Diálogos entre Riobaldo / Tatarana e Tony Soprano na travessia que é o existir
Por Rafael Kafka
Riobaldo / Tatarana me faz pensar
em Tony Soprano e vice-versa. Os dois são anti-heróis os quais se utilizam da
palavra para dar um sentido pleno aos seus seres em um mundo marcado pela
violência e pela dispersão. Mesmo que em contextos e mídias diferentes, o
jagunço e o mafioso protagonizam obras cheias de profundo lirismo prosador
partindo de estereótipos vistos como rasos por boa parte da crítica. Ambos, no
sertão ou na selva de pedra, são prova da condição humana atolada no absurdo,
prova que se dá através de um discurso confessional cujo fito visa, em maior ou
menor grau, a expiação da culpa e a auto-compreensão.
Desse modo, Riobaldo vê no
interlocutor em silêncio o mesmo que Tony na psicoterapia: uma forma de se
tornar pleno a partir do olhar do outro que empresta o seu ouvido complacente.
É na ponte entre discurso e interlocutor que o sujeito se acha. Porém, o
jagunço não permite a fala de seu ouvinte, ao passo que Tony aos poucos começa
a querer o envolvimento com sua médica, doutora Melfi, por ela refletir tudo
aquilo nele ausente em sua relação com as mulheres presentes em sua existência.
Dentro de um mundo extremamente machista como o da máfia, Tony vê os seres do
gênero feminino – em especial a esposa, a mãe e a filha – como seres
intangíveis com os quais não consegue uma comunicação adequada. Com mulheres
estranhas, o contato é puramente sexual e adúltero; logo, o velho clichê do
amor de projeção por quem trabalha no processo de reconstrução simbólica do ego
ferido se encaixa bem na trama de The Sopranos,
pois Melfi é escolhida por seu gênero por um ser incapaz de demonstrar fraqueza
diante dos pares em um universo regido pela força bruta e pelos negócios
escusos de vida ou morte.
O machismo da jagunçagem gera em
Riobaldo a melancolia oriunda da impossibilidade de concretizar o amor por
Diadorim. As referências a tais emoções causadas pelo outro são sempre citadas
de maneira oblíqua e dissimulada, disfarces de si mesmas, esquivas mesmo no
plano narrativo e íntimo, emulando a repressão causada durante a vida
intersocial no meio jagunço. Ao contrário, Riobaldo viveu além das fronteiras
de seu gênero o amor e sempre comungou de maneira relativamente livre com a
dispersão do sertão.
Tony sente medo de desintegrar
na perda da família e transfere o afeto para os patos selvagens que se alocam
em sua piscina, num dia qualquer. A partida deles gera em Soprano a crise de
pânico que o levará a buscar o tratamento psiquiátrico.
Além do uso da palavra, talvez
justamente por ele, tanto Grande Sertão:
Veredas quanto The Sopranos são
obras marcadas por personagens extremamente humanos, os quais ficam aquém e
além da dicotomia entre bem e mal, que em seu maniqueísmo não dá conta do grau
de complexidade que é o ser humano em suas manifestações de ser. Nesse sentido,
vemos em Riobaldo e Tony o lado humano do mal e sentimos carisma por aquilo que
gera horror e morte em situações do cotidiano depuradas em ficção romanesca e
narratológica. A palavra quando levada além de seus limites causa rupturas com
verdades criadas por ela mesma, cristalizadas para o conforto humano. Por isso
obras como essas são prazerosas ao mesmo tempo em que extremamente
perturbadoras.
No final de Grande Sertão, Riobaldo se refere ao termo travessia para falar do que vem a ser o ser humano em seu modo de
viver: uma travessia absurda entre o nascer e o morrer. Na finitude do caminho,
há uma infinita quantidade de possibilidades, de escolhas, de possíveis
realizáveis e irrealizáveis. Riobaldo em cada fio de meada novo criado no
labirinto de sua narrativa parece querer dar conta de todas as manifestações de
ser percebidas em si e nos outros. Por isso, narra e renarra fatos vividos e
testemunhados, quase como um Bernardo Soares peregrino, expondo seu espanto e
suas sensações diante do choque causado pela realidade. Riobaldo vive a
travessia que é o sertão, que com seu ar agreste e insondável soa como reflexo
da realidade humana.
