João Gilberto Noll, voyeur de todos nós
Por Pedro Fernandes
João Gilberto Noll. Foto: Fernando Gomes |
Alguém escreveu
que João Gilberto Noll foi um cronista da intimidade humana e revelou, com sua
obra, os nossos recalques e o que, mesmo inconscientemente costumamos negar que
somos. É uma definição muito apropriada. Se o mundo literário do escritor é o
do que se esconde, esse mundo também chegou a ultrapassar as fronteiras da obra:
Noll, ele próprio, não foi o escritor que, mesmo incensado pela crítica acadêmica,
quis estar à frente dos holofotes. Se alguns podem atribuir esse interesse à
timidez ou mesmo ao zelo da imagem, que esta seja sobreposta pela obra
produzida, com a afirmativa sobre seu interesse literário, esse não-estar na
impulsão da fama tem, logo, outra dimensão. É que, concordemos ou não, há entre
o universo ficcional e o de fora da ficção, vasos comunicantes que
inter-relacionam um e outro ao ponto de confundir-se fronteiras. Talvez porque
essas fronteiras não existam, como é preferível acreditar num tempo de
destituição de divisores.
Logo, a
exposição do que negamos, corpo e pulsões, não é mero recurso imaginativo de um
escritor interessado em compor uma estética fundamentada no encalço do que as
teorias psicanalíticas andam a dizer de sujeitos. É uma realidade velada que se
revela; a exposição do que fazemos quando ninguém nos vê. Por isso,
toda sua obra é uma maneira de ler o outro pelas dimensões do que dele ocultamos
e do que ocultamos de nós. E esse trabalho é uma grande tentativa de ruptura com
os padrões que nos foram, direta ou indiretamente, impostos e contra os quais criaram-se
leis e deveres de controle, num contínuo exercício de domesticação dos
instintos. Ou seja, é mais uma peça na extensa necessidade de desconstrução de
um modelo social em desajuste com os seus sujeitos.
João
Gilberto Noll, portanto, é desse tempo de destituições e fez do universo
literário um laboratório para experimentos com a linguagem. A constatação diz
sobre o silêncio que grande parte da grande mídia vez em torno de sua morte ou
à redução da perda irreparável a factoide escondido por debaixo das querelas
mais fúteis, o suprassumo do lixo cultural que diariamente em doses cavalares
nos obrigam a engolir. Por que uma mídia conservadora, numa sociedade arcaica e
arcaizante como tem se demonstrado nos últimos anos o Brasil, daria atenção a
um escritor cuja obra denuncia sobre a mortal solidão dos marginalizados por
esse sistema? E quando uma obra que zela pelo papel indispensável da criação
literária, ser oxigenação da língua, ganhou dedicação dessa mesma mídia
interessada no discurso fácil, raso e que atenta contra a capacidade do leitor
em aventurar-se nas sendas de seu próprio idioma?
Se se
repetir o de sempre, acontecerá de ser Noll o escritor do futuro. Deixou-nos
uma obra prolífica – não apenas quanto aos temas, mas quanto aos gêneros – e
uma obra que marcou alguma renovação nas produções literárias brasileiras de a
partir da década de 1980, quando já começávamos a deixar de ter alguns dos
nomes mais criativos da nossa novíssima literatura. Descontando os inéditos que
há muito estão em moda aparecer, mesmo quando os escritores deixam dito que não
apareçam, são dezoito títulos, dos quais, treze são romances, dois
infanto-juvenis e três de contos – a forma narrativa pela qual começou seu
trabalho com a escrita.
Nasceu em
Porto Alegre em 15 de abril de 1946. Definiu-se como “um homem da palavra
transfigurada”. Assíduo leitor desde criança passou a vida inteira negando suas
influências, embora a crítica o filie a escritores como Clarice Lispector, pelo
tom intimista de sua narrativa, e à literatura urbana de Nelson Rodrigues, marcada
pelos temas do isolamento dos indivíduos, o recalque, a violência e os entraves
com a psique.
