A violência como produto humano
Por Rafael Kafka
Alejandro Obregón |
Muito tem me interessado o a
análise de questões ligadas à violência dentro do cinema e das séries que
acompanho. Demorei a entender o porquê, mas a justificativa está fortemente
ligada ao meu modo existencial de analisar obras de arte narrativas. Cada vez
mais a violência se revela para mim um fenômeno claramente humano que deve ser
entendido como mais uma das manifestações do ser e não ser tratada como um
elemento monstruoso dentro das frinchas do ser iluminado que imaginamos ser a
essência do comportamento humano.
Nos noticiários, cada vez mais é
comum essa lógica da violência como monstruosidade. Antes que alguém me entenda
mal, o que quero dizer é que a brutalidade da violência é algo produzido por
pessoas contra pessoas. A violência é uma forma de afetividade, ligada
profundamente às intencionalidades e condicionantes do modo de ser deste ou
daquele indivíduo. Assim sendo, o discurso dos jornalistas sensacionalistas que
visam a colocar o ser produtor de violência como digno de exclusão e até mesmo
morte reforça uma aparente incapacidade de se resolver os problemas ligados a
práticas brutais.
Quando uma solução é dada sempre
se cita o sistema carcerário. Parece haver na mente de tais pessoas a crença de
que os prisioneiros serão monstros controlados que jamais causarão transtornos
a nós, cidadãos de bem, novamente. O engano é duplo, pois além das cadeias já
estarem bem lotadas o enclausuramento por si só nada resolve, ainda mais em
locais onde a violência impera de formas tão ou mais cruas do que as existentes
nas ruas das grandes cidades brasileiras. O discurso sensacionalista herda do
antigo racionalismo burguês a ideia de que certos comportamentos correspondem a
uma essência imutável do ser humano, marcada esta pela razão. As atitudes que
fogem à noção de racionalidade são deturpações do ser que devem ser cuidadas
para não se espalhar pela sociedade na forma de caos.
Daí as prisões servirem como
local de higiene social assim como espaços como hospitais, sanatórios, abrigos
para pessoas em situação de vulnerabilidade social, etc. Não há a preocupação
de se resolver um problema, pois não há problema a ser solucionado. O ser
violento, assim como o doente, é um ser problemático, para quem se espera o
milagre da cura. Antes de ele ocorrer, e se ocorrer, é necessária a proteção
dos cidadãos sadios para a sociedade manter sua harmonia.
O paradoxal é que cada mais vez
cheias, as prisões contemplam com seu corpo de segurança e repressão o
crescimento da violência em todas as escalas sociais. Por conta disso, o
discurso do cidadão médio tem se tornado ele mesmo mais brutal: se as cadeias
estão cheias, devemos limpar a sociedade por meio da violência pacificadora,
garantindo assim alguma estabilidade social. Abre-se então espaço para o
surgimento de um Estado cada vez mais policialesco, bem como a boa aceitação
das chamadas milícias armadas, que vendem o discurso de segurança privada a
pessoas que recorrem a elas
O importante aqui é garantir a
própria segurança, garantir que amanhã mais um dia será vivido nesse ciclo sem
fim de medo e de consumo desenfreado. Numa rotina repleta de horas perdidas em
trânsito e em trabalhos pouco amados, com relações muitas vezes de subordinação
desumana, com uma educação repleta de índices ruins, fica complicado de se
entender e de se refletir brevemente sobre as dimensões ontológicas e sociais
da violência. Ela é tratada como algo dado a ser eliminado. Sempre quem pratica
a violência é o outro, não eu.
Citei Tony Soprano em outro texto meu. Quando perguntado se iria para o inferno, respondeu convictamente
que não. Ele estava em guerra e soldados faziam tudo em um plano comum de
honra, de ataque e defesa. Estupradores sim vão para o inferno. Bem como os
genocidas. Tony é capaz de matar a sangue frio um amigo traidor e no dia
seguinte brigar com o filho que não quer ser crismado, ampliando a antítese
exposta por Coppola no primeiro Poderoso
Chefão, quando Michael Corleone é contraposto no batismo do sobrinho aos
crimes cometidos a seu mando no sentido de tomar o poder da máfia em Nova York.
