Numa folha, leve e livre – de António Ramos Rosa
Por Pedro Belo Clara
Conta-se já perto de quatro anos
desde o falecimento deste poeta maior do universo literário português, e dado
que ainda não havia merecido destaque neste nosso espaço de discussão tem-se
agora como imperial o ajuste de tamanha falha.
Ramos Rosa nasceu na cidade de
Faro, no Algarve, em 1924, vindo na década de sessenta a radicar-se definitivamente
em Lisboa. Nunca terminou o ensino secundário por motivos de saúde, embora
tenha desempenhado funções como empregado comercial, professor e tradutor, antes
de se dedicar em pleno à prática poética, ofício no qual entrou como um
assumido autodidacta – não obstante o ensaio e o trabalho crítico, áreas também
merecedoras da sua atenção. Entretanto, um certo talento para o desenho foi gradualmente
surgindo nos intervalos da escrita, como o próprio admitiu numa entrevista datada
de novembro de 1996: «Eu faço uns desenhos que são rostos e faço-os com uma
grande espontaneidade: são automáticos e confluentes». Sobre este aspecto,
acrescenta-se que Ramos Rosa chegaria a expor os seus trabalhos em diversas
galerias espalhadas pelo país, bem como noutros espaços consignados para o
mesmo efeito, e sempre com um assinalável sucesso.
Entre 1951 e
1953 circulou nas bancas portuguesas a revista Árvore, um projecto que o autor auxiliou
a fundar, dando assim início a uma longa colaboração com jornais e revistas de
índole literário, dos quais se destacarão a Colóquio-Letras e a Seara Nova.
Finalmente, no término dessa década, lança ao público O Grito Claro, o seu
primeiro livro e ao mesmo tempo o primeiro número de uma colecção de poesia
dirigia pelo amigo e também poeta Casimiro de Brito, que felizmente ainda se
encontra entre as hostes dos viventes. Quase simultaneamente inicia a Cadernos
do Meio-Dia, revista que não somaria mais que dois anos de existência, vindo a
ser cancelada em 1960 por intervenção da polícia política então em vigor – mais
uma marca para o seu curriculum de contestatário, diga-se de passagem, uma vez
que durante a juventude havia cumprido pena por militância no MUD juvenil
(Movimento da Unidade Democrática), uma organização que veemente se opunha ao fascismo
vigente e que à época era nacionalmente dirigida por Mário Soares, posteriormente
um símbolo maior da democracia portuguesa.
Seriam estes
os primeiros passos de um autor que, graças ao fino rigor do seu trabalho
poético, durante a gradualmente frugal existência que levou a cabo viria a
testemunhar o justo reconhecimento dos seus pares, nacional e internacionalmente
(na Bienal de Liège (Bélgica), por exemplo), como atesta o outorgamento do Prémio
PEN (Poesia) em 1980, do Prémio Pessoa em 1988 ou do Prémio Sophia de Mello
Breyner Andresen em 2005, além das duas honrosas distinções levadas a cabo por ordem
governamental (em 1992 e 1997, respectivamente, foi eleito Grande-Oficial da
Ordem Militar de Sant'Iago da Espada e agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do
Infante D. Henrique). Nem a sua região natal o esqueceu: a biblioteca municipal
de Faro ostenta o seu nome e a universidade local concedeu-lhe em 2003 o grau
de Doutor Honoris Causa.
Partem os
Homens, ficam as palavras. E com elas um pouco do perfume de quem as cultivou.
