Edogawa Ranpo, o bizarro rei do pulp japonês
Por Sergio Vera
Hoje vamos
falar sobre mistérios japoneses. E o primeiro é o sexo. O da sexualidade no
Japão é um arquivo X. Porque o império dos sentidos é na verdade o dos sem
sentidos. E se não, aí vai um dato alucinante: Japão, essa grande potência
mundial do fetichismo, é um dos países onde menos se pratica o sexo. E não é
porque as asiáticas tenham dores de cabeça. São elas próprias, as que logo se mostram
disponíveis com uma massagem de orelha (e não é brincadeira), as que se fazem
de difíceis.
Será por
isso que os reprimidos japonezinhos gostam tanto das fantasias sexuais? Talvez.
Mas aqui nos interessa é o que na perversão nipônica nada é novo. Já nos anos
vinte do século passado criaram um subgênero literário tão aberrante que só
poderia ser Made In Japan: o ero guro (a palavra é uma contração adaptada para o japonês das palavras inglesas erotic and grotesque, erótico e grotesco).
As revistas
de literatura populares no entre-guerras como Shin-Seinen (literalmente, “nova juventude”) foram a verdadeira arma
do literário de mistério japonês. Eram publicações pensadas por e para jovens
urbanos do Extremo Oriente para quem o gênero era algo exótico e moderno. La creme de la creme. Dentre a longa
lista de assassinos autóctones que perpetuaram seus primeiros delitos nessas
páginas destaca-se, por méritos próprios Edogawa Ranpo (1894-1965), unanimemente
considerado o pai da ficção detetivesca no Japão.
Ranpo nasceu
em Nabari, Mie, e foi batizado com o castiço nome de Tarö Hirai. Depois, quando
foi viver em Tóquio, estudou economia. E foi durante esses loucos anos
universitários quando, talvez por falta de substâncias psicotrópicas, que o
jovem Tarö descobriu Edgar Allan Poe, G. K. Chesterton e Arthur Conan Doyle. Tal
foi seu fascínio pela lógica dos mestres do Ocidente que, contra toda lógica,
quis mudar-se para a América a fim de se dedicar integralmente a escrever contos
de mistério.
Por isso, como
outros tantos marcados pelas letras, Tarö desempenhou mil e um ofícios pitorescos,
como vendedor de macarrão e desenhista, até estrear como escritor em 1922 com o
pseudônimo de Edogawa Ranpo. Bom, como hoje estamos um bocado misteriosos (eu preciso dar alguma pista), proponho um jogo de dedução: para de ler por um
momento e pensa. Um pouco, só um pouco: adivinha de onde vem esse nome?
Elementar!
Edogwa Ranpo é a transcrição fonética para o japonês do nome de seu admirado
Edgar Allan Poe. Homenagem que lhe valeu não só muitas críticas logo no começo
de sua vida de escritor, quando alguns colegas diziam sê-lo uma mera cópia dos
autores anglo-saxões favoritos num momento em que começavam a aparecer vozes críticas
contra a ocidentalização do País do Sol Nascente e sua progressiva perda de
identidade cultural mas parece ter lhe trazido sorte.
Os
textos de Ranpo vendiam como biscoitos. E logo Edogawa pôde tonar
realidade seu sonho de se dedicar profissionalmente à escrita. Publicou uma
quantidade infinita de contos e novelas em série onde, como outros autores de
seu tempo, demonstrava um grande fascínio pelos avanços tecnológicos do Ocidente
(especialmente a óptica e a psicanálise), com abundantes alusões e referências
a escritores anglo-saxões.
Uma boa
mostra da influência estrangeira sobre sua obra é O estranho caso da Ilha Panorama*, em que,
inspirando-se em contos de Poe, um aspirante a escritor idealiza um maquiavélico
plano para substituir a identidade um jovem rico, a fim de torna realidade seu
sonho de criar uma utópica ilha repleta de ilusões ópticas e paisagens paradisíacas.
Além desse
exemplo, entre os mistérios mais canônicos de Ranpo, destaca-se a série
protagonizada pelo detetive particular Kogoro Akechi, um mestre do disfarce e
do raciocínio dedutivo que ainda hoje segue como uma figura famosa por suas
aventuras. A mais conhecida delas é A
lagartixa negra que conta o engenhoso tour
de force entre Akechi e a camaleônica e escorregadia ladrona que dá título
à novela. Uma obra repleta de idas e voltas que, ao menos para mim, terminou
por me cansar. As razões para tanto é que esta narrativa como muitas outras de
Ranpo deve ter sido publicada inicialmente como folhetim e daí se explica a necessidade
de manter o leitor em alta tensão. Agora, um dado curioso é que esta novela foi
adaptada para o cinema em 1968 com roteiro do controvertido Yukio Mishima.
