Café Society, de Woody Allen
Por Maria Vaz
Woody Allen pertence a um grupo de realizadores que, normalmente, ou se
ama ou se detesta. Incita o extremo. Pessoalmente, gosto dele. Os seus filmes
fazem deambular pela intensidade das complicações da psique humana, das
paixões, dos crimes, o tabu, os triângulos amorosos, vidas paralelas, questões
sexuais, escolhas complexas. Desde o triângulo amoroso em Manhattan (1979) ao
quadrado amoroso em Vicky Cristina Barcelona(2008), passando pela relação
paralela em Match Point (2005), pela paixão do passado em contraponto com a
do presente em Meia-noite em Paris (2011), ou pela busca de um novo ‘eu’, numa
realidade circunstancial que se rejeita, em Blue Jasmine (2013). Woody Allen
tem a capacidade fascinante de penetrar na compreensão das mais complexas
emoções que, tantas vezes, movem o comportamento humano, de uma forma simples,
natural e subliminar. Nessa linha, outra coisa não seria de esperar deste Café
Society (2016).
Uma vez mais, de forma bem conseguida – na aparente simplicidade do
desenvolvimento do quotidiano – leva-nos a compreender como surgem fenómenos
que provocam os excessos dos sentidos ao tocar o verbo ‘querer’, como as
paixões e as afeições. Fenómenos naturais e humanos, simples e complexos, que
se sedimentam sem que permitam uma consulta prévia da razão. Até porque essa
razão é distorcível e, muitas vezes, incompleta. Fenómenos normalmente envoltos
em censuras massificadas de terceiros e em potencializações de auto-culpabilização
que, na realidade, nem sempre nasceram com o conhecimento de todas as variáveis
ou constantes, numa realidade/verdade que nem sempre nasce na translucidez da
transparência.
Café Society desenvolve-se entre Nova Iorque e Hollywood, tendo a
história de Bobby Dorfman como plano de
fundo. Bobby (Jesse Eisenberg) era um jovem idealista e ambicioso que, no meio
do caos familiar que atravessava em Nova Iorque, resolveu tentar a sua sorte no
contexto da sétima arte. Foi assim que foi ajudado por Phil (Steve Carell) –
seu tio, agente na indústria cinematográfica –, que o contratou para moço de
recados em Hollywood.
No início, Bobby ficou totalmente fascinado pelas novidades, sempre
renovadas, da capital da sétima arte, entre cenários e fantasias a flutuar nos
ritmos jazz dos anos 30. Contudo, percebeu rapidamente que tudo ali, como lhe
disse um convidado em uma festa, se baseava no culto do ego e poucas coisas
possuíam algum brilho substancial. Desse modo, em jeito de contradição à norma,
Bobby acabou por ceder aos encantos despretensiosos de Vonnie (Kristen Stuart),
secretária do seu tio Phil. Vonnie era uma mulher simples e divertida, com uma
personalidade viva, espontânea e incomum. Bonita, inteligente e idealista,
encantou completamente Bobby enquanto lhe mostrava os recantos da cidade. Havia,
contudo, um problema: Vonnie tinha um ‘namorado’ e, por esse motivo, não dava
margem para que pudesse existir algo entre os dois.
Com o desenvolver do tempo o filme deixa transparecer que, afinal, o
namorado de Vonnie era Phil, que era casado e que, de vez em quando, fazia
promessas de amor a Vonnie, dizendo-lhe que um dia se separaria da esposa.
Todavia, as promessas arrastavam-se e ela continuava relegada a um papel
oculto. Mesmo assim, no primeiro aniversário desse affair, Vonnie ofereceu a
Phil uma carta. Phil achava-lhe graça, mas por uma certa preguiça existencial –
acompanhada de uma sensação de controlo ou domínio da situação –, resolveu
terminar tudo entre ambos.
