O leitor Ricardo Piglia: 12 escritores estadunidenses sob a lupa escritor argentino
Por Patricio Zunini
A última
grande intervenção de Ricardo Piglia sobre o campo cultural e, certamente,
sobre sua própria obra, foi a publicação de seus diários. Escritos ao longo de
seis décadas, são textos para serem lidos como um romance de formação; o título
do primeiro volume, aliás, indiretamente reforça essa compreensão – é Anos de formação. Entre debates políticos,
ideias de contos, visitas à Bombonera, amores fracassados e experiências
marginais, Piglia aparece, constante e tenaz, como um homem empenhado em ser um
escritor.
Mas, como se
faz para que alguém se torne escritor? Talvez a resposta possa ser buscado pelo
seu avesso. Piglia compreendeu ainda muito jovem, graças a uma conversa com
Jorge Luis Borges, que escrever muda o modo de ler. Um escritor, disse, “quer
ver como estão feitos os textos, ver se pode fazer algo parecido ou, no melhor
dos casos, algo diferente”. O escritor, então, é, primeiro, um grande leitor,
apaixonado pelos livros e pela leitura.
Pigilia
ainda era um autor inédito quando, em 1967, Jorge Alvarez lhe propôs comentar a
coleção de escritores estadunidenses que coordenada por Pirí Lugones. O
trabalho consistia em apresentar os escritores incluídos na lista de publicações.
Várias entradas do seu diário falam sobre isto: “Trabalho em divertidos e
eruditos esboços de escritores estadunidenses do século XX, quase um panorama
da narrativa atual”; “Descubro em mim um talento natural, digamos assim, para
escrever perfis de escritores que admiro”; “Escrevo sobre Sherwood Anderson e
logo escrevo sobre Faulkner, que é o melhor de todos”.
Desta
maneira, a aparição de Piglia na literatura foi – não poderia ser de outra
maneira – como leitor. Em meio ao auge do Boom
Latino-americano (A morte de Artemio Cruz
foi publicado em 1962, O jogo da
amarelinha em 1963, Cem anos de
solidão em 1967), Piglia falava sobre Hemingway, Fitzgerald, Capote... No
total escreveu doze breves ensaios, “doze microbiografias”, que contribuíram para
demarcar um novo território de leituras.
Cinquenta
anos depois, esses textos foram reunidos sob o título Escritores norte-americanos e foi o último que o escritor publicou
em vida, como se fechasse um círculo, afinal este foi o primeiro livro que escreveu.
E como se buscasse ainda maior realismo ao gesto, o livro saiu por uma pequena
editora independente, Tenemos las máquinas.
A introdução
– brevíssima. Lembramos que sofria de esclerose lateral amiotrófica (ELA) e escrevia
ditando o texto que, nesse caso, se faz de algumas passagens de entradas de
seus diários. Recorda uma passagem de junho de 2016: “Meu entusiasmo pela
narrativa estadunidense, compreendo agora, foi uma reação frente à influência
de Borges e Cortázar, que faziam estragos entre os escritores de minha geração.
Como não
tinha um modelo de apresentação, Piglia inventou a forma enquanto escrevia. Cada
autor é visto sob uma luz específica, única, com um estilo que não se repete. O
resultado é um afresco sobrea cultura literária dos Estados Unidos, onde, sob o
american dream, urge um pesadelo marcado
pela violência e discriminação.
*
Ring Lardner. “Alguns de seus contos
são pequenas obras-primas que sintetizam o desenvolvimento posterior do gênero,
desde Katherine Anne Porter a J. D. Salinger”. É o autor de You know me, Al e Haircut.
Sherwood Anderson. “Em sua obra se encontram
algumas das pautas que definiram a futura geração de narradores: uma linguagem coloquial
fundada nas palavras estadunidenses nativas, uma escrita simples e objetiva, de
tom autobiográfico, uma técnica narrativa cuidadosa do ponto de vista e da
perspectiva de quem narra a história”. Alguns livros de Anderson publicados por
aqui são Winesburg, Ohio, A secreta mentira e A verdade de cada um.
Thomas Wolfe. “Tentava o impossível:
fazer entrar o mundo inteiro nessas grandes savanas de papel, converter a massa
amorfa de seus temas numa valorização qualitativa de toda a vida estadunidense”. Quase esquecido no Brasil, encontra-se
disponível apenas em sebos O menino
perdido.
