Quando a esquerda lacradora e a direita conservadora me mostram como a internet pode ser perigosa

Por Rafael Kafka



Umberto Eco pronunciou pouco tempo antes de morrer uma de suas mais célebres frases: as redes sociais deram voz a uma multidão de imbecis. O que o autor de Obra aberta esqueceu de mencionar é que tal geração além de ter ganhado mais voz teve também evidenciado o seu pouco gosto em ouvir o lado contrário. Mas talvez ele tenha deixado implícito outra fala famosa, associada ao escritor estadunidense Charles Bukowski, quem teria dito, certa vez, ser o mal do mundo o fato de os ignorantes estarem cheios de certeza enquanto os gênios viviam cheios de dúvida. Ou algo do tipo.

Nas redes sociais o que mais vemos são nichos fechados em si de pessoas se provocando mutuamente sem conseguirem criar um campo de debate saudável. Dia desses, eu estava em uma de minhas várias confusões virtuais e comecei a me questionar sobre o porquê de gastar tanto tempo com essa bizarra ocupação. Sempre tive esse hábito de discutir demais, de sempre querer ter a razão, mas mais recentemente comecei a ver nisso uma forma de pedagogia, de defesa de ideias as quais por meio da internet poderiam se espalhar e tocar mais corações. Não sei se soa um atestado de auto-santidade ao falar isso, mas era uma intenção boa a presente em mim.

Ao mesmo tempo, deparava-me com comentários cheios de ódio em sessões de jornais e portais de notícias nas redes e comecei a me sentir desesperado diante de tanto livre gasto em despejar o mal. Naquele momento, pensei que fosse tudo culpa de uma direita conservadora retrógrada e defendia cegamente o modus operandi da esquerda dentro das redes sociais. Porém, em dado momento, comecei a me irritar com um certo vocabulário focado no “lacre”, no “tombamento”, na autobiografia baseada em mapas astrais e pura vivência, sem debate racional algum. No outro, vi-me acusado de ser um “esquerdomacho opressor estuprador em potencial” e percebi que não havia muita diferença em quem defende um político o qual sofre de viuvez da ditadura militar e quem supostamente defende uma militância política baseada em dar respostas contundentes e em abrir mão da pedagogia ao falar com as pessoas que necessitam ouvir outras verdades além das donas de seu senso comum.

Porque se de um lado eu via pessoas defendendo cegamente valores altamente conservadores, do outro eu via o progressismo decair em um novo tipo de conservadorismo. Tal conservadorismo é uma espécie de ditadura do politicamente correto, termo abominado por mim por ser extremamente hipócrita. Aqui eu o emprego para falar da possibilidade que tive de entender melhor a mente de quem usa esses termos, uma reação normal aos novos discursos de resistência que surgiram nos últimos tempos. Todavia, tais discursos de resistência começaram a assumir uma postura meramente impositiva, sem se preocupar em expor problemas sociais sérios em sua dimensão histórica, gerando formas de debate que poderiam ser produtivas.

Se de um lado eu vejo as pessoas defendendo ataques aos direitos humanos por conta do ódio gerado pelo medo da insegurança pública cotidiana, do outro eu via pessoas questionando o uso de determinado adereço estético supostamente ligado a uma questão de resistência identitária de um povo e afirmando inclusive que termos como “esclarecer” são racistas, sendo preferível o uso de termos como “escurecer” para tornar uma ideia mais acessível à mente dos leigos. De um lado, eu via uma direita baseada em velhos ídolos da sociedade de classes – Deus, família e mulher submissa – do outro a esquerda lacradora, como a carinhosamente chamo, preocupada em criar seus novos ídolos – como vocabulário provocativo, a importância dos mapas astrais dentro da militância política e outras pessoas que falam de empoderamento negro enquanto praticam trabalho em condições análogas à escravidão em algum recanto perdido do mundo.

Comecei a ver as redes sociais como um reflexo bizarro de um mundo preocupado demais em falar e não em ouvir e ler o ponto de vista alheio. Se grandes obras da literatura mundial – como o Grande Sertão lido por mim atualmente – se tornaram textos profundamente lidos é por darem conta da dimensão paradoxal do para-si humano: Riobaldo é um jagunço com extrema humanidade, ainda assim capaz de matar sem piedade no meio da guerra. Reduzir o outro lado a um conjunto de memes e frases prontas como “a esquerda só defende vagabundos” ou “os brancos da direita fascista só passam vergonha” é uma atitude aquém da profundidade ontológica de nossos seres e que simplesmente impede o debate, seja em qualquer espectro político possível.

