A marca humana, de Philip Roth

Por Pedro Fernandes

Philip Roth. Foto: Bob Peterson.



As informações sobre A marca humana colocam este romance ao lado de Pastoral americana e Casei com um comunista entre os livros de Philip Roth sobre a vida na América do pós-guerra – “um painel impressionante em que indivíduos de grande vigor moral e intelectual são assolados por forças históricas fora de controle”, diz a contracapa da edição publicada no Brasil com tradução de Paulo Henriques Brito pela Companhia das Letras. A citação desses termos aqui tem um interesse: o de repensá-los. Que este é um romance sobre as interpenetrações sócio-históricas no processo de constituição das identidades dos sujeitos não há dúvidas. Aliás, pode-se mesmo dizer que toda a obra do escritor circula essa perspectiva sobretudo quando são as identidades deslocadas do padrão defendido pelos estadunidenses mais radicais, como é o caso do negro e do judeu especificamente. 

Mas que as personagens sejam meramente “assoladas por forças históricas fora de controle”, como se a narrativa lidasse com o tema do acaso ou a força de um destino inexorável, é vã; principalmente se a obra em questão for A marca humana. O ideal será observar este romance como um apanhado de consequências resultadas das escolhas individuais sobre a condição de ser e estar no mundo e a participação das implicações histórico-sociais nesse processo de reconhecimento determinado pelas escolhas, sendo tais implicações motivadas pela ação de outros indivíduos. 

Assim, a Guerra no Vietnã, para citar o tema do pós-guerra que circula na narrativa desse romance, não é um produto do acaso na vida de personagens como Louie Borrero, quem encontra uma alternativa de vida depois de voltar da guerra em cuidar voluntariamente dos traumatizados pelo conflito, de Lester, o ex-companheiro de Faunia que se separa da mulher quando da morte dos filhos numa situação duvidosa entre o proposital e o acidental, ou outros desajustados como Chet, “pintor de paredes divorciado três vezes, ex-fuzileiro naval”, Bobcat, ex-infante, que perdera o pé por causa de uma mina e trabalhava para a Midas Muffler” ou Joe Brown/ Bill Green/ Swift, “um sujeito esquisito e subnutrido, magricelo, asmático, cheio de tiques, que havia perdido quase todos os molares”. 

A guerra é produto de outros homens e a vida deteriorada de seus indivíduos é produto de uma imposição do Estado oferecida sob o discurso diverso de honra à pátria, zelo pela tradição moral de um povo, ordem, democratização de um povo, tudo termos cujo sentido principal é dominação, imposição cultural, manutenção de uma indústria e de uma economia e expropriação do outro, para citar algumas determinantes. Isto é, o lugar histórico se não é pré-determinado, também não é mera casualidade; é resultado de um conjunto diverso de escolhas e de modelos de governança – no caso específico da guerra. Especificamente no contexto estadunidense é uma consequência sempre esperada haja vista a condição imperialista dos Estados Unidos. Um império se faz à custa da imposição do poder e o preço a se pagar para isso é o conflito. 

Mas, tratemos de outros conflitos mais visíveis em A marca humana. Como dizíamos a guerra não é exatamente o epicentro do romance. É sim a investigação de corte ora ficcional para o próprio conteúdo da ficção ora biográfica conduzida pelo escritor Nathan Zuckerman, a princípio um contratado do professor aposentado Coleman para escrever sua história pessoal numa espécie de registro para posteridade de uma imagem acabada como é tentativa das grandes personalidades, sobretudo quando elas oferecem uma existência marcadamente contraditória. 

No caso de Coleman, a contradição reaparece depois de ser violentamente acusado por alunos e companheiros de trabalho de racismo. Este tema, aliás, é o dominante na narrativa. Encontraremos a própria protagonista envolvida num dilema de compreensão sobre o teor da denúncia, chave de acesso para o tema de aceitação dela própria como negra numa sociedade marcadamente racista. O episódio então funciona como se um lapso no qual se revela todas forças de recalque usadas ora consciente ora inconscientemente por Coleman no processo de construção de sua identidade pessoal. 

