Moonlight, de Barry Jenkins
Por Pedro Fernandes
É bem possível que Moonlight fique
lembrado como o filme do imbróglio com a entrega do prêmio final do Oscar de
2017. Todos apostavam que La La Land,
o anunciado como Melhor Filme que concorria ao maior número de indicações,
fosse sim o ganhador. Desde quando o cinema se apegou em falar de si que
interessados em arrancar premiações têm apostado em produções redondas cuja
grande estratégia é reverter o alto investimento. Apesar de quisto pela crítica,
todos se sentiam melhor inclinados pela remontant
de musical. Prefiro acreditar que era por pura catarse, embora saiba que os
imperativos da constante ideológica nunca me permitam crer que era só o encanto
o que movia as reiterações da crítica.
As razões para tanto não estão em La
La Land. Estão em Moonlight. E se
o contexto político nos Estados Unidos fosse outro ou se o discurso de Meryl
Streep no Globo Ouro não tivesse ganhado a adesão de Hollywood dificilmente teríamos
a surpresa que tivemos em ver este filme na galeria dos Melhores do Oscar. A
produção de Barry Jenkins destoa totalmente do tipo feito para angariar prêmios.
Mas não é isso o que lhe destaca e sim o fato de a quantidade de assuntos de
ordem político-social que lhe dá forma está em perfeita consonância com o seu contexto
de apresentação.
Moonlight reúne as diversas
linhas de segregação, preconceitos, e a possibilidade de subversão de tudo pelo
amor não convencional; sua narrativa bebe no modelo do romance de formação, ao acompanhar da
infância à idade adulta o desenvolvimento de um homem negro, da periferia e gay.
Num tempo cinza, do levante de muros, do fascismo e das formas mais danosas de
opressão, ondas que se alastram como um rastilho de pólvora num quase-retorno
ao esgoto da história, atribuir Melhor Filme a La La Land seria fazer vista grossa a essa realidade, tal como foi comum de alguns cineastas autores de musicais e mesmo da Academia noutros contextos graves da história. Sobretudo, se
pensarmos na variedade de discursos em torno da fala da presidenta da Academia
de que o cinema é uma experimentação sobre as realidades que apesar de comuns
para uns é negligenciada para outros.
Mas, não é apenas o seu conteúdo político o que chama atenção do expectador
de Moonlight. É a narrativa cuidadosamente
bem elaborada – sabe-se o quanto é complicado aproximar-se da realidade em sua inteireza
e recriá-la artisticamente sem parecer inverossímil, sobretudo quando se trata
de uma condição que destoa dos lugares convencionais; não é uma narrativa
submetida a um lugar propositalmente político, isto é, panfletária – o político
atravessa sua trama porque o conteúdo está no rol das urgências de um tempo; e o
diretor consegue equilibrar as relações entre o interior do indivíduo e o exterior de maneira
a fazer com que se compreenda ao final qual o seu propósito: tornar universal
uma história comum sobre a descoberta de nossa identidade.
A importante tarefa que o filme executa, entretanto, é a de romper com determinadas
visões estabelecidas pelo status quo –
aquela que atribui ao negro da periferia a simples lógica do marginal, do nascido
para fazer o mal, ou aquela que grosseiramente compreende o marginal como o mal
a ser banido da sociedade. Ao tratar do caráter, Moonlight o compreende como uma formação marcada por escolhas particulares
e não a mera reprodução dos gestos como ainda é crível entre grande parte do
senso comum; despreza discriminações
no intuito de compreender que todos estamos unidos num só laço: somos humanos. E que isso de ser bom ou mau independe do lugar e condição sociais.
Agora, algo que todo expectador poderá se perguntar é onde está a
relação entre o título Moonlight – ou
“Luz da lua”, em tradução direta (no Brasil, o filme preservou o título
original e acrescentou uma possibilidade de interpretação do termo, “Sob a
luz do luar”) – com um enredo que se resume basicamente pela variabilidade do
indivíduo da infância à idade adulta e nela, acrescente, um processo de autodescoberta?
A própria narrativa oferece indiretamente uma resposta: Juan, o traficante de quem a personagem principal se torna amigo desde a infância, lhe diz, a certa altura
que quando criança ouvia dos mais velhos que o negro sob a luz da lua tornava-se
azul.
E este jogo de cores é explorado belissimamente em todo o filme – que ora
justifica a atmosfera interior dos indivíduos, ora realça determinadas
situações de um tempo noutro tempo (Moonlight
se divide em três capítulos correspondendo cada um deles a três momentos
diferentes da vida da personagem principal que adota três designativos diferentes:
Little, Chiron e Black). Além do efeito de estruturação as cores revelam simbologias:
azul sobre negro revela uma subversão do status
quo de figura inferior porque despido da má interpretação do escuro, o azul
apresenta um tom angelical e profundamente ligado ao tema do divino. Ao longo
do filme, a cor se refere sempre a um fio de esperança numa vida cujas
fronteiras estão toldadas pela condenação. Em Moonlight o azul é ora a paz, a tranquilidade, a esperança, como
destacamos, ora é também um tom da mesmidade, do que está condenado a repetir-se.
Como investigação do eu, essa zona meio sombria, tal como a luz da lua
e misteriosa, o título se refere a uma possibilidade de revelar a temática da
narrativa. Se sua recepção foi tratada mais pela força política sugerida pelos
temas que atravessam a trama, é preciso sublinhar que antes disso seu interesse é o de oferecer uma visão sobre a autodescoberta pelo ponto de vista de um
indivíduo desde pequeno taxado pelos que lhe cercam de diferente e as
transformações porque passam os olhares acerca da realidade – entre o medo pela
incapacidade de compreender-se e a coragem pela necessidade de romper com as
personas forjadas para desdizer uma afirmativa do eu. Moonlight é uma narrativa
sobre identidade e o processo de compreensão de suas singularidades em meio às
singularidades ou normalidades
alheias.
Esse processo de revelação da identidade não é solitário. Nenhum o é. Descobrir-se
é descobrir o outro. Conhecer e reconhecer-se no e pelo outro. Nesse ínterim, o amor
que se constrói entre Little / Chiron / Black e Kevin está muito além da descoberta
do corpo, da sexualidade e o mesmo do sentimento que alimentam um pelo outro
até o limite de explodir em declaração (a de que na vida errante de Little / Chiron
/ Black não existiu outro homem a quem ele tenha amado tanto quanto Kevin). A
relação entre os dois é de alteridade.
Isto é, Moonlight não apenas
aproxima-se dos caros temas político-sociais; completa-se em ser um filme capaz
de explorar por ângulos diversos outras questões de natureza filosófica tão
atuais quanto as pautas reivindicativas. E como se isso ainda não fosse suficiente
reanima a mais certa de todas as explicações sobre a vida: para existir é preciso
agir e no campo da ação o amor é a força motriz capaz de reverter os quadros
mais gris e fora da lógica expectativa. Cada um, com suas individualidades tem
o direito de ser livre e feliz, mas para isso é sempre necessário um longo acerto
de contas, muitas vezes conosco para então perceber-se integrado na luta por
fazer valer o mais caros dos direitos: existir e ser reconhecido que existe.
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