A besta entre as sombras, uma narrativa
breve, é, na minha opinião, mais interessante. Aqui, trata-se de um mistério
metaliterário narrado em primeira pessoa por um escritor de mistério (com referências
a contos do próprio Ranpo) que, sem perder de vista a trama, aprofunda-se um
pouco mais na psicologia de seus protagonistas.
Além de
pioneiro do mistério, Edogawa Ranpo é o máximo expoente do ero guro. Muitas de suas histórias, ainda hoje surpreendentemente
obscuras e macabras, combinam sem complexidades a sexualidade mais abjeta com o
crime mais refinado. Suas criaturas, geralmente deformadas e depravadas, são
assassinos profissionais que matam por amor à arte, buscando obsessivamente o crime
perfeito.
Uma das
obras-primas deste subgênero, só indicada aos leitores mais hardcore, é Moju, a besta cega. Conta a história de um assassino em série cego
que, fazendo-se passar por massagista, sequestra, submete e esquarteja mulheres
de pele marcadas abandonando depois seus corpos de forma boba e carregadas de
humor negro. Esta bizarríssima nouvelle
foi adaptada várias vezes para o cinema – a versão mais aclamada é a de 1967.
Ainda mais inclassificável
(se isso é possível) é Os crimes do corcunda.
Um enigma de quarto fechado com um detetive amador que, logo, se convite numa mistura
de novela de aventuras e história de amor bizantino ambientada numa espécie de Ilha do Doutor Moreau que recomendo muito a todo aquele que
pensa, a essa altura, que já leu de tudo.
Esta é só
uma pequena amostra da fértil (e enferma) criatividade de Ranpo antes da
Guerra. Porque quando veio o conflito, a literatura do gênero deixou de ser
publicada (alguns dizem que por causa da censura, outros, por causa da autocensura
dos seus cultivadores) e a obra de Ranpo foi proibida e destruída por ser “prejudicial
para a moral e a ordem pública”.
Depois do
fim do conflito, Ranpo voltou às livrarias, mas nunca mais sendo o mesmo. Voltou
todos os seus esforços no estudo e promoção do gênero, editando ensaios e numerosas
obras de literatura juvenil, como um Kogoro Akechi que pouco tinha a ver com o
dos seus primeiros tempos acompanhado do “clube dos meninos detetives”.
Durante os
anos 1950, supervisionou a tradução de uma seleção de seus melhores contos para
o inglês. Uma tradução que, reza a lenda, pareceu ser um trabalho mais de chinês
que de japonês, porque Ranpo sabia ler em inglês mas não escrever e seu colaborador
falava japonês mas não lia, motivo pelo qual Contos japoneses de mistério e imaginação (outro claro tributo a
Poe) não veio a lume até 1956.
Desta
antologia, ideal para aproximar-se do perturbador universo do escritor, destaco
“A poltrona humana”, a extraordinária história de um marceneiro que se esconde
dentro de uma poltrona para desfrutar do contato feminino, e “O teste psicológico”,
um caso de Akechi que ainda hoje é assombroso.
Como isso
tudo não bastasse, Edogawa Ranpo foi ainda o principal impulsionador da Associação
de Escritores Japoneses de Mistério, que, sua honra, criou um prêmio que leva
seu nome, o mais antigo do seu país. E mesmo depois de mais de meio século
desde sua morte, os textos mais conhecidos de Ranpo continuam a ser reeditados
e adaptados vez ou outra para o mangá, a televisão e o cinema.
Embora sua
obra possa ser chocante para o paladar ocidental, Edogawa Ranpo é unanimemente considerado
o pai da ficção detetivesca japonesa e todo que quiser descobri-la não pode e
nem deve deixar de dar uma oportunidade ao bizarro do rei do japulp.
Notas da tradução:
*Todos os títulos de obras de Edogawa Ranpo referidos neste texto são traduções a partir dos títulos em espanhol. Este texto mesmo é uma tradução livre de “Misterios erótico-grotescos: Edogawa Ranpo, el bizarro rey del pulp japonés” publicado Elemental e compõem uma série de textos sobre mestres do mistério japonês.
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