Viagem ao fim da noite, o grande romance escrito pela fúria
Por John Banville
Céline em Nova York, anos 1930. |
Voyage au bout de la nuit, ou Viagem ao fim da noite, publicado
originalmente em 1932, é um dos grandes romances do século XX, além de ser o
melhor romance escrito por um simpatizante da ultradireita política, como
depois os críticos literários do pós-guerra classificaram o autor.
Outros romances
escritos por autores de extrema direita – como Nos
penhascos de mármore, de Ernst Jünger ou Kaputt, de Curzio Malaparte – são, no mínimo, interessantes, mas a
exuberante misantropia desta obra-prima, que não coloca em evidência afiliação
política alguma nem expressa ideias antissemitas, é única, sobretudo como obra
de arte revolucionária, e exerceu uma profunda influência em autores tão
díspares como Samuel Beckett e William S. Burroughs, Jean Genet e Günter Grass.
Poderia dizer inclusive que sem Céline não haveria existido Henry Miller, nem
Jack Kerouac, nem Charles Bukowski, nem os poetas beat.
Louis-Ferdinand
Auguste Destouches – o primeiro nome de sua avó era Céline, daí o pseudônimo –
nasceu em 1894 no subúrbio parisiense de Courbevoie. Seu pai era empregado numa
companhia de seguros e sua mãe fazia renda. Anos mais tarde, o escritor se
satisfazia em dizer que havia passado uma infância miserável junto com seus
pais, com suas constantes brigas, embora isto parecesse ser outro de seus
muitos exageros e fabulações, já que um amigo de família assegurou que o casal
levava uma vida relativamente tranquila. Ferdinand tinha pouco mais de dez anos
quando foi trabalhar como mensageiro, mas seus malignos pais devem ter tido
planos mais importantes para ele, posto que o enviaram para morar na Alemanha
por um ano e depois outro ano na Inglaterra para que aprendesse outras línguas.
Sua educação
desde cedo foi quase por completo autodidata e cedo manifestou o desejo de se
tornar médico. Mas, aos dezoito anos se alistou no exército francês e dois anos
mais tarde foi combatente na Grande Guerra. Em poucas semanas no front foi
gravemente ferido num braço enquanto tentava cumprir uma missão sob forte fogo
alemão, num ato de audácia – ou estupidez, como o mais velho e sábio Destouches
havia dito seguramente – que lhe valeu uma condecoração militar, uma fama
efêmera e, posteriormente, sua separação definitiva da unidade de cavalaria da
qual fazia parte. Durante algum tempo trabalhou em Londres, onde se casou – ato
que jamais foi validado pelo consulado local –, e logo se dirigiu para a África,
contratado por uma companhia comercial francesa radicada em Camarões. Depois do
regresso à França, a Fundação Rockefeller, anote isto, o enviou a Bretanha para
colaborar na luta contra a tuberculose que assolava a região.
Em princípios
da década de 1920 Céline estudava medicina em Rennes e estava casado, desta vez
oficialmente, com a filha do diretor do colégio médico. O casal teve uma filha,
Colette, mas em 1925 Céline abandonou sua companheira e sua filha e conseguiu
um posto na Sociedade das Nações, que lhe permitiu viajar muito pela Europa,
África e América; sua experiência no estudo das condições trabalhistas da fábrica
Ford em Detroit lhe casou forte impressão e é sobre esse contexto que se passa
uma das partes mais significativas de Viagem
ao fim da noite.
Outra vez de
volta à França, abriu um consultório privado de obstetrícia num subúrbio de
Paris até que fechou suas portas para atender aos pobres num abrigo público.
Aqui estão os fatos que depois seriam estilizados, aumentados e adornados com
fantasias em seu primeiro e melhor romance. Céline foi um escritor autobiográfico,
mas de uma raça especial. Dizer que se comportou de forma honorável a respeito
dos acontecimentos passados seria um eufemismo. Viagem... é uma versão idealizada de sua vida. “As coisas como são /
mudam-se sob uma guitarra azul”, escreveu Wallace Stevens, e a guitarra de Céline
estava afinada num tom que não se fazia escutar desde os dias de Rabelais,
François Villon e Jonathan Swift.
