As viagens transformadoras de Paul Bowles
Por Emma Rodríguez
No começo de
O céu que nos protege, sua obra mais célebre,
Paul Bowles, deixa claro que a diferença fundamental entre o turista e o
viajante reside no tempo: “Enquanto o turista geralmente volta depressa para casa
ao fim de algumas semanas ou meses, o viajante, que não pertence a um lugar
mais do que a outro, se locomove devagar, ao longo de períodos e anos, de uma
parte da terra a outra”, diz o narrador do romance, quem também apresenta outra
distinção: o turista “aceita sua própria civilização sem questionar; não é
assim com o viajante, que compara o seu país com os outros e rejeita os
elementos que não estão a seu gosto”. Nesta breve e certeira argumentação se
esboçam não só as características do Bowles viajante mas sua maneira de compreender
a existência.
“Meu
interesse pelas culturas estrangeiras era ávido e obsessivo. Estava convencido
de que era benéfico viver entre pessoas cujas motivações não entendia; tão irracional
convicção era sem dúvida uma tentativa de justificar minha curiosidade”, confessa
o escritor em Memórias de um nômade,
um livro que voltei depois da leitura de Desafio
à identidade, livro que reúne uma diversidade de artigos de viagem:
trânsitos de ida e volta, caminhos e fascinações de quem nunca resistiu buscar
a poesia e a magia além de onde os sonhos lhe indicavam que podiam buscar-se.
Durante uma
época li muito Paul Bowles, motivada por seus universos remotos, por sua indagação
às diferenças, por suas peregrinações em busca de paz e de sentido, por sua
maneira tão especial, tão distante, de olhar o mundo sem chegar a envolver-se totalmente,
por sua voz diáfana. Uma voz capaz de chegar ao centro das coisas sem dar
rodeios, provocando uma suave palpitação de melancolia, uma doce e envolve
tristeza, um sentimento de fragilidade e de perda, de solidão e insignificância
ante a grandiosidade do universo, mas também disposta a captura a energia
estimulante dos despertares, do recém-descoberto, o sorriso cúmplice que se
instala nos lábios ante direções inesperadas, divertidas, ante situações cômicas,
nascidas tantas vezes da constatação das distâncias entre as culturas, entre as
pessoas.
Muito disso
me voltou depois de percorrer Desafio à
identidade. Regressei ao universo de Bowles, segui suas rotas e busquei composições
musicais, animada pelas constantes referências à música nos seus textos, pela
importância que adquirem nos mesmos sons, no que se escuta. Recuperei a imagem
e a palavra de Bowles graças a adaptação cinematográfica que Bernardo
Bertolucci realizou de O céu que nos
protege.
No filme, o
escritor, que se colocou no papel de narrador, aparece sentado ao fundo de um café,
observando com os olhos sábios de um velho, os movimentos de suas personagens,
relendo sua própria vida, porque há muito de sua vida em O céu que nos protege: a presença permanente dos sonhos, a conflitiva
e sempre cúmplice relação com Jane Bowles, o desejo de fugir para muito longe
dos Estados Unidos, os desejos de mover-se, de não parar, até encontrar por fim
o lugar em que se perceba uma certe plenitude. Há um momento comovente no romance
que é quando o casal protagonista contempla um velho e venerável árabe, imóvel
no alto de uma rocha no meio da majestosa paisagem, e ele diz para ela: “O céu
aqui é muito estranho. Quando olho para ele tenho a sensação de que é sólido lá
em cima, protegendo-nos do que está atrás”. E ante a pergunta do que há de se encontrar
por trás das cortinas celestes, responde: “Nada, acho eu. Só a escuridão. A
noite absoluta”.
