Modernidade no realismo mágico de Gabriel García Márquez
Por César Cuadra
Muito além
desse lugar-comum que é recorrer ao tempo
transcorrido, não podemos deixar de notar como nossa percepção sobre as transformações
está marcada por uma nebulosa de circunstâncias que na prática é impossível ou
muito difícil de ultrapassar. Daí o paradoxo que é comprovar que muitas vezes
as mudanças mais radicais transcorrem de modo tão imperceptível que sequer chegamos
a reparar nelas.
E, por sua
vez, aquilo que se apresenta para nós como uma verdadeira revolução, muitas
vezes apenas deixa um rastro nas secretas leis da história. Talvez por isso
nos seja tão reveladora a aproximação feita por Mario Vargas Llosa sobre a situação
do romance latino-americano da segunda metade do século XX. Para o romancista
peruano, a literatura – e em particular o romance – vive por esses anos um
momento de extraordinária agitação e impulso criativo, de libertação e grande
vitalidade, e a intensidade chega mesmo a afetar a natureza da linguagem
romanesca. Com sua habitual eficácia Vargas Llosa estampa essa percepção na
arquiconhecida frase de que o romance que se escrevia na América Latina "deixou
de ser latino-americano e libertando-se dessa servidão já não serve à
realidade; agora se serve da realidade".
Nascia,
pois, uma nova fronteira para a narrativa e se deixava para o passado toda dependência
de tipo realista ou naturalista. Não é difícil advertir que aqui está o ponto
de partida da aventura da criativa de Gabriel García Márquez, pois nela, é possivelmente
onde melhor se expressa a ânsia por libertação do jugo da realidade, onde melhor se encarnam os gritos de recusa a uma
modernidade evasiva do mundo latino-americano. Em plena crise da idade industrial,
a narrativa do autor de Cem anos de
solidão mostra talvez melhor que nenhuma outra sua resistência a ela por
meio de uma estética premeditadamente evasiva, ideologia que, como se sabe,
marcará grande parte da produção romanesca da segunda metade do século XX.
O rebaixamento
das estéticas realistas vem acompanhado por uma espécie de renascimento na
narrativa latino-americana: era o triunfo do império da autonomia do discurso e
da obra em relação aos relatos referenciais e miméticos anteriores. É em oposição a esses realismos reais ou referenciais que emerge o chamado realismo mágico, esse que "já não serve
à realidade" mas "se serve da realidade". Não foram poucos, como se sabe, os que
se abraçaram a esta bandeira.
Vale a pena não perder de vista que a emergência
do real maravilhoso na literatura
latino-americana (batizado assim por Alejo Carpentier) ganhou vida
fundamentalmente nos países com escasso desenvolvimento industrial, isto é, nos
países cuja organização econômica e social era praticamente agrária e rural. Deve
distinguir-se, portanto, dos surrealistas, que também exaltavam o maravilhoso já que estes o fazem a
partir de um contexto econômico e social diferente, em que sua plataforma de
luta se dirigia até ao mundo mecanizado próprio das relações urbanas da sociedade
industrial. Devemos lembrar, inclusive, com faz Jean Franco, que a própria
expressão real maravilhoso já era usada
na Europa desde há várias décadas, pelo futurista Massimo Bontepelli ("La
aventura novecentista", Florença, 1938). Mas foi necessário
esperar algumas tantas décadas para aproximar-se com certa perspectiva desse
movimento discursivo, ou melhor, dessa refiguração estética da narrativa latino-americana.
Neste sentido, só agora é possível reconhecer, por exemplo, que o realismo mágico foi, juntamente com
outros modelos, o motor que possibilitou a reivindicação da imaginação como
forma de conhecimento ou aproximação às coisas.
E estabelecer que isso possibilitou uma forte debilitação das formas anteriores
de conhecimento das coisas. Ou seja,
o realismo mágico, em sincronia com
seu tempo, soube aprofundar a problematização do objetivismo e da referenciação
do discurso, e num sentido particular, com toda forma de verossimilhança (com toda a cadeia de conceitos e percepções associadas
a essa categoria estética). O efeito disto – sem dúvida revolucionário – é o
que permite compreender a brecha aberta entre realidade e literatura no
solo da narrativa contemporânea latino-americana.
Assim se
explica, por exemplo, o que alguém pode conceituar por aí que "a literatura é
melhor que a vida", ou mais especificamente, como faz Santiago Mutis, dizer que
é melhor "sobretudo se podemos contar com o estilo de García Márquez, pelas coisas
que acontecem conosco nela". São estas opiniões as que melhor ilustram o que acontece
em torno dessas práticas discursivas. Porque na realidade, além da discussão em
torno da oposição entre literatura e vida o que aí se apresenta é uma questão
de uma determinada economia dos prazeres na modernidade (que sustém a leitura,
não esqueçamos).