Descrevia a
si mesmo como um lírico cômico, e sim há muito de comédia e de alta lírica em Viagem..., a brutalidade de sua visão o coloca
a par dos trágicos gregos. Em geral, este romance é considerado uma obra sobre
a Primeira Guerra Mundial, mas o certo é que, a sequência inicial ambientada na guerra
representa só uma pequena parte da narrativa. Para Céline, a guerra é uma espécie
de número circense homicida. “Serei eu portanto o único covarde nesta terra? Pensava.
E com que pavor!... Perdido entre dois milhões de doidos heroicos e enfurecidos
e armados até a raiz dos cabelos? [...] Somos virgens de Horror como somos de
volúpia”.
Preso neste círculo homicida, Bardamu, o protagonista, logo perde a
inocência e aprende a lição fundamental: “É que eu ainda não conhecia os
homens. Nunca mais acreditarei no que dizem, no que pensam. É dos homens e só
deles que se deve ter medo, sempre”. E o que é homem? “Vocês viram no campo, lá
na nossa terra, se pregar essa peça no mendigo? A gente enche um velho
porta-níquéis com as tripas podres de uma galinha. Pois bem, um homem, ouçam o
que estou dizendo, é igualzinho, só que mais gordo e móvel, e voraz, e aí então
dentro, um sonho”. O inesperado fulgor que guarda esta semelhança desagradável é
típico do estilo de Céline.
Viagem... pode parecer em parte uma
trama confusa, arquitetada por um misantropo em apuros, mas este livro está construído
com enorme cuidado e, certamente, com beleza. Nos intervalos da furibunda luta
de Bardamu contra o mundo, a fumaça dos canhões desaparece e podemos ver outra
paisagem, onde são possíveis a paz e a beleza: “A alameda principal subia entre
duas fileiras cor de rosa até as fontes. Ao lado do coreto, a senhor das
gasosas parecia lentamente reunir todas as sombras da noite ao redor de sua
saia. Mais adiante, nos caminhos laterais, pairavam os grande cubos e
retângulos cobertos de lonas escuras, as barracas de uma festa que a guerra flagrara
ali, e de repente cumulara de silêncio”.
As frenéticas
aventuras de Bardamu o arrastam da frente de combate a um asilo de ex-combatentes
com o psicológico destroçado, a um coração das trevas conradiano na África Ocidental
colonizada – “Os nativos só funcionam na base da paulada, conservam essa
dignidade, ao passo que os brancos, aperfeiçoados pela instrução pública, andam
sozinhos” –, onde é vendido como um condenado às galeras que o levaria a Nova
York, “uma cidade”, diz maravilhado, “admirável”. Então vai para Detroit, onde
é confrontado com o horror da linha de montagem industrial – “eram apenas ecos
e cheiros de máquinas que nem eu, carnes vibradas ao infinito, meus companheiros”
–, até que no fim foge do pesadelo do Novo Mundo e regressa à França, completa
seus estudos e se instala como médico no fictício subúrbio de Rancy, dedicando-se
a atender pobres, mutilados, desamparados e todos aqueles sem esperança.
Antes e
durante a Segunda Guerra Mundial, Céline decaiu escrevendo uma série de rancorosos
panfletos antissemitas. Depois da derrota dos nazistas em 1945, viajou primeiro
à Alemanha e depois à Dinamarca. Foi tachado de colaboracionista e sentenciado
à sua revelia à prisão; só mais tarde foi outorgada sua anistia e, em
1951, regressou definitivamente ao seu país. Com espírito fraco e uma má
reputação, mas ainda desafiador, morreu em 1961 em consequência de um aneurisma
cerebral: um feio e triste ponto final para a vida de um grande literato.
Seus ranços
políticos não cairão no esquecimento, como Viagem
ao fim da noite, seu maior legado e sua obra-prima. Porque se trata de um
grande livro que inaugurou um capítulo inédito na ficção literária. A
integridade pessoal e artística de Céline são ímpares. Se em sua vida cometeu
erros, bastante penosos certamente, como romancista se manteve fiel a si mesmo
e à sua arte.
* Este texto é uma tradução do prólogo escrito por John Banville para edição espanhola de Viagem ao fim da noite.
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