O texto que conclui
Desafio à identidade intitula-se
simplesmente “Céu” e nele Bowles destaca: “O estado de ânimo de qualquer cena
que representemos em nossas vidas vem determinado, em grande parte, pela luz
que se projeta sobre nós do alto. O céu, em qualidade de mestre eletricista, proporciona
a nossas ações uma infinita variedade de efeitos luminosos que contribuem para
modelar até mesmo as emoções que as acompanham. A luz minguante do crepúsculo serve
para a troca de intimidades; os jorros de luz de uma manhã de primavera, para
sentir um prazer irracional; a escuridão da noite, quando não cai do céu
nenhuma pitada de luz, para converter-se em vítima das próprias fantasias;
o gris claro e indiferente do céu entristecido do verão, para estimular a
indolência. Como podemos saber em que medida determinam nossas ações a luz que
nos banhava enquanto as realizávamos?
Paul Bowles e a atriz Debra Winger durante gravações de O céu que nos protege. |
Há muitos
céus neste livro que nos conduz a entornos grandiosos, mas também a lugares
miseráveis. Há peças que são lúcidas crônicas de observador contumaz e outras
que parecem relatos retirados de As mil e
uma noites. Bowles nos leva pela mão, como o bom guia que é, por paisagens
diversas (Marrocos, Sri Lanka, Índia, Tailândia, Madeira, Istambul...), percorre
as geografias do globo terrestre buscando sempre o equilíbrio entre a descrição
das paisagens e os sons da vida cotidiana.
Ele é uma
testemunha que contempla sem julgar, sem envolver-se a maioria das vezes,
distante mas não muito, atento às cenas cotidianas, ao que acontece dentro das casas,
mas também a suas impressões mais íntimas, às emoções produzidas por
determinados lugares ou pessoas. É precisamente este último aspecto, a
capacidade para capturar as atmosferas, a aura dos lugares e seus habitantes, o
que dá a seus escritos, muitas vezes encomendas para revistas de viagens, um
longo alento, que excede as circunstâncias em que foram produzidos – de 1931 a
1993.
“A vida de
Bowles era complexa no emocional, sexual, geográfico e, certamente, na criatividade”,
indica Paul Theroux, outros dos grandes viajantes das letras contemporâneas, em
seu papel de apresentador da obra. “Era bonito, difícil de impressionar,
atento, solitário e sabia o que queria; sua aceitação quase fatalista o convertia
no viajante ideal [...] Tinha medo de voar, por isso viajava de barco, ônibus e
trem”, segue traçando seu retrato.
Quem não tiver
entrado no território ficcional do escritor, quem apenas conhecer esse livro de
passagem ou dele se aproximem pelo interesse de viajante, não se sentirá
enganado e seguramente encontrarão razões para descobrir – ou não – alguns de
seus itinerários. Quem se encontra, como é o meu caso, entre sua legião de
seguidores, agradecerão por ter acesso a muitas de suas chaves, aproximar-se às
razões sobre seu temperamento nômade, às margens de suas inquietações. A estes
últimos deverão se interessar muito pelo texto intitulado “Janelas do passado”,
onde Bowles fala de um jovem – ele próprio – que caminha pela rua Sierpes de
Sevilha, pede um gaspacho andaluz e
abre um livro de Federico García Lorca, Romancero
gitano, do qual entende apenas metade das palavras que o compõe.
Este jovem
estadunidense busca uma necessária conexão com o passado, com as razies de
algumas tradições das que sua nação tem falta. É precisamente essa busca o que
explica sua fascinação pela Europa, as constantes visitas a museus, catedrais,
festivais. “O que buscam os estadunidenses e, portanto, o mais importante, que
podemos levar de volta [...] qualificaria de infância, uma infância pessoal que
guarda certa relação com a infância de nossa cultura. A esmagadora maioria de
nós somos europeus transplantados, de um lugar ou outro [...] O que queremos é
experimentar a sensação de bem-estar que tem um indivíduo quando sente de forma
irrevogável que faz parte integral, ainda que seja ínfima, da comunidade
histórica”.