O primeiro texto que escreveu foi “Alguma coisa urgentemente”, um
conto que mais tarde foi incluído no seu livro de estreia O cego e a dançarina. Neste livro, aliás, estão as bases de toda a
literatura de Noll, como é destacado por Fábio Figueiredo Camargo: “Nessa
estreia do autor há uma linguagem depurada que se pode ver em romances
posteriores, mas também há espaço para a linguagem barroca demonstrada em A fúria
do corpo. Já estavam presentes os narradores nômades em constante deslocamento
tanto por lugares geográficos, muitas vezes não mapeáveis, mas também os
sujeitos errantes da existência, marca maior de suas personagens, em
perambulação constante que lhes permite a contemplação tão cara ao escritor gaúcho”.
Em grande
parte, sua narrativa se constitui pela mesma voz: a do sujeito tímido, de voz
embargada, acanhada, obsessiva, compulsiva. “O que eu demonstro nos meus livros
é a voz de um homem que habita em mim e que não sendo propriamente eu se
transfigura em alguém que eu não poderia prever. É esse o meu protagonista”. E
esse tom foi encarnado diversas vezes pelo próprio João Gilberto Noll,
reafirmando outro caráter do escritor: a tendência para a performance, esse
exercício de materialização oral do texto tão caro ao tempo de sobreposição do código
escritural.
Nestas intervenções públicas, o escritor se tornava o aedo do nosso
tempo, o que, ao invés de contar os feitos heroicos de um povo, dizia-nos sobre
nossa impotência frente ao mundo. “Por isso, quando escrevo a palavra tem aos meus
ouvidos uma vibração mais musical que semântica. Uma coisa prestes a
materializar uma ideia mas por enquanto ainda relampeja tão-só a sua verve física
como se fosse pura melodia, para num segundo momento então se inserir numa
ordem narrativa – podendo aí sim irromper o encontro cabal dessa espécie de
veia túrgida e insone da escrita com a suculenta vigília do leitor”, disse o escritor,
reafirmando, assim esse lugar do aedo pós-moderno.
Ao revelar o
que se oculta ou que ocultamos, Noll atenta para outra condição tornada tabu,
quase pecado na sociedade individualista: olhar. Ao deixarmos de olhar para o
outro, sobre o que se passa com o outro, perdemos uma das marcas fundamentais
do ser: a da alteridade. E em consequência, o hábito de olhar para nós mesmos e
percebermo-nos em nossa inteireza e nossas faltas. Na mesma linha, a capacidade
de fabulação do mundo, dimensão que nos diferencia dos demais animais. E é,
portanto, uma obra em apelo à vida e às contradições que nos definem. É uma
obra que se constitui do ato de roubar da observação íntima o que, pela conveniência
de não ver ou saber do outro não mais roubamos.
Premiado cinco
vezes com o Prêmio Jabuti, com o Prêmio da Fundação Guggenheim e da Academia
Brasileira de Letras, morou no Rio de Janeiro, quando começou a escrever para
jornais como Folha da manhã e Última hora, nos Estados Unidos, onde
foi escritor-residente e professor convidado, da obra de Noll, se destacam
ainda A céu aberto, onde se verifica a
depuração radical da linguagem, Hotel
atlântico, Acenos e afagos, Harmada, A fúria do corpo, Bandoleiros
e Lorde. Vários de seus livros e contos
tiveram adaptações para o cinema, o que fez com que, mais tarde, o escritor se
interessasse em compor roteiros para o teatro: em 1992, escreveu Quero sim, que foi dirigida por Marcos
Barreto. Entre as releituras de sua obra pela sétima arte, destacam-se a
adaptação de “Alguma coisa urgente” como Nunca
fomos tão felizes, Harmada e Hotel Atlântico, este dirigido por
Suzana Amaral.
O escritor
morreu no dia 29 de março de 2017.
Comentários
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