Extraordinariamente, Ramos Rosa legou-nos perto de oito dezenas (!) de volumes
espalhados por mais de trinta editoras, em que “apenas” um pouco mais de cinquenta
foram escritos no seu peculiar e cintilante modo de expressão poética, e isto muito
provavelmente devido ao facto de, a certa altura, a sua escrita ter assumido a
capa de um “exercício diário de sobrevivência”, como Maria Ramos Rosa, sua
filha, destacou em momento oportuno (na década de 90, por exemplo, chegou a
editar três livros num só ano, e por mais do que uma ocasião o faria). Assim se
poderá concluir que a escassez de acesso ao universo do autor, seja superficial
ou funda a viagem que por ele o leitor deseje empreender, não deverá constituir
um grave obstáculo ao seu conhecimento. (Aproveita-se a ocasião para louvar, e
disso fazer recomendação, a iniciativa que no ano a seguir à sua morte a
Assírio & Alvim, que em vida nunca o publicara, empreendeu ao antologiar a poesia
de Ramos Rosa, um gesto que se torna mais um símbolo do contínuo esforço desta
chancela em manter bem viva a chama dos mais iluminados poetas – ou sombrios,
dependerá do prisma).
Como um dia
José Tolentino Mendonça escreveu, a obra roseana dota-se de um «corpus poético
absolutamente invulgar, em qualidade e em dimensão». Eduardo Lourenço completa
a ideia focando o carácter ontológico e místico da mesma, um exercício que
parece visar a «restituição e a afirmação do real», para então concluir: «a
autoconsciência aguda define a poesia de Ramos Rosa».
Naturalmente,
não se destacam tais apreciações sem existir um motivo prático e facilmente
aplicável à realidade desta discussão por detrás de cada uma. Pois, em boa
verdade, o livro que hoje apresentamos, o último editado em vida pelo autor, parece
nascido de uma forja de manuseamento aparentemente espontâneo que na sua
simplicidade de labor antes foi parcialmente descodificada. É assim uma obra,
pese ainda uma boa dose de maturidade revelada pelo exercício nascido de
oitenta e oito primaveras vividas, que se apresenta por uma linha poética
terrestre e solar até às vísceras da sua forma. Por outras palavras, trata-se
de uma poesia, que amiúde é contemplativa, firmada por terra e sol (e o demais
que se espraia por tal intervalo) num gesto de desenvoltura gentil, movimento
esse que marca o seu aprazível ritmo. Sobre esse aspecto, podemos confiar na
promessa do título: “leve e livre”, como se escrito na delicada textura de uma
verde folha caída. Mas que não se equivoquem os incautos: a simplicidade da
aparência irrompe nitidamente de uma complexidade densa que exige um aguçado
gume para, decepando galhos e cortinas, permitir que o sol adormeça no regaço
da palavra.
Estes polos que
se vincam, “sol” e “terra”, poder-se-iam descortinar de modo indirecto pelas
páginas da obra, após o degustar das linhas poéticas que dão corpo à essência
do livro, mas não é o que se verifica, dado que o autor abertamente os afirma
em toda a sua magnificência, como se se tratasse de uma escolha inata para a
elaboração do ofício, dada a natureza que lhe assiste. São, portanto, dois
elementos com cujo o contacto se promove a sobrevivência do canto que o poeta elabora,
pois vitais se revelam ao bater do coração que lhe anima o peito: «Escolhi a
terra para dormir / (…) / nunca formei uma palavra / nunca encontrei uma saída»
(“Escolhi a terra para dormir”) ; «Despi-me / no círculo do sol / para que a
palavra / fosse tão justa / como o peso perfeito do dia» (“Corri atrás das
lentas flechas”).
A entrega é
tão completa que inevitável se torna a união entre o homem e a natureza
circundante, pano de fundo do poema que como flor bravia desprendido irrompe da
gentil e materna terra, o ventre da sua semente: «as ervas hão-de romper / das
minhas unhas verdes» (“Amar as palavras”). De um modo óbvio, aceita-se que para
esta discussão se invoquem os preceitos do paganismo. Em situações distintas, a
referência é feita por um meio mais explícito, recorrendo à imagem do «deus da
tranquilidade vegetal» e do «deus dos elementos vivos» (“Num amoroso peso” e
“Lúcido rosto”, respectivamente). Mas subsiste, por uma via mais apurada, uma
convergência até à única unidade possível, onde poema e poeta são uma coisa só,
onde Homem e Natureza se descobrem num só perfume – aquela que então se
apresenta como a «evidência indecifrável» (“Quero dormir na água das
palavras”).