Bowles
sempre se sentiu atraído pela Espanha, sobretudo por Andaluzia, que visitou com
frequência. No artigo citado chega a dizer que é “o país mais dramático de
Europa ocidental”, um país cujos “contrastes são sempre fáceis de perceber e de
recordar”. “Quase cada aspecto da Espanha deve seu caráter a uma contradição. O
elemento mais importante da paisagem é que em meio a aridez da impressão de
fertilidade, a arquitetura é ao mesmo tempo um acordo e um choque entre
conceitos ocidentais e orientais de proporção e de formas, a gente costuma ser
ou muito rica ou muito pobre…”, argumenta, colocando em destaque sua admiração
pela música de Manuel de Falla, a quem decidiu visitá-lo em sua casa em Granada, depois
de ver seus passos de longe em mais de uma ocasião.
O Museu do
Prado, Alambra, a Catedral de Barcelona… se convertem em nutrientes que o
jovem do artigo [Paul Bowles] eleva às alturas. “Cada hora que passei com os
olhos e a mente abertos terá feito avançar um pouco mais no caminho em busca da
compreensão do mundo”, sublinha o escritor. Eis então o ponto de partida de todas
as viagens que realiza: os olhos e a mente despertos, ávidos por descobertas,
por se deixar surpreender, desconstruir apreensões, interiorizar cada experiência,
cada detalhe.
Quem não
terá passado por, ao reviver uma viagem recorde não as imagens dos grandes
monumentos mas seus pequenos detalhes: a fonte onde lavou as mãos no meio do caminho,
o café entre cadeiras vazias onde mergulhou com paixão numa leitura reveladora,
a hospitalidade de quem o recebeu em sua casa... Bowles tem uma particular
sensibilidade para captar esses momentos. Introduz cada um deles em suas crônicas
e isso contribui para dotar os lugares de alma. Traça com delicadeza esses
mapas privados que são os que finalmente nos marcam, sem deixar de ter em conta
que quando escreve sobre viagens deve esquecer-se do fabulador, do construtor
de ficções.
Paris, a cidade
dos artistas, cenário de formação também para Bowles, é outro dos destinos recorrentes.
Aí encontrou-se com Óscar Domínguez, com Ezra
Pound, com Tristan Tzara, com Gertrude Stein… Esta última foi quem lhe
aconselhou ir ao Marrocos, visitar Tânger, o lugar com o qual sonhou um dia e
onde pode fechar seus olhos definitivamente num 18 de novembro de 1999.
Dentre todas as cidades que percorreu, Tânger foi a eleita, daí que se converta
num dos principais focos de atenção em Desafio
à identidade e do restante de uma obra que não haveria sido o que foi sem
as influências mágicas aí presenciadas.
“Eu não escolhi
viver em Tânger de forma permanente, foi um acaso. Tinha a intenção de que
minha visita fosse rápida; depois iria para outro lugar e seguiria de um lado
para outro indefinidamente. Fiz-me de preguiçoso e demorei ir embora. E
logo, um dia, me vi surpreso que não só havia muito mais gente no mundo que pouco
tempo antes, que os hotéis não eram tão bons, nem as viagens tão confortáveis e
que os lugares em geral eram muito menos belos. A partir de então sempre que ia
a algum outro lugar, desejava imediatamente voltar a Tânger. E se agora estou
aqui é apenas porque estava também aqui quando compreendi até que ponto havia o
mundo piorado e que eu já não desejava mais viajar [...] E mais importante,
saboreio a ideia de que a noite, enquanto durmo, perfura seus túneis invisíveis
em todas as direções, de milhões remetentes a milhões de receptores
desprevenidos”, explica o autor em Memórias
de um nômade.
Se há um
ângulo, uma perspectiva, a partir da qual Paul Bowles olha é a do limiar, dessa
esquina a partir da qual os usos e costumes começam a transformar-se. Muitas
das coisas que conheceu em suas primeiras viagens estão a ponto de desaparecer.
Olha com certa nostalgia a Costa do Sol antes do desenvolvimento urbano e
lamenta as construções caóticas que acabam por destruir todo seu encanto, do
mesmo modo que a tendência de europeização em África. A colonização está
próxima do fim quando Bowles escreve muitos de seus textos, grande dos povoados
que visita tomaram os fios de seu destino. A Tânger internacional, aberta, cosmopolita,
que lhe cativou, está se convertendo em algo diferente, mas ainda que restem
lugares onde se refugiar, onde ficar, traços de memória e cenários permanecem
em sua imaginação.
