A teologia de Tony Soprano e o discurso estereotipado do cidadão de bem
Por Rafael Kafka
Num episódio da grande série The Sopranos, Tony Soprano está
preocupado, pois seu filho AJ começou a ter contato com o pensamento
existencialista e passa a exibir em seu semblante e em suas palavras o
comportamento melancólico de quem sente a náusea, amplificado pela obrigação
absurda – e qual não é? – de cumprir o ritual católico da crisma em poucos
dias. Mesmo marcado pela violência diariamente infligida a outros, Tony se
irrita em ver o garoto descrente dos valores católicos defendidos pela família
e se mostra transtornado com a postura revoltosa do jovem com a condição
humana.
Há um paradoxo nessa cena e
nesse episódio que se mostra presente em toda a série de forma implícita: a ética
cruel da máfia com seu rastro de sangue coexiste com uma profunda crença no
Deus cristão típica do povo italiano católico, de onde é oriunda a família
Soprano. São dois discursos e práticas antagônicos entre si, ao menos no plano
escrito, mas que existem lado a lado e harmoniosamente sem aparentar qualquer
tipo de choque interno consciente nas personagens centrais ligada ao mundo do
crime. Tal faz pensar no conceito heideggeriano de fronteira como modo de ser
da existência humana e na forma disforme do discurso do estereótipo que com
suas verdades procura fixar o ser dominado em construções fechadas em si, ambos
explorados pelo teórico indiano Homi Bhabha em O local da cultura.
Tony vive na fronteira de
diversos modos de ser. Como Henry, de O lobo da estepe, busca se entender por meio de um discurso dualista que não
dá conta de suas diversas manifestações enquanto ser para-si. Estar entre a
máfia e o Deus é o seu modo de existir primordial. Alguns episódios a frente,
ele expõe sua visão sobre a condenação e a salvação diante da doutora Melfi,
que cuida de suas crises de ansiedade por meio da psicoterapia. Na visão do
capo, estupradores, genocidas, assassinos seriais e outros com tipos de
condutas similares irão para o inferno e ele e seus companheiros de crime
organizado serão salvos. Por meio do discurso, Soprano busca criar uma visão
sólida sua e dos condenados: mafiosos estão em guerra e vivem em um código de
certa forma justo. A metáfora com o mundo bélico busca garantir um terreno
existencial de ações justificadas. O parâmetro ético da guerra serve de fator
salvador e Deus se torna a imagem e semelhança dos seres humanos.
A polifonia narrativa da série
garante a estranha verossimilhança que leva Tony, após proferir esse sermão a
sua psiquiatra, a matar com as próprias mãos o rapaz que horas antes tentara
matar um de seus mais fies aliados. Para Tony, a salvação não é um problema e
ele parece não temer a morte, nem mesmo demonstrando ódio pelo tio, também
mafioso, que o tentou matar. O que faz ele sofrer é a sensação de perda da
unidade concretizada nos conflitos familiares, medo este não capaz de ser
ocultado pela fala maniqueísta do mafioso.
Usando a capacidade de ensinar
por meio de situações inerente a toda obra de arte de aspecto narrativo,
fugindo assim de qualquer didatismo, The
Sopranos exibe analogicamente a postura cristã sanguinolenta dos seres
teístas os quais se utilizam do discurso da violência para conter a violência
enquanto rezam salmos a Deus. O paradoxo existencial mais claro nesse sentido
já visto por mim foi a morte recente de uma acusada de crimes ligados ao
tráfico de drogas na cidade onde moro, Belém, que segundo informações de redes
sociais vinha tentando levar uma vida longe do mundo do crime. A sua morte, porém, se deu em circunstâncias
similares ao do companheiro, morto meses antes próximo ao natal em crime com
características claras de execução, os quais vitimam quase sempre pessoas com
passagens pela polícia e de origem pobre. A moça morreu também em data próxima
a um feriado, mais precisamente três dias da Páscoa, antes da sexta-feira,
quando provavelmente muitos cidadãos cristãos deixavam de comer carne vermelha
em honra a Jesus e compartilhavam as fotos sangrentas da moça com a cabeça
estourada em uma poça de sangue, deleitando-se com o espetáculo brutal de quem
supostamente morreu por merecer. Cheguei inclusive a discutir com um amigo de
aparência doce e tranquila, o qual citando uma figura conhecida do pensamento
ultradireitista nacional disse que bandido bom é bandido morto e falar em
direitos humanos é coisa de esquerdopata iludido.
Tais pessoas, como meu amigo,
agora entendo que são alimentadas pelo medo de uma sociedade violenta e líquida
e apelam e apegam-se a um discurso cristão como forma teológica de obter um
discurso pleno de sentido. A falência estatal em cuidar da violência faz a
lógica do perdão cristão – maior religião do país em suas diversas formas –
sumir e a condenação se transforma em justiçamento. Pouco cuidado há em se
apurar as condições de ocorrência ou não de determinados crimes, bem como que
políticas devem ser tomadas para se diminuir as chances de ocorrência. Aquela pessoa doce, gente boa, em certos
momentos assumirá uma faceta odiosa sentindo profundo prazer com a morte e o
martírio do outro, coisificado este na figura do mal a ser eliminado.
O maniqueísmo faz do outro
monstro fechado em si mesmo. Sufocado em uma rotina de obrigações, trabalho,
estudos, o cidadão médio não tem muito tempo e ânimo para entender as bases
sociais da violência e acaba reproduzindo o discurso virulento e violento de
apresentadores de TV e políticos os quais defendem veemente a morte como
processo de limpeza social – que concomitantemente se transforma também em
processo de limpeza racial. Por conta do maniqueísmo e de uma sociedade que o
reforça a todo instante, muitas pessoas sentem felicidade diante de mortes
brutais, pois para elas, assim como para Tony, quem morreu e vai para o inferno
é aquele que cometeu o que julga-se bárbaro.
Nasce então o fascismo, pois não
há mais espaço para o diálogo já que só podemos dialogar por meio de sussurros
que passam a ideia de um ideal acabado, mesmo com rupturas ignoradas em seu
interior. O discurso estereotipado nega a visão interna do ser, tornando-se e
tornando o outro um ser plano, fechado. Assim como a cisão do ser é obliterada
a do discurso também o é e por esse motivo Melfi chora ao se ver apontando de
forma judicativa as contradições de Tony e nós, muitas vezes, nos irritamos ao
discutir com pessoas como meu amigo, acima citado: as suas verdades prontas e
paradoxais para nós formam um todo pleno de sentido para eles e, mesmo que
diante de nós elas pareçam mais um redemoinho de discursos prontos a se
repetirem em ritmo alucinante, só conseguimos ouvir de sua voz a afirmação constante
de eles merecerem ser salvos, pois não como os outros, os condenados, os que
não seguem a regra do jogo, seja do jogo da máfia ou do jogo da sobrevivência
em um país tão desigual e conservador como o nosso.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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