Derek Walcott
Derek Walcott .Foto: Leonardo Cendamo |
Desde seus
primeiros poemas, as visões sobre o mar de Derek Walcott configuram uma poética
que articula saberes e memórias fragmentadas sob a continuidade das reminiscências
da resistência africana que persistem sob a história antilhana. Seu longo poema
Omeros* foi escolhido como a epopeia
genesíaca dos despossuídos da terra porque “inscreve o nome próprio de um povo
e de um lugar na tradição narrativa” (cf. Robert D. Hammer), isto em sua
própria versão da história e da arte. Ao longo de seu constante movimento poético, o poeta constrói a odisseia do regresso à casa, o canto de uma pátria sonhada,
uma solidariedade próximo à criada pela poesia oral tribal.
“Qualquer cultura
na qual convivem diferentes raças, inclusive aquela em que uma raça se considera
corrompida por outras, é, por sua própria mistura, uma sociedade mais rica que
qualquer outra. Em literatura, a pureza étnica não existe. E buscá-la seria uma
história sem fim. Por que, onde está o fim da pureza?”
“Na tradição
oral a forma sensível, a resposta aberta, de tal maneira que cada novo poeta
pode adicionar seus versos à estrutura original, um processo muito similar ao
tecer ou dançar, baseado no conceito de que a história da tribo é interminável.
Não há agonia nem queda, nem traço soberbo do efeito: não há patetismo. O blues, como a voz individual, carece de
patetismo; é uma forma tribal, e cada novo poeta oral pode modificar o texto, o
qual responde à ideia de que a tribo, indisponível à desesperança, também
sobreviverá: não princípio e tampouco fim”, disse Derek.
Outro aspecto
que é preciso destacar é algo muito caro a um poeta contemporâneo. Os poemas épicos
e dramáticos não são hoje frequentes porque
a poesia moderna se reduziu às formas de condensação simbólica e lírica
estabelecidas desde Edgar Allan Poe a Charles Baudelaire em meados do século
XIX. Walcott, como T. S. Eliot, W. H. Auden, Seamus Heaney, Octavio Paz e
Joseph Brodsky, volta às formas maiores da poesia não pelo caminho da imitação
de uma retórica maior, mas como uma maneira de reviver “as instâncias
primitivas humanas: o canto, o ritual e a oração”. Em sua definição da poesia,
o poeta Jaime García Maffla reconhece estas dimensões como instancias
anteriores ao poema. Preso numa estética moderna, considera que o Ser transcendental
é o sujeito do poema que em última instância aspira à intimidade e o silêncio.
Neste pathos se resolve a tensão da
escrita do poeta moderno.
Logo, Walcott,
quem também pode ser um poeta metafisico neste sentido místico da relação
individual com o transcendente, interpõe a figura lendária do narrador, o griot da tribo que nomeia e designa o
que foi silenciado pelo Sujeito transcendental da modernidade. Perguntamos
então, como pode sua poesia compreender ao mesmo tempo o tom lírico e a
narrativo? Como pode abrir-se outros horizontes de leitura poética para a recepção
deste gesto épico antilhano, é o que um leitor, hoje, poderia se perguntar.
Derek Walcott. Foto: Michelline Pelletier |
“O conceito
de épico estava incluído na lírica popular, o da missa que se constrói entre o canto
e o coro, num dístico e num estribilho [...] O poema épico não é um projeto
literário. Já está escrito nas vozes da tribo, uma tribo que havia criado com coragem
sua própria história”.
Mais quem um
pensamento metafisico, a poesia para Derek Walcott pretende criar uma nova
memória, inscrevendo-a na poesia. Mesmo quando o poeta sabe que as personagens
dão voz aos seus poemas talvez nunca chegarão a ler em silêncio os versos de um
letrado, não se trata de resgatá-los, mas de encontrar o ritual onde sua agonia
se resolva. Referindo-se à grandeza da poesia de Joseph Brodsky, Walcott deixa
entrever sua atitude ante à modernidade:
“[...]
alguém tem a impressão de haver escrito todos estes poemas, alguns deles muito
longos, porque servem de dique, de fortaleza contra o moderno. Tal inteligência
necessita tanto da quantidade como do detalhe. É um sistema de delimitações acumulativas,
de observações progressivas, e isso não é só através da metáfora mas das consequências
que a metáfora pode criar. Não pode ser bela no sentido previsível, tal como os
poemas de Donne podem ser feios”.
Um poema
longo adquire para Walcott o sentido de uma fortaleza erigida para resistir às condensações
metafóricas da modernidade. Portanto, o conceito de beleza do poema longo é
diferente, já que distende em sua agonia criativa. Ao contrário do poema
metafisico que aspira à transcendentalismo, o poema longo entrelaça a memória
da coletividade com presente, que é o tempo de sobreviver demorando-se na celebração
de uma sociedade que está frente à uma história que a ameaça a consumi-la como
desejo pelo exótico.
Derek Walcott
nasceu (em 1931) e morreu (em 2017) na ilha de Santa Lúcia. Descendente de escravos
negros e filho de um pintor branco, o mar do Caribe marcou sua vida e a carreira
de poeta e dramaturgo onde uniu a tradição antilhana com a poesia. Prova disso
é o longo poema Omeros, uma de suas
obras mais conhecidas em que reinterpreta a Odisseia
transladada para o Caribe. Épica renascida no século XX, essa obra transpõe a
visão da velha história mítica para o cotidiano dos pescadores do mar do Caribe,
com uma Helena que agora é uma criada negra e um Ulisses que vai em busca de
suas raízes e seus antepassados na costa ocidental da África, tudo isso do
ponto de vista de um narrador aprendiz de bruxo, cópia de poeta, um Walcott-Homero
já não cego, mas possuidor de um olhar cheio da forte luz do sol caribenho. Sua
vida e sua obra estão impregnadas tanto pela agreste solidão da paisagem da
ilha onde viveu boa parte de seu tempo com por suas origens africanas. Assim, convém
destacar o profundo sentido do sentimento do insular que marca também toda sua
obra poética.
Depois de cursar
seus primeiros estudos no Saint Mary’s College, de sua ilha