Mas também se
apresenta uma profunda inquietude sobre os conteúdos da experiência estética. Aí
aparece de um modo meio oblíquo a pergunta pela natureza dessa experiência,
isto é, se apresenta abertamente o paradoxo que opera entre a realidade da literatura
e a extraliterária na idade moderna, pois para Santiago Mutis, o literário é aquilo que não se dá na vida, e mais,
isto é em García Márquez "minucioso e preciso, realista e assombrosamente concreto".
Não resta dúvida pois que o autor de O
amor nos tempos do cólera havia encontrado uma maneira eficaz de tornar problemático
todo o campo daquilo que acreditávamos claro e bem definido entre realidade e
ficção, entre literatura e vida etc. O que colombiano havia alcançado dessa maneira foi levarmos a confrontar e devolver-nos à radicalidade do problema de todo
realismo, mesmo correndo a possibilidade complementar: ficar preso no nominalismo.
Aqui abrimos
um parêntesis para ilustrar tudo isso. Tomemos, por exemplo, as palavras pronunciadas
pelo rei da Suécia Carlos Gustavo em dezembro de 1982 no momento da entrega do
Prêmio Nobel de Literatura a García Márquez. Ninguém poderia manifestar desacordo
com elas porque expressam brilhantemente o que naqueles anos estava na
atmosfera e na percepção coletiva sobre a narrativa do escritor colombiano. Este
prêmio, disse o rei, se entregava por "seus contos e romances onde o fantástico
e o real se fundem numa complexa riqueza de um universo poético que reflete a
vida e os conflitos de um continente". Antes de aderir ou não a essa breve e
exótica referência, o que dizia era exatamente o contrário aos postulados do realismo mágico. Isto é, se falava de um
universo poético que reflete a vida e os conflitos
de um continente, de modo que invertendo os papéis, aqui não é a realidade
que serve ao romance mas o romance que
segue encadeado à realidade. Os riscos de reduzir as contradições ou
dissolver os paradoxos é o que ronda toda leitura, mas quando se trata da obra
de García Márquez, onde sempre estamos nos enfrentando, como nessas antigas
viagens míticas, as Cila e Caríbdis que aqui se chamam realidade e literatura ou
realidade e ficção, como se fossem bestas que rondam e esperam todo leitor
quando quer ir mais além das águas do narrado. É contra nossas próprias ilusões que
devemos lutar nestas batalhas, pois elas, igual àquelas bestas míticas, não descansam
até não haver destruído suas presas. No nosso caso trata-se de não perecer ante
isso que tão modernamente construímos como realidade.
Sem estas batalhas é impensável e imaginável isto que vimos aludindo em torno
do realismo mágico. Fecha-se o
parêntesis.
Chegamos,
pois, a um dos núcleos da modernidade literária da obra de García Márquez. Porque
não resta dúvida que sua pertença a essa forma de vivenciar a linguagem literária como metáfora das coisas,
se encontra a materialidade elementar da idade moderna. Precisarão esperar
novas condições de plausibilidade para que a linguagem chamada literária que já
se escreve de outra maneira seja lida de outra maneira, em sua
multidimensionalidade, em sua dupla articulação, em sua atividade, enfim, em
tudo aquilo que começa a se mostrar através das atuais correntes posteriores ao
formalismo e se associam aos discursos da pós-modernidade. Num sentido análogo
pode-se falar dessa via de escape da era industrial, que é a volta a um espaço
rural e agrário onde as relações humanas aparecem descontaminadas do envilecimento
ideológico da idade moderna. Toda a obra de García Márquez realiza um esforço
bruto por devolver aos homens sua capacidade de espanto, por reencantar o mundo
cotidiano, por religar os homens entre si, sem apoio ideológico que o da própria
estética moderna. Talvez por isso hoje possamos ver com tanta clareza que esses
esforços se inscrevem num solo que se funde, pois, na medida em que a sedução –
que é o que faz descarrilar o eu – alcança maior eficácia, maior é o cativeiro do
leitor na metafórica e autônoma realidade retórica do narrado. Aqui ressoa de
golpe as palavras de Jorge Guzmán quando ao falar de Cem anos de solidão diz que é "uma narração que não está controlada
pela religião, nem por uma determinada ideia restritiva da realidade, mas pela
língua latino-americana, [...] o que o livro contém não requer justificação".
A metáfora,
a autonomia e autorreferência viajam em nossa modernidade literária. Todas estas
marcas se alimentam do mesmo: de uma fratura na forma de vivenciar a linguagem
(e o mundo). É por isso que o que chamamos realismo
mágico não só nos mostra a precariedade e o ilusionismo dos realismos precedentes,
mas também, sob um renovado idealismo, nos devolve o sonho que o velho Platão
pôs nas consciências ocidentais quando decidiu expulsar os poetas de sua República por considerá-los mentirosos. Talvez
estejamos condenados de antemão a este estranho jogo de repetições. Talvez não tenhamos
mais opção que expandir imperecivelmente o campo da ação de um mundo cujos
espelhos não terminam de multiplicar essa mesma imagem fragmentada,
autorreferente e esquiva que nos mantém cativos em nossas solidões.
* Este texto é uma tradução de "Mondernidad en el realismo mágico de García Márquez" publicado pelo Instituto Cervantes.
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