Nesse entretanto, Vonnie percebeu que Bobby era tudo o que ela precisava
para esquecer Phil e seguir em frente: desenvolveram um relacionamento feliz, do
qual Bobby fazia as suas confissões ao tio. Phil resolveu, então, contar a
Bobby acerca do seu affair sem, contudo, mencionar o nome de Vonnie, fingindo
tratar-se de uma desconhecida. Isto até ao ponto de Bobby lhe dizer que
pretendia casar com Vonnie e regressar a Nova Iorque. Nessa medida, tudo isso –
a sensação de perda, envolta em ciúmes e na tentativa de manutenção de ‘posse’
– fez com que Phil mudasse radicalmente de ideia, divorciando-se da esposa e
pedindo a Vonnie que deixasse Bobby e se casasse com ele. Ela teve de escolher.
E escolheu Phil.
Bobby, com o coração destroçado, resolveu regressar sozinho a Nova Iorque,
onde abriu um clube noturno, com o seu irmão Ben: o famoso Café Society. O
clube era frequentado pela elite nova iorquina da época, como artistas famosos,
políticos ou pessoas poderosas. Foi nesse clube que Bobby conheceu Veronica
(Blake Lively): uma mulher divorciada e dotada de uma beleza física
deslumbrante, com quem decidiu casar e constituir família. Obviamente, não
tinham uma vida perfeita e, não raro, Bobby chamava-lhe, carinhosamente, de Vonnie.
A vida conjugal aliada a alguns atritos fez com que se fossem afastando,
constituindo o clube uma espécie de fuga para Bobby.
Passado uns meses, Phil e Vonnie viajaram para Nova Iorque e, sem
problemas de consciência, resolvem visitar o clube, encontrando Bobby
totalmente desprevenido e com muitas emoções para gerir. Foi nesse contexto –
como forma de retribuir o que Vonnie fizera por ele em Hollywood – que Bobby
decidiu mostrar-lhe os seus lugares preferidos da cidade enquanto Phil resolvia
uns negócios. E acabaram por se beijar em pleno Central Park.
Entretanto Woody coloca uma cena de homicídio no filme: Ben matou o
vizinho da irmã, após uma acalorada discussão. O confronto de mentalidades
entra, ainda mais em colisão, na medida em que Ben era ateu mas, perante uma
condenação a pena de morte na cadeira eléctrica, resolveu converter-se ao
cristianismo, como se isso fosse uma forma de diminuir o medo e angariar perdão
divino, ante uma profunda crise de consciência.
Todavia, todo este drama gerou uma fama enorme em torno do Café Society
e Bobby chegou, inclusive, a equacionar abrir um novo clube noturno em
Hollywood, naquilo que não seria mais do que um pretexto para estar perto de
Vonnie. Numa dessas viagens ainda se encontraram, mas depois chegaram à
conclusão, entre dilemas, de que seria melhor deixarem de se ver. E logo
esqueceu a ideia de abrir outro clube.
Não obstante a decisão racional de ambos, o filme acaba numa festa de
final de ano, com os dois fisicamente
separados por milhares de quilómetros: um em Nova Iorque e outro em
Hollywood. Por antagonismo, ou puro paradoxo, com umas certas pitadas de
ironia, ambos perdidos em ambiguidades dentro de si. Ambos evasivos. Muito
distantes dos seus pares. Tanto que na contagem decrescente do novo ano o que a
imaginação de ambos mostrava era uma realidade totalmente distinta da que
tinham à vista: o eterno ‘what if’’ das emoções rejeitadas. Mentalmente, sem
terem conhecimento disso, nunca tinham estado tão perto.
Assim sendo, o filme deixa-nos várias reflexões: até que ponto a
mudança radical de posição de Phil não foi tomada por uma espécie de briga de
ego de Phil com Bobby? Talvez Vonnie não tenha tido coragem de optar por todas
as incertezas e riscos de um futuro com Bobby, que era apenas um jovem
idealista e ambicioso. Com Phil tudo seria mais cómodo e fácil. Talvez, na
cabeça de Vonnie, ela fosse feliz em igual grau escolhendo um ou outro.