Não dentro deles o dilema existencial que deveria surgir da coerência dos
discursos cristão e mafioso. Há um sincretismo que transforma o seu gesto em
não violência, um simples conjunto de ossos do ofício.
A violência, em nosso cotidiano,
como a corrupção é algo sistêmico. Muitas vezes a praticamos sem darmos conta
disso. Isso porque temos parâmetros de brutalidade os quais tornam nossos atos
em algo tolerável para nós mesmos. Assim como o político citado em delação
premiada nos causa asco, sem que nos incomodemos com o gato feito na luz
elétrica, a brutalidade do outro nos choca quando em nossos menores gestos há,
muitas vezes, a agressividade nem tão latente assim. Por esses dias, eu andava
em uma calçada quando vinha um mototáxi fazendo da mesma um atalho de uma pista
a outra de uma das grandes avenidas de Belém. Ouvi claramente a moça que estava
de carona dizer para eu sair da frente, ao que respondi que ali era um espaço
de pedestre. A minha tentativa de ser racional foi respondida com um palavrão
grosseiro.
Tal situação me fez pensar em
diversas cenas escolares, familiares, universitárias nas quais a violência se
mostrou. Também me fez pensar em filmes como o citado acima e outros, como Nascido para Matar e Tropa
de Elite. Neles, o militarismo enquanto instituição estatal brutaliza as
pessoas para se tornarem aptas a irem a uma guerra sem medo. Mesmo o soldado
Gaiato, muito bem trabalhado por Kubrick em seu clássico filme, ao final sente
prazer em fazer parte do coro dos soldados americanos a devastar o Vietnam.
Neto e Mathias, dois jovens que acreditam no poder da polícia militar em
resolver os problemas do tráfico de drogas, logo se tornam simples braços
armados a seguir a lógica da guerra às drogas.
A violência está em nós e de
repente um pouco de análise nos leve a entender porque nossa sociedade é tão
violenta, tão livre no sentido de emitir suas pulsões em brigas de bares e em
discussões tolas. Em ter índices tão alarmantes de população carcerária e desigualdade
social. O primeiro passo para se resolver isso é assumir a violência como
comportamento humano e ver o comportamento humano como condicionado a questões
sociais e a uma liberdade de escolha. Certos indivíduos focam demais no
segundo, julgando justo um garoto de periferia não ser tentado a ir para o
mundo do tráfico, isso quando ao seu lado estão soldados ganhando muito
dinheiro com o mercado ilegal de drogas. Poucos tentam entender que um contexto
opressor oferece pouca possibilidade de escolha e pouquíssima chance de
abstração e reflexão, que levaria o indivíduo a pensar melhor em outras formas
de vivência.
Muitos de nós vemos a violência
como algo dado, um demônio a que se deve resistir. Caso contrário, a limpeza
deve agir. Mais do que as mortes geradas por esse pensamento, o brutal em tudo
isso são as mortes que surgirão desse bizarro humanismo, pois a violência como
fato dado exige apenas a solução imediata. Não há porque se acreditar fielmente
em uma educação humanizadora, dentro e fora da escola, para combatê-la. Isso é
demagogia esquerdista, muitos dirão. Mas enquanto consideramos a violência como
produto de seres inatamente doentes e podres, deixamos de pensar no quanto nós
podemos e somos violentos, em especial quando não pensamos em formas de se
criar subjetividades que vivam outros rumos em suas vidas que não sejam os do
sangue e da matança. Enquanto a violência for vista como algo meramente
monstruoso e não como produto do ser humano e sua condição limitada, estaremos
fadados a viver com medo da próxima bala perdida em troca de tiros.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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