Há uma
belíssima peça em que reflete sobre a paulatina extinção dos cafés tradicionais
marroquinos ante o gosto avassalador pela modernidade. Esses lugares onde as
horas parecem paradas, são onde melhor nos aproximamos do pulso do país. “Hoje,
quando inclusive nas montanhas mais distantes começa a estabelecer-se uma
relação entre o número de horas que um homem trabalha e o salário de que ganha,
qualquer instituição que ainda não tenha sido tomada pela noção do tempo é um
fenômeno digno de apreço”, escreve.
E em outras
páginas seguimos seus passos por cidades como Fez, que “parecem
inesgotavelmente complexas e vagamente ameaçadoras”, onde seus cidadãos ainda
vivem relaxados e sem mostrar interesse pelo que se passa fora de seus contornos.
Vemos Bowles em seus passeios por Casablanca, que nada tem a ver com o famoso filme.
Deambulamos ao seu lado por Istambul, olhando do alto, através das cúpulas e
dos minaretes que “se elevam por cima da desordem”, de uma cidade que define como
o paraíso de um fotógrafo por sua “estética improvável e incongruente”.
Na crônica
sobre Istambul encontramos outro dos interessantes argumentos de Paul Bowles, o
que se refere às diferenças de caráter entre os povos que consomem álcool e os
que fumam haxixe. “O haxixe não abole nenhuma inibição; ao contrário, a
reforça, empurra o indivíduo a perder-se ainda mais nos recôncavos de sua
própria personalidade asilada, e lhe prende à contemplação e à inação. É lógico
que existe uma estreita relação entre a cultura de uma sociedade em particular
e os recursos que utilizam seus membros para conseguir alívio e euforia. No
judaísmo e no cristianismo, o recurso sempre tem sido o álcool; no islã o haxixe.
O primeiro tem efeitos dinâmicos, o outro estáticos. Se uma nação, por muito
que se equivoque, deseja ocidentalizar-se, primeiro tem que renunciar ao
haxixe”.
Seja por
esse tipo de reflexão; seja pela profundidade e a poesia que encerram seus
pensamentos; seja pelos diálogos pungentes que introduz nas lembranças, por sua
capacidade em ver além das aparências ou por inserir dados e detalhes desconhecidos,
o certo é que cada um dos textos desse livro é muito enriquecedor. Todos são recomendados
e não gostaria de findar sem me referir aos artigos em que relata o tempo
quando viveu na ilha de Taprobana, no Sri Lanka, “um simples penacho de selva
tropical surgindo no meio do oceano”, cuja visão Jane Bowles diz: “É um conto
de Poe. Já compreendo por que você gosta”. Nem deixar de citar as intensas crônicas
em que dá conta da acidentada rota que realizou pelos territórios de Rife,
região montanhosa do Marrocos, em busca de essências da música autóctone
marroquina.
Convido, por fim, a deixar se levar pelo particular ritmo de
Bowles, a abrir os olhos, aguçar os ouvidos, a descobrir ao seu lado as
impressionantes paisagens do Saara, que é onde se situa O céu que nos protege.
“Ninguém que tenha passado um tempo no Saara é o mesmo que quando chegou [...]
Aqui, nesta paisagem eternamente mineral iluminada por estrelas como labaredas,
até a memória desaparece; não resta mais que a própria respiração e o som do coração
batendo. Se inicia no nosso interior um estranho processo de reintegração, de
nenhuma maneira agradável, e se pode eleger entre lutar com ele e insistir em continuar
sendo a pessoa que sempre foi, ou permitir que siga seu curso”, assegura o escritor,
disposto a transformar-se em cada viagem. Transformemo-nos, pois, com sua
leitura, recuperando seus passos sobre a terra.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma versão livre de "Los viajes transformadores de Paul Bowles", publicado em Lecturas Sumergidas.
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