Duas novelas de Junichiro Tanizaki


Por Pedro Fernandes



Há na literatura oriental, ao menos nas obras de escritores como Junichiro Tanizaki, algo caro à literatura ocidental, sobretudo, as marcadas pelo experimentalismo que é um zelo agudo com a palavra e outra relação com a dimensão temporal – esta última, a grande rival dos leitores ávidos pela ação desbragada. Essa percepção comum e, logo, não característica de Tanizaki é aqui retomada, porque é um aviso aos leitores mais afoitos e desinteressados da contemplação: dificilmente um livro dessa literatura será bem-quisto se antes o leitor acostumado à literatura ocidental não se desapegar da maneira como se relaciona com a leitura. Aos que se aventurarem nesse esforço, uma garantia: nunca lerão da mesma maneira mesmo os livros da literatura ocidental.

O desenvolvimento detalhado das situações e o esgarçamento do tempo são alguns dos elementos que nos permitem manter outra relação com o texto, que é a de observação do mínimo detalhe capaz de introduzir transformações profundas nas situações maiores – fator que de certa maneira chega para muitas das obras ocidentais encobertas pelo efeito ilusionista da diversidade da ação. Em “A gata, um homem e duas mulheres” e “O cortador de juncos”, duas novelas de Junichiro Tanizaki recentemente publicadas no Brasil, por exemplo, acontece exatamente isso. São narrativas despreocupadas da grande pretensão porque apenas interessadas em contar uma boa história; o não exagero e não estar preso ao enredo mirabolante não significa uma narrativa desinteressante. Pelo contrário: torna-lhe ainda mais significante porque o leitor ao não esperar por grande coisa sempre finda encontrando o oposto. O resultado é uma história que nos marca de dentro para a fora e ao contrário das grandes narrativas ocidentais.

“A gata, um homem e duas mulheres” poderia ser apenas a história de uma relação entre as personagens que dão forma ao título da novela. Mas, não é. A estreita união entre Shozo e sua gata Lily deixa de ser a mera história de uma relação entre um homem e seu animal de estimação para ser uma história sobre a falência das relações pessoais e uma denúncia sobre a falibilidade do amor enquanto força plena, irrevogável e eterna. Primeiro, é a utilização da gata como maneira de separação entre Shozo e sua primeira companheira, Shinako. 

A união de Shozo com Lily é tamanha que o ódio ferrenho de Shinazo por gatos logo se transforma em ciúmes, que realimentados pela sogra Orin, quem não tem qualquer afeição pela nora, levam à separação do casal. Descrita como figura um tanto malévola por não saber compreender o lugar do outro – quando na verdade talvez Shozo seja daqueles pouco interessados em constituir família e usa da proximidade com o felino como muro estratégico para afugentar as mulheres – Shinako escreve a Fukoko, a atual companheira de Shozo, interessada em ter para si Lily. Novamente o ciúme se instala entre Shozo e sua segunda companheira e o resultado é – diferentemente do primeiro casamento abortado – a entrega do bichano para a ex, o que logo se transforma, aos olhos de Fukoko, em estratégia para a reaproximação entre Shozo e Shinako. 

Nesse emaranhado de situações a atenção do narrador apenas recai para a presença da gata, cujos vícios, comportamentos e atitudes em nada diferem dos comuns aos felinos mas que aqui ganham uma projeção extremamente humana, sobretudo se pensarmos na devota atenção que Lily deita para com seu dono. Não é à toa, portanto, que ela seja primeira figura já no título que enuncia a narrativa; isto é, anterior aos protagonistas humanos. Mas os detalhes denunciam essas condições mais amplas das relações humanas. Ainda tão distante da febre humana por cachorros e gatos – denunciada pela extensa quantidade de mídias produzidas por donos bestificados nas redes sociais – Tanizaki já se mostrava crítico da inversão de comportamento em que o animal ultrapassa o lugar do humano ao ponto de apagá-lo porque passa a existir em função de.

A segunda novela, “O cortador de juncos”, não leva uma reflexão no mesmo tom da primeira. Aqui, Tanizaki volta a outra obsessão sua – e de grande parte da literatura do seu país –, a relação com a cultura literária clássica e o modus vivendi anterior à era moderna, que no Japão se marca pela abertura do país para o Ocidente, imprimindo tensões que vão da relação entre tradição e modernidade e entre os valores de uma e a ascensão dos costumes de outra. É, desse modo, uma narrativa com profundos tons de saudosismo do passado, marcados pela presença do estreito diálogo com a literatura clássica japonesa – o haicai, o teatro Nô –, o que, por si só faz dessa história uma narrativa com densas camadas.



Enquanto em “A gata, um homem e duas mulheres” a narrativa se faz entre as correspondências de Fukoko com Shinako e de Shozo consigo próprio, a de “O cortador de juncos” segue a tradição da história dentro da história: primeiro, é a narrativa oferecida pela personagem principal, uma longa preparação para sua integração a uma situação histórica que se afirmará a partir do encontro com o cortador de juncos, quem relata a segunda narrativa, sobre o passado de seu pai e a relação com família Kosobe. A primeira é um relato de contemplação intensamente marcado pela reminiscência que recobra a criação pela linha imaginativa integralmente corroborada pela retomada da literatura dos antepassados. A segunda nascida do encontro do narrador com essa figura misteriosa é a história de amor proibido que, de maneira subversiva à narrativo do tipo japonês, não acaba em suicídio. 

Aqui, se verifica uma tônica da literatura de Junichiro Tanizaki, que é o interesse e o apelo para o erótico, algo introduzido pela recuperação de um imaginário sobre as grandes cortesãs do rio Yodo e alimentado pela história sobre o gosto do pai do narrador pela contemplação da paisagem nas noites de grande lua e depois sobre a identidade da mãe do narrador. As histórias entre Sr. Serihashi com as irmãs Oyu e Oshizu, recupera várias tonalidades das narrativas sobre o esplendor aristocrático das grandes damas da Era Heian. O desfecho de “O cortador de juncos” apela para a narrativa de cunho fantástico, porque se mostra suspensa, mera criação imaginativa da personagem principal – entregue entre as repetidas doses de saquê e inspirado pela energia emanada da paisagem e do brilho lunar – e porque o contador das histórias sobre os Kosobe apaga-se como se um fantasma que desaparece aos olhos, de maneira diversa da encontrada. 

O tom, as histórias e os temas tratados nesses dois textos são muito diferentes, ainda que tenham sido escritos muito próximos: o primeiro é de 1936 e o outro, de 1932, mas o cuidado com a construção é visível nessa tentativa aqui apresentada de destrinçar parte de suas narrativas e isso é uma das características que os coloca em estreita relação ao mesmo tempo em que reafirma o que introduz esses comentários. São textos de uma intensa força criativa. Não bastasse isso, se oferecem como uma acertada escolha para os interessados numa visita a obra de Junichiro Tanizaki porque evidenciam algumas de suas obsessões literárias: sua estreita relação com a tradição literária a qual pertence e a introdução de novas possibilidades ainda que, ao contrário de outros conterrâneos seus, não tenha desenvolvido uma relação que seja com a literatura e a cultura Ocidental.  


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