Agora, o que acontece é que o registro biográfico acaba por ser jogado para escanteio, e Nathan, de posse de todas as personagens e de uma parte das situações, não deixará de construir essa narrativa que transita entre o acontecido e o possível na vida de Coleman, revelando um claro motivo de criação literária de muitos escritores. Toda obra de ficção, lembra Alfredo Bosi, se constrói das vivências do escritor, experienciadas em vida e pela vida de outrem, dentro e fora dos universos de imaginação. A marca humana expõe justamente isso. 

Corrobora não somente o trânsito entre o vivido e o imaginado por Nathan, mas o estreito diálogo que a narrativa mantém com o imaginário literário clássico e inglês, um reforço não apenas ao caso de ser a protagonista um refinado leitor da literatura grega, mas um diálogo intertextual muitas vezes relembrado pelo próprio narrador pela citação direta de obras e situações. Nesse mesmo sentido, quem, porventura, tiver lido outras obras da literatura de língua inglesa, perceberá como estruturalmente A marca humana igualmente mantém diálogos: basta citar o narrador de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger ou esse mesmo elemento narrativo de O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald. 



Novamente, uma série diversa de temas determinantes para o debate sobre o ser estadunidense aflora nesse romance: o puritanismo exacerbado cujo ponto culminante é o episódio entre Bill Clinton e a estagiária Monica Lewisnky em 1998, as relações com os episódios ficcionais ou reais do século XVII numa clara afirmativa de que pouca coisa terá mudado desde então e o episódio central da narrativa, o envolvimento de Coleman com a funcionária da limpeza da instituição onde trabalhava, mais de quatro décadas de diferença de idade e culturalmente ainda mais distante; as vidas em crise dos desfavorecidos com o modelo social estadunidense; as denúncias sobre o mal-estar da civilização; a condenação dos indivíduos na busca pela liberdade; a derrisão dos valores socioculturais de um tempo; o levante do politicamente correto; a crise do dos modelos intelectuais; a farsa e a hipocrisia de tais modelos nos EE UU; as máscaras e mascaramentos assumidos pelos indivíduos numa sociedade que zela por determinados padrões; o machismo; o racismo; as identidades negadas; os silenciamentos; as imposturas da relações de trabalho; os funcionamentos e trânsitos do poder em suas mais diferentes formas, entre familiares, entre amigos, entre profissionais, entre Estado e indivíduo, entre instituições e indivíduos; enfim, inúmeras possibilidades que atestam ser este um romance engajado com a diversidade de temas de seu tempo e fora dele – afinal as questões aqui apontadas são de todo o sempre da comunidade humana, isto é, os registros de cunho estadunidense, fora desse contexto, se assumem enquanto metonímias sobre os modelos sociais ocidentais cuja base estrutural está regida pelos valores capitais. 

A narrativa de Roth, aliás, constrói uma revista a estes temas a partir do ideal biográfico ou a marca que se oculta na vida de Coleman. O professor de letras clássicas ao construir uma possibilidade de si e manipulá-la durante toda uma vida no intuito de fazer possível sua consciência de bem-estar no mundo (isto é, a falsa garantia de centralidade das coisas do sujeito cartesiano) encarna o mito de Caim, o do condenado a vagar mundo afora (no caso de Coleman, o vagar da consciência que nunca está em sã posição nem paz), forçado a canalizar todas suas energias para o silenciamento e o disfarce. A perseguição de Nathan é por compreender qual o limite de um segredo, aquele consciente que, embora muito perturbe alguém, precisa em nome dessa condição autoimposta se sobrepor à própria existência. 

Philip Roth desdiz a certeza de alguns de que nossa vida se constitui um livro aberto e com isso todas as outras certezas em torno do eu – todos têm consigo, consciente ou não, seus segredos e fracassos. Eles são a outra e extensiva ponta de uma complexidade que nos define, se é que alcançamos definir ou findamos tal como Nathan com certezas apenas fabricadas de nós.

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