O romance como escrita e leitura dissidentes
Por Rafael Kafka
Milan Kundera, em seu livro de
ensaios Os testamentos traídos,
analisa a moralidade do romance como ligado à suspensão de qualquer juízo
moral. Tal estatuto pode ser afirmado como pertencente a qualquer gênero de
arte, mas por seu caráter de escrita em prosa e narrativa o romance pode
enganar leitores incautos e soar como algo didático. Mas a arte ensina sem
querer ensinar por meio da provocação, da catarse e da descompressão do ser.
Entendemos melhor a amoralidade
do romance ignorada por muitos leitores – e eu diria até mesmo por alguns
escritores que se querem sacerdotes da sabedoria moral – quando comparamos a
escrita romanesca com a do poema: o gênero lírico é altamente imagético e é
lido por nós mais como uma pintura escrita do que como literatura em si mesma.
Somos tocados pelo poema pelo poder catártico de uma escrita feita para
encantar e que não esconde o seu intento.
Por esse motivo, Sartre disse
ser impossível falar em engajamento da poesia. Nela, a palavra é coisa sem o
poder sutil que tem o romance em provocar, algo aparentemente – e
paradoxalmente – ignorado pelo existencialista no capítulo final de seu ensaio
sobre literatura, quando faz uma espécie de manifesto comunista literário,
exigindo dos escritores uma posição clara em favor das ideias marxistas que
beira o didatismo.
O romance conta histórias e traz
em seu bojo vivências que fazem o leitor viver, mesmo solitariamente, uma
experiência interpessoal baseada na ipseidade. Esta ou aquela cena provoca
desta ou daquela maneira o leitor, inclusive quando a leitura se dá de modo
apressado e indiferente. O engajamento da obra literária, então, não significa
que o autor assumirá uma tese com leitura fechada: tal engajamento representa o
uso de situações que visem ao leitor o choque de realidade sem a ambição,
todavia, de dar uma lição pronta a ser seguida.
A literatura provoca por meio de
perguntas e a reflexão gera as respostas procuradas pelo leitor. Mas o romance
engana – e se engana – de que pode dar lições didáticas e morais em certos
momentos de sua leitura. Mesmo engajada, a obra literária romanesca deve sempre
ter consciência de que seu sentido final será dado pelo leitor. Este por sua
vez deve se conscientizar de não ver ali nenhum discurso moralizante, exceto o
que ele mesmo produziu por sua construção de sentidos.
Como complemento da defesa da
amoralidade do romance, encontramos essa passagem no mesmo livro de ensaios que
iniciou esta reflexão: "Mais do que o Terror, a
lirização do Terror foi para mim um traumatismo. Fiquei vacinado para sempre
contra todas as tentações líricas. A única coisa que então desejava
profundamente, avidamente, era um olhar lúcido e desabusado. Encontrei-o afinal
na arte do romance", diz Kundera.
A tal lirização do Terror é a
poesia rendida ao totalitarismo. As imagens líricas são usadas neste contexto
como forma de transmitir a imagem do real a ser perseguido para anestesiar o
público diante da barbárie. Na estrutura do romance, lidando com a fugacidade
das situações humanas, o escritor consegue se colocar além e aquém de qualquer
sistema de pensamento fechado.
Por isso, na obra de Kundera, há a
presença de elementos que podem ser confundidos – como eu mesmo o fiz – com um
anticomunismo empedernido. O jovem escritor viu sua nação ser dominada pelo
stalinismo e isso representou para ele a morte da poesia. Romances como A
brincadeira contêm elementos de resistência não contra este ou aquele
sistema político e econômico, mas contra toda e qualquer forma de existência a
qual reduza o ser a uma verdade e fechada.
No totalitarismo, toda arte deve
ser de propagada. Não há espaço para a suspensão moral do romance e seu caráter
cheio de perguntas, como destaca Leyla Perrone-Moisés em um ensaio sobre a
crítica literária. Todo teto deve transmitir uma verdade, a Verdade, melhor
dizendo, solapando de vez a dúvida. Por isso o suicídio de Maiakóvski ao
perceber que seus poemas não correspondem à realidade concreta experienciada na
URSS; e por isso as obras de arte são tão perseguidas e censuradas nos regimes
totalitários, pois elas exigem liberdade para serem lidas e a liberdade é algo
temeroso para sistemas opressores.
Não à toa, Kundera compara o
romance ao pensamento filosófico de Nietzsche – pouco afeito à sistematização
das ideias. O que há de literário na obra filosófica do pensador alemão nem é
tanto o seu valor estético, mas sim o destemor em assumir uma postura não
fechada e não didática perante a escrita. O romance, com suas diversas
situações unidas pelo enredo, segue um princípio similar, respeitando a
angustiante liberdade do ser leitor, não sistematizando suas ideias em uma
estrutura fechada e ditadora de sentidos.
"Se sou
partidário de uma forte presença do pensar em um romance, isto não quer dizer
que eu goste do daquilo que se chama o “romance filosófico”, esta sujeição do
romance a uma filosofia, “esta transformação em narrativa” de ideias morais ou
políticas. O pensamento autenticamente romanesco [...] é sempre sistemático,
indisciplinado, é próximo do pensamento de Nietzsche: é experimental; força
brechas em todos os sistemas de ideias que nos cercam; examina [...] todos os
caminhos de reflexão, tentando ir ao extremo de cada um deles", diz.
Esta mensagem aclara um pouco o
sentido de diversas cenas e trechos da obra kunderiana. Em vários pontos de
seus romances, há uma suspensão da narrativa para breves comentários
existenciais – com criações de conceito como o de “imagologia” em A imortalidade – voltados para a análise
da conduta de suas personagens. Muitas vezes, tais comentários podem soar
desconexos e incompletos, mas é justamente aí que Kundera mostra ser acima de
tudo romancista, mesmo brincando de pensador escrevente, como diríamos usando a
tipologia de Roland Barthes: ele não defende uma tese, mas explora situações
com seu olhar filosófico. Os seus romances, portanto, afastam-se do que é feito
por um Turguêniev, por exemplo, em Pais e filhos, obra marcada por uma crítica mordaz ao niilismo de Bazarov a qual
se mostra concretizada nas últimas linhas do enredo, cheias de um louvor
cristão à vida eterna.
De forma diferente, usando a
multiplanaridade ao invés da polifonia, Kundera realiza efeito similar do ponto
de vista dialógico ao obtido por Thomas Mann e, seis romances: o pensador surge
para logo em seguida sumir e deixar as situações falarem por si mesmas ao
leitor, por meio de suas diversas vozes ou plano de existência e narrativa,
convidando-o a dar um sentido ao objeto lido e refletir sobre sua existência a
partir daquilo que ele produz como significado para o seu ato de ler.
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