A poesia que
neste tão breve livro nos é dada a saborear nasce de um eterno deslumbre, ou da
«surpresa de uma primeira vez» (“Em forma sabor e duração”), se o leitor
preferir, e vivifica-se através de uma profunda intimidade com a mais clara,
limpa e pura realidade. Sobressai uma agradável expressão de encantamento,
colorida pela força anímica de um êxtase sereno, e uma constante amorosidade
por tudo o que o rodeia, qual fonte irrompendo do centro do ser e daí se espraiando,
generosa, até ao âmago de todas as vivas coisas. São claramente aspectos que
não deixam de nos remeter para o mais fino oiro que a filosofia oriental nos
concede através dos seus pressupostos de Unidade, Vazio e Verdade – uma tríade
que, no fundo, se remete a uma só coisa. Pois o poeta, sabendo-se «o monótono
murmúrio do tempo» (“Neste jardim”), revela uma ideia incrivelmente lúcida e
iluminada acerca de si mesmo, assim como a sua poesia o exprime materialmente,
sobre a eternidade que sabe residir em si e sobre aquela que se poderá designar
a sua “real identidade”. Mas houve um processo a urgir o seu desenrolar, um
caminho a pedir o seu trilhar antes de tal visão ser concedida. O poeta imergiu
no abismo de si mesmo, e então, pelos mistérios da viagem, algo de obscuro se
iluminou: «Aboli o delírio das sombras» (“Tenho um jardim”). Só assim pôde, no
eterno presente da obra, louvar «a leveza de ser nada» (“Um gesto que não veja
a mais”), cantar na segura certeza de que «Tudo tem o seu lugar Tudo / é
verdade» (“Só o que não pode falar”).
Dadas tais
características, a materialização da poesia neste livro luminoso só poderia
acontecer através de um processo limpo de captação do momento presente, a única
realidade que efectivamente existe («Há sempre só este momento / o resto
pertence à morte», “Um gesto que não veja a mais”), ao que se lhe junta o
recurso à palavra translúcida e ao despojo de qualquer forma pontual, embora a
magia da metáfora ainda se faça sentir.
Ramos Rosa
é, arriscamos, um poeta único, talvez ele próprio um autêntico poema. É claro
que nos referimos ao trabalho em causa, o seu último, o que desde logo
contempla o amadurecimento que os anos promovem ao coração dos Homens. Por isso
mesmo, dir-se-á deste livro, tão breve e completo, um indizível prazer – não um
objecto de leitura, mas um abismo solar que só em pleno se prova após o mais
despojado dos mergulhos. O magnífico «fruto melodioso da tranquila hora», que
«cintila em plenitude de presença» (“Em forma sabor e duração”), é a cada
página revelado como se uma breve brisa soprasse a folha que no ramo o oculta,
permitindo a cada linha lida uma pequena dentada na cheia textura do sumarento
pomo. Também assim o leitor consegue um lugar na assistência do extraordinário
espectáculo de “nascer continuamente em transparente plenitude” (“Lúcido
rosto”). Somente por esse efeito, é difícil conter a gratidão no peito daquele
que absorve tamanha arte. Ou melhor: que mergulha em tamanho abismo para de
mãos enlaçadas com a restante existência dele sair vestido pela nudez do sol.
Creio nas
palavras
transparentes
que
pertencem ao vento
ao sal
à latitude
pura
Aqui
no meu
reduto
entre ramos
e ar
entre a
cintilante indolência da água
creio no que
nos une
em ondas
vagas
apaixonadamente
lentas
Aqui
eu pertenço
ao centro da
nudez
como uma
gota de água
ao rés do
solo
na sua
imediata e nua felicidade
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