William Faulkner. “Escreve como se
pregasse, um ensandecido pastor puritano para quem o âmbito da literatura é o
de um tribunal em que se apagaram as distâncias entre os criminosos e os
juízes; sua lenda é atroz e brutal: todos os homens são culpados, não há
diferença entre pureza e corrupção”. Há muito de Faulkner no Brasil – grande
parte dos títulos recentes publicados pela extinta Cosac Naify passam a ser
publicados pela companhia das Letras: O
som e a fúria, Sartoris, Absalão, Absalão!, Luz em agosto, Palmeiras
selvagens; e há vários títulos pela Benvirá: Os invictos, A cidade, O intruso, O povoado, A mansão, Lance mortal.
Erskine Caldwell. “Passear com ele de
romance em romance, de conto em conto é como caminhar pelo campo, de rancho em
rancho. Encontra-se gente nova, mas sempre a mesma: o homem e seu trabalho em
luta com a natureza, a passada imobilidade, a intensidade inflexível do clima,
a imensidão dos campos de plantações”. Entre outros títulos, destacamos Chão trágico,
Os donos da terra, Frenesi de verão, Uma casa no planalto e Três
destinos.
F. Scott Fitzgerald. A mensagem que transmite o autor de O grande Gatsby é que, segundo Piglia, “o
fracasso está no coração da esperança, no mais atinado do amor se escondem a
perda e o esquecimento: toda via é um processo de demolição”.
Ernest Hemingway. “Os homens de
Hemingway são o que fazem: se conseguem dissimular o medo, esse mesmo ato os
definirá para sempre. Ser um valente ou não: no fundo é o mesmo quando se trata
de sobreviver. Todo seu estilo, despojado e sutil, está construído para
reproduzir essa ambiguidade”. No Brasil, também é vasta a obra do escritor. Por quem os sinos dobram, Paris é uma festa, O sol também se levanta...
Nelson Algren. “Perseguido pelo senador
McCarthy, privado de seus direitos civis, preso, Algren vive nos Estados
Unidos, não vive em sua pátria, mas num
território ocupado por norte-americanos”. Alguns títulos do escritor
apresentados por aqui são O homem do
braço de ouro e Um passeio pelo lado
selvagem.
James Purdy. “James Purdy é (com Samuel
Beckett, Günter Grass e Julio Cortázar) um dos quatro ou cinco romancistas mais
importantes da literatura contemporânea”. Chama atenção que com uma observação
dessas – certamente não original de Piglia – Purdy continue sendo um ilustre
desconhecido. O escritor morreu em 2009 e são raros os livros dele no Brasil; Malcolm e Os crimes de Cabot Wright são os únicos possíveis de se garimpar
nos sebos online.
Truman Capote. “A sangue frio é um reencontro: fiel a si mesmo, Capote revoluciona
o romance moderno, inaugura a não-ficção, mas, sobretudo, resgata o melhor do
universo de suas primeiras narrativas”. Além do romance citado por Piglia, o leitor pode acrescentar Música para camaleões e Bonequinha de luxo.
John Updike. “Seus livros (Corre coelho, Penas de pombo, O centauro)
dão continuidade à velha lenda puritana inaugurada por Nathaniel Hawthorne e
Sherwood Anderson: o homem correto e puro desorientado e sem âncora, busca
infrutiferamente o caminho do bem e da salvação numa sociedade corrompida e
brutal”.
James Baldwin. É o único escritor afro-americano
da série; traz o nome de pastor branco que adotou. Seus temas são a discriminação
e a violência que sobre em sua própria carne. Baldwin, diz Piglia “racionalmente,
é um homem, um escritor. Mas o negro verdadeiro segue aí, dentro de sua pele:
para os brancos Baldwin é um escritor negro. Ou melhor, um negro que escreve”. A bibliografia de Baldwin no Brasil é vasta,
embora muitos títulos estejam fora dos eixos centrais de circulação dos livros.
Giovanni, Numa terra estranha, Um homem
à minha espera, Marcas da vida, O preço da glória, E pelas praças não terá nome, são algumas de suas obras.
Série policial noir
O livro inclui
ainda o ensaio “Contos policiais norte-americanos”, escrito por Piglia em 1968,
chave para entender os emergentes da sociedade no gênero. Sua observação, acertada,
é que enquanto no policial clássico inglês, o detetive encarna a razão, o
delito é tratado como um problema matemático e o crime é um mero desajuste
individual, no noirde Chandler,
Hammett ou James M. Cain, é a sociedade toda que está demente.
“É
impossível”, sublinha Piglia, “analisar a construção do thriller sem ter em conta a situação social dos Estados Unidos até
o fim da década de vinte. A crise na Bolsa de Wall Street, as greves, a
desapropriação, a depressão, mas também a lei seca, o gangsterismo político, a
guerra dos traficantes de álcool, a corrupção. Ao tentar refletir (e denunciar)
essa realidade, os romancistas estadunidenses inventaram um novo gênero”.
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