Já Tony está firme em seu papel
de chefe da família ou pensa estar. A partida dos patos mostra a ele o terror
da solidão, o medo de se ver fora de um ciclo de proteção não apenas afetivo,
mas existencial. A família garante sua posição de homem, pai, chefe de família.
A violência é modo de vida, sem tanta poesia como na epopeia do jagunço. Tony
se pega disperso e procura recolher seus pedaços diante de Melfi, enquanto
Riobaldo faz o mesmo com um aparente prazer de quem viveu muita coisa e já
encara a morte como fim inevitável, de maneira zen e até mesmo pacata. Riobaldo
é travessia, mas Tony se vê jogado na travessia, se vê vivendo na má-fé de uma
instituição sólida como a máfia que não lhe garante a solidez do amor e o calor
humano a lhe preencher as entranhas com sentido.
Se Walter Benjamin disse acerca
do romance ser este um gênero de seres solitários em um reino marcado pela técnica,
passagem complementada por Lukács ao se referir à fragmentação do mundo no qual
os romances passam a ser construídos, podemos dizer que algo desse solitário ar
passou para outras formas de narração em série, como as novelas televisivas e
os seriados, ainda mais as que procuram se aprimorar em beleza técnica de artes
como o cinema e o teatro. Assim sendo, tais mídias são grandes espaços de
exposição de planos existenciais densos que revelam o humano em toda sua beleza
caótica e disforme rumo a um porto seguro semântico.
Por isso, não é impossível
encontrarmos semelhanças entre seres construídos de formas tão diferentes como
Riobaldo e Tony. Um é literário e o outro audiovisual; um nordestino, o outro
americano descendente de italianos; um pratica o banditismo social e o outro o
mercado negro, agiotagem e crimes sob encomenda. Mas ambos, por trás de seu
viés local e específico, representam o universal humano: a falta de essência do
ser, que se constrói a cada minuto e procura não perder a lucidez.
Riobaldo age como o lobo da
estepe, tentando tudo colocar em ordem de pólo negativo e positivo. Um dia
percebe estar longe de conseguir fazer isso em um mundo onde inimigos de agora
até pouco tempo era aliados e a crueldade humana não pode ser facilmente explicada
pela ação do demônio. Riobaldo então vive sua travessia. Tony quando vê os
patos indo embora tem uma epifania que o leva a uma pequena morte. Mas diante
do absurdo ele busca na terapia uma forma de voltar à caverna, de conseguir se
assentar em um solo seguro. A palavra para Riobaldo é encontro consigo mesmo
por meio da aceitação da travessia que é o viver humano, a condenação à
liberdade. Tony busca claramente a certeza de um caminho firme. Ambos buscam se
encontrar com o discurso verbal, o qual fica aquém das dimensões do existir,
como bem mostram as personagens de Clarice, que vivem a ter revelações as quais
se mostram puro paradoxo e antítese em suas tentativas de serem reveladas para
o sujeito leitor.
Destarte, a arte narrativa se
mostra engajada com o ser humano e de certa forma com sua libertação quando
promove esse diálogo com seu entorno e a condição indefinível dos sujeitos
homens e mulheres. A escolha de sujeitos do gênero masculino, mais do que
identificação de homens consigo mesmo, revela a fragilidade de seres como nós
desde jovens presos a modos de ser ditados para oprimir mulheres e auto-afirmar
sexualidade, virilidade. O homem heterossexual, pai de família, jagunço e
assassino revela como ninguém o quão o discurso humano que assume a forma de
ideologia e dever-ser é frágil. Afinal, se a palavra não basta para explicar o
ser humano, como ela bastará para dizer a ele como agir de modo a se sentir
total e livre de dúvidas?
Seja no sertão, seja no submundo
do crime, estamos além e aquém do que dizemos ser. Somos o que não somos e não
somos o que somos, diria Sartre. O pânico de Soprano ou o estupor de Riobaldo
são resultados de sua descoberta da travessia que é o existir. Enquanto um
passa a viver isso na aventura do matar ou morrer, o outro procura chegar a um
canto calmo para encostar a cabeça e ser feliz. Nesse processo, os dois se
tornam essenciais por revelaram a não essência do ser humano, que a cada
instante procura se tornar verdade e porto seguro, casa e ponto de chegada.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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