos de solidão – é este o título – será o melhor romance colombiano no último quarto de século e, desde então, o melhor do autor". E Cepeda Samudio, segundo Álvaro Medina, exclamou ao concluir a leitura da cópia datilografada: "Não é brincadeira, o Gabo acaba de agarrar um grande romance".

Cortázar, depois de publicado o romance, escreveu a Porrúa, em agosto, agradecendo-lhe pelo envio do livro e na linha seguinte comentava: "Os mais velhos já podem morrer, há caçador para ratos". Em setembro, Vargas Llosa publicou "Cem anos de solidão: o Amadis na América" (veja catálogo abaixo). Na biografia García Márquez. Uma vida, Gerald Martin afirma que o público estava perplexo: "As pessoas apenas podiam expressar seu assombro. Não havia precedentes do que estava acontecendo".

Até na ensimesmada Bogotá se conheceu o sucesso da obra. Na revista Eco aparece em primeiro de julho um artigo, hoje já clássico, de Ernesto Volkening: "Anotando às margens de Cem anos de solidão". Mas como sublinha Martin em sua biografia, "A verdade é que nunca se apreciaria tanto García Márquez em seu país como em outras partes da América Latina".

Mas, talvez, o episódio mais significativo dos muitos que aconteceram desde então, é o vivido pelo escritor e sua companheira Mercedes a poucos dias de chegarem a Buenos Aires, de onde haviam partido no dia 16 de agosto, dez semanas depois da aparição da primeira edição da obra. Uma noite, García Márquez e Mercedes, acompanhados por Tomás Eloy Martínez, assistiram à estreia de uma peça de teatro. Num breve texto, "O dia em que tudo começou", Tomás Eloy conta: "Mercedes e ele avançaram até a plateia, desconcertados por tantos brilhos. A sala estava na penumbra, mas seguindo eles, não sei por que, um refletor acompanhava seus passos. Iam sentar-se quando alguém, um desconhecido, gritou: ‘Bravo!’ e irrompeu os aplausos. Uma mulher lhe fez coro: ‘Por seu romance!’, disse. A sala inteira se colocou de pé. Nesse preciso instante vi que a fama descia do céu, envolta num deslumbrante bater de asas, como Remédios, a bela e deixava cair sobre García Márquez um desses ventos de luz que são imunes à passagem dos anos".

Cumpria-se assim a premonição de Melquíades quando terminou a escrita de seus manuscritos – redigidos em sânscrito, "que era sua língua materna" –, pois ao concluir esse trabalho, o cigano exclamou: "Alcancei a imortalidade".
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SEIS EPISÓDIOS SOBRE A GÊNESE DE CEM ANOS DE SOLIDÃO

1. Aparece Aureliano Buendía e a gestação da obra

Segundo o próprio autor, em 1944, tentou escrever um romance chamado casa, mas se deu conta de que suas habilidades técnicas eram limitadas e não conseguiria levar adiante o projeto, por isso largou para o futuro.  Durante as décadas seguintes publicou vários textos no jornal El Heraldo de Barranquilla e na revista Crónica onde desenvolvia o universo e as personagens de Cem anos de solidão. Em 1950, na revista Crónica, García Márquez publicou vários fragmentos do que se considera a pré-história de Cem anos. Um dos excertos intitulou "La casa de los Buendía’, quando apresenta pela primeira vez neste texto a personagem de Aureliano Buendía, "La hija del coronel", "El hijo del coronel", entre outros. É em 1952 que expressa o desejo de retomar o projeto de escrever A casa, "um romance de 700 páginas que penso em terminar antes de dois anos". Em 1955 publica "Um dia depois de sábado", "Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo" e A revoada, ficções que trazem o universo de Cem anos de solidão.

2. México e o começo da obra

No verão de 1965, já morando no México com sua companheira Mercedes Barcha e seus filhos Rodrigo e Gonzalo, García Márquez tomou a determinação de materializar o romance que desde a adolescência tinha em mente. Só pode se dedicar a escrevê-la depois de assegurar-se de alguma estabilidade econômica para a família. Os recursos vieram de contratos para publicar suas obras anteriores em inglês e em francês, geridos então pela agente literária Carmen Balcells. Mas o dinheiro foi insuficiente e a família García-Barcha viveu, como contou o próprio autor (ver links abaixo), vários meses daquilo que os amigos forneciam e emprestavam.

3. A editora Sudamericana

Em outubro de 1965, quase três meses depois de começar a escrever o romance, a editora Sudamericana contatou García Márquez a partir da antologia de Harss. O editor, Francisco Porrúa, se interessou pelas obras anteriores de Gabo e lhe propôs publicá-las. O romancista pediu esforços para obter os direitos de suas obras e aproveitou a oportunidade para falar sobre Cem anos de solidão. "É um romance muito longo e muito complexo no qual tenho depositado minhas melhores ilusões", escreve-lhe. Embora o escritor tenha dito que em algum momento, por falta de dinheiro, havia enviado apenas a metade do texto a Porrúa, Santa-Acuña afirma que o livro chegou completo às mãos de Álvaro Mutis, amigo pessoal de Gabo, quem, por coincidência viajou nesses dias a Buenos Aires. Porrúa ficou seduzido pelo romance e o viu como uma mostra perfeita do boom latino-americano.    

4. Dúvidas sobre a qualidade do romance

De acordo com as cartas entre o Prêmio Nobel de Literatura a seus amigos Plinio Apuleyo Mendoza, Guillermo Angulo, Germán Vargas e Álvaro Cepeda Samudio, as dúvidas sobre a qualidade do romance eram constante preocupação de García Márquez, quem ao contrário do que diz a lenda, contou com as opiniões dos mais próximos e inclusive com as dos leitores de jornais colombianos para polir sua joia mais preciosa.



5. A capa improvisada

A capa da edição publicada pela Sudamericana, a pedido do próprio Gabo, foi encarregada pelo artista mexicano-espanhol Vicente Rojo, quem não pode enviar a ilustração a tempo. A editora pediu então à sua desenhista, Iris Pagano, para improvisar a capa com um barco perdido em meio a uma selva azul e três flores amarelas. O desenho mais conhecido, entretanto, foi de Vicente Rojo, que traz figuras geométricas e muito mais sensível, que só saiu quando da segunda edição e se manteve nas edições seguintes.

6. A data exata da edição

Por cerca de 13 meses Gabriel García Márquez levou a escrever seu romance mais famoso (entre julho de 1965 e agosto de 1966). Mas, gastou quase outro ano para corrigir e afinar os detalhes da narrativa. O livro saiu da gráfica em Buenos Aires no dia 30 de maio de 1967 e finalmente chegou às livrarias argentinas no dia 5 de junho desse ano.

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A seguir apresentamos um catálogo com tradução do texto de Mario Vargas Llosa sobre o romance de Gabriel García Márquez.




Ligações a esta post:

* O texto de Conrado Zuluaga é uma versão livre de "Cien años de soledad cumplió la profecía de Melquíades" publicado no El Tiempo.



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