Todavia, o decurso dos acontecimentos na vida de ambos acabou por demonstrar a
existência de uma espécie de ‘pathos’, altamente irónico, em dois sentidos: por
um lado, Bobby teve imenso êxito com o seu Café Society; por outro, mais óbvio,
a paixão entre ambos renasceu facilmente pelo convívio, ainda que curto, porque
tinham mais afinidades. Então e Phil? Talvez tenha sido só uma questão de
poder. De luta com as normas estabelecidas pela sociedade ou com as
circunstâncias em contexto de proibição. Uma questão de luta com uma moral concretamente
sem sentido ante uma forma negocial já desprovida de substância, alimentada por
uma razão desgastada.
Além das reflexões/suposições, no que toca ao comportamento e às
escolhas das personagens, insurgem-se outras relacionadas com este tempo que
vivemos, que está muito longe do que era nos anos 30. Como seria esta história
em pleno século XXI? Como lidariam todos uns com os outros neste tempo em que
expomos a vida facilmente no Facebook, instagram, snapchat, (etc)? Em que
estamos mentalmente perto, todos à distância de um click ou de um ‘enter’,
independentemente da distância física ou territorial. Como geririam as emoções
constantes entre publicações, ‘instastories’ e vídeos em directo? Talvez se
eliminassem, para facilitar as coisas. Movidos pelo ego e pelo hedonismo,
talvez sorrissem mesmo estando a sangrar por dentro, só para se parecer bem,
forte e inquebrável, lançando mão do mecanismo da indiferença e da competição
para ver quem é que está melhor sem o outro: coisas desta sociedade de aparências.
Talvez se fizessem ciúmes um ao outro com publicações de fotos em casais. Com muita
probabilidade, iriam seguir o espírito de manada e envolver-se com o(a)
primeiro(a) disponível, minimamente bonito/interessante, ante a felicidade
ultra efémera, com capacidade anestésica, de bares equivalentes ao Café Society, entre
música e brindes, fingimento do síndrome de memória curta e a auto-invocação
racional de um ciclo vicioso de ‘carpe diem’, vindo de trás com os traumas não
censuráveis de não confiar em ninguém. Depois, talvez entrassem, sempre
subliminarmente, as brigas de ego desses(as), arrastados(as) para a história –
com muita probabilidade de nem sequer terem (ou virem a ter) conhecimento dela –
pela necessidade de fuga, gerando choques em cadeia, lógica sucessiva ou efeito
dominó, em nome do hedonismo egoísta e da ausência de qualquer política de
alteridade. E o aumento inevitável de colisões de imaginações e desejos e,
quase inevitavelmente, imitações e competições pela atenção de ‘corpos-objectos’
e não pelo afecto de ‘seres-personalidades’. Até alguma ironia substancial
eclodir. Uma ironia que, normalmente, surge. Afinal, nas palavras de Bobby, “a
vida é uma comédia escrita por um sádico”. Mas é uma comédia.
Gostando ou detestando, Woody Allen é um génio por trazer facilmente à
claridade: o que anda oculto por aí, por todo o lado; o que o ‘dever ser’ cala;
o que não fica bem; o que se alimenta das fragilidades intemporais; o que
passou de pecado a tabu; o campo de emoções flutuantes em intensidades humanas,
em fugas humanas. E até o crime que interpõe não é mais do que uma
situação-limite desvaliosa, mas imperfeitamente humana, com ‘direito’ a censura,
autocensura e crise de consciência. De desumano só sobra a condenação à morte
na cadeira eléctrica, porque até as coisas do ego – tantas vezes apenas meros
mecanismos de protecção do resto – são, apesar da análise crítica, humanamente
compreensíveis. Críticas que são, também, imperfeitamente humanas. Demasiado
humanas. E, depois de tanta razão sem sentido, cai sempre bem concluir com algo
parecido a um título de Nietzsche.
***
Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
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