Criamos bandeiras a serem defendidas de forma impulsiva e com discursos feitos no calor do momento. Não há a leitura cautelosa do que o outro foi dito e a crítica à tessitura do que ele emitiu em consonância com o contexto. Há uma crítica ao ser do outro, uma provocação barata. Nesse sentido, é mais fácil ver-se a esquerda como arrogante, com seus conceitos lidos em algum lugar, mesmo que nas letras de uma diva pop, do que a direita, a qual usa verdades tidas como universais e textos bases fincados na cultura popular. Mas quando falo de direita aqui, falo de seus setores mais conservadores, os quais só falam de liberalismo até a hora que se trata de mercado, haja vista a falta de respeito à liberdade individual de diversos seres humanos cometida por diversos grupos desse espectro político.

Talvez alguém a essa altura pense em comentar que não devo confundir a violência do opressor com a reação do oprimido e concordo com isso. Porém em um campo discursivo a violência verbal não fere e nem causa tantos estragos quando a violência já cometida contra nossos ancestrais africanos e da floresta. Nós, como seres habitantes de um mundo urbano, letrado e digital, temos de usar nossos seres como ponto de partida para a reflexão, como bem apontou Boaventura da Silva em Discurso sobre as ciências. Se ficarmos apenas a falar de nós mesmos, como muitos da chamada esquerda lacradora fazem, sem defender argumentos com bases em leituras outras as quais corroborem nossos pontos de vista, então seremos vistos por aquelas pessoas que precisam nos ouvir sobre democratização de direitos humanos como a leitura, os serviços e as políticas públicas de qualidade como arrogantes os quais só falam de si mesmos e em um vocabulário cheio de palavras difíceis e nojentas. Mais fácil para quem sempre vê o Estado como algo corrupto seguir batalhando e ver na diminuição dele uma solução para a melhoria de vida: uma lógica cada vez mais razoável aos meus olhos, mesmo que eu não a defenda.

Do outro lado, esse ser humano verá uma esquerda que defende mais Estado, algo como já dito corrupto por natureza, ao mesmo tempo em que defende uma série de argumentos os quais ferem suas crenças e cultura popular. O pobre nunca matará um gay por ser gay, mas ele possui comportamentos homofóbicos em suas falas. Para desconstruir isso não adianta chegarmos e impormos a proibição de certos enunciados, mas entendermos porque piadas são feitas sempre com motivos machistas e anti LGBT, por exemplo. Temos que colocar essa pessoa no campo discursivo adequado, do contrário, por tangente, ela passa a odiar Estado e toda pauta que hoje seja vista como esquerdista e progressista como culpada pelo caos social vivido por nós.

Mas a esquerda preocupada com o lacre, fechada em seus quartos confortáveis, em seus grupos de Whatsapp e Facebook sem lidar com massas de trabalhadores presos em valores conservadores, felizes porque as pessoas mais jovens, em especial as mulheres, também aderem, mesmo que sem muita consciência do que estão fazendo, a uma militância do tombamento, de respostas curtas e grossas que visem a silenciar o outro, o qual muitas vezes reproduz opressões por pura socialização, não entende isso. A esquerda lacradora se preocupa com a importante pauta das identidades, todavia não vai além disso. Ela parece não querer questionar a fundo a dimensão econômica das opressões e mesmo a pedagógica, preferindo acusar uma pessoa – como eu – que não sabe da existência de filosofia em países africanos como sempre concebemos ligada à ideia da cultura grega antiga de racista do que simplesmente promover uma crítica ao currículo atual, focado em um pensamento eurocêntrico e humanista, agora correndo mais uma vez o risco de se tornar pior com a já aprovada reforma tecnicista do ensino médio.

Em um discurso de apresentação na escola pública onde darei aula, falei de minhas pautas progressistas a pais trabalhadores e do incentivo à leitura como ato político para se gerar um debate decente. Fui aplaudido por muita gente que deve ter me ouvido com desconfiança ao falar de não tolerar desrespeito com ateus, umbandistas, candomblecistas, espíritas, mulheres, gays e transgêneros. Talvez porque eu tenha conseguido me colocar num campo de debate em que o dito por mim não foi imposto e sim uma defesa do óbvio, da liberdade humana, do direito aos mais pobres de todos os tipos de tomarem conta de seu espaço público.

Creio que o maior ensinamento tirado de todas as tretas vistas na internet e da guerra de egos por ela promovida é que devo investir meu tempo mais em leitura, em eventos culturais, em exercícios, sem entrar no desespero de querer salvar o mundo com comentários feitos de forma apressada e com o intuito de “mitar” ou “tombar”. Se não entender isso, cairei em um mar de ansiedade em responder e não ficar por baixo e em um mar de loucura, pois não conseguirei causar o que causei nos pais de meus alunos: o pensamento sobre o texto por mim emitido. Pensadores como Karnal me ensinaram isso nos últimos tempos: o melhor é fazer o convite à reflexão e ver quem o aceita e torcer para que após o convite seja aceito ele seja estendido aos outros próximos. Assim, mudamos algo para melhor e não ficamos a perder tempo em redes sociais reproduzindo as mesmas violências que acusamos o outro de cometer.
***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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