Presenças de H. P. Lovecraft
Por Anna Llurba
Em sua
biografia H.P. Lovecraft: contre le monde, contre la vie, uma raridade anterior às suas primeiras boutades literárias, Michel Houellebecq analisa a obra e a vida do célebre
ermitão de Providence. Explorando sua paixão pela construção de labirintos, o enfant terrible, por sua vez, persegue
essa obsessão com os medos secretos, as geometrias não-euclidianas e a fobia à
mestiçagem cultural.
Mas além da
arquitetura, como uma disciplina aplicada ao hábitat humano, e essa raça que
tanto Lovecraft parecia depreciar, se faça ao menos mérito a uma arqueologia,
uma descrição materialista do passado que prevê o futuro, sua ficção. Uma obra,
diga-se, considerada um gênero em si mesma: o terror cósmico.
Um subgênero
entre o terror e a ciência de ficção que através de um implacável materialismo
gnóstico elude os recursos do terror psicológico para abandonar seus protagonistas
como marionetes de um destino manipulado por malignas deidades intergalácticas,
minimizando a condição humana a uma consequência de azar e capricho cósmico.
Uma primeira
leitura materializa não apenas nossos temores mais atávicos, também nos mostra
um vertiginoso abismo anti-humanista, como quando Carl Sagan, outro célebre “materialista”,
atribui ao Homo Sapiens o último minuto do último dia de seu célebre calendário
cósmico com um cordial sorriso nos lábios.
Apesar desse
visceral racismo que o fazia retorcer-se ante a mestiçagem cultural que a inevitável
modernização dos Estados Unidos em começos do século XX acelerava, do nulo
espaço dedicado às personagens femininas, assim como seu hipertrófico abuso de
adjetivos e advérbios que lhe imprimem um estilo algo pretensioso e arcaizante,
H. P. Lovecraft é um dos poucos autores do século passado a quem pode se
atribuir a capacidade demiúrgica da criação de uma mitologia própria.
Um canteiro
de ficção inesgotável, por sua própria imprecisão às vezes, e também pela ampliada
rede de acólitos com a qual manteve uma constante retroalimentação mútua: o
famoso Círculo de Lovecraft. Formado por autores como Robert Bloch, August
Derleth, Robert E. Howard e Clarck Ashton Smith, entre outros, situados em
torno da mítica revista pulp Weird Tales. Estratos de ficção
sedimentada pelo próprio Lovecraft ao incluir, num excurso a Borges, seus
próprios precursores, os escritores que o inspiraram: Lord Dunsany, Ambrose
Bierce, Arthur Machen, Robert W. Chambers e Algernon Blackwood.
Possivelmente,
graças a esta “acumulação primitiva”, seguindo com o jargão materialista, seja
o motivo principal de que o canteiro lovecraftiano ainda siga crescendo, pela acumulação
infinita de reescritas tanto na literatura, nas HQs, nos videogames, na
filosofia, no cinema, e como um dos inspiradores da chamada criptoarqueologia
que deu forma aos círculos do mistério e da investigação paranormal dos anos
1970 e 1980 e a criação desse misterioso culto às ancestrais deidades
extraterrestres, como afirma Jason Colavito em H. P. Lovecraft: the Cult of Alien Gods and the Extraterrestrial Pop Culture.
Uma mina
onde mergulharam com suas pás e picaretas escritores de raça anfíbia entre a HQ
e a ficção, como o incombustível Alan Moore em sua saga Providence ou o prolífico Neil Gaiman em sua hilariante narrativa Cthulhu. Também Erik Kriek, quem escreveu
algumas de suas histórias a partir do contato explícito e declarado com Lovecraft
e com um maneirismo pulp faz ecoar
novamente uma ameaça cósmica e silenciosa em seus leitores.
Além dos
diversos meios e gêneros da ficção contemporânea, a filosofia atual também segue
escavando nessa mina, aparentemente inesgotável. Assim é como os teóricos próximos
ao realismo especulativo como Eugene Thacker promove o terrorismo ontológico em
sua série “Horror of Philosophy”. Ensaios como In the Dust of This Planet, o primeiro volume da sequência, esclarecem
reminiscências ao anti-humanismo niilista de Lovecraft. Também a famosa bióloga
feminista Donna Haraway recuperou a deidade arcana com cabeça cefalópode e asas
de dragão, Cthulhu, para especular sobre um futuro possível depois da catástrofe
ecológica irreversível em Staying with
the Trouble: Making Kin in the Cthulucene.
Assim é como sua obra e, sobretudo, seu legado
parece seguir invocando-nos desde as camadas subterrâneas de nossos atuais
temores inconscientes e coletivos, como esses deuses alienígenas primitivos
enterrados há muito sob nossos pés, para alertamos sobre este presente
progresso acelerado, tão detestado em sua própria época por esse empertigado
senhor provinciano que foi H. P. Lovecraft.
* Este texto é uma tradução de "Lovecraft, el arqueólogo y maestro del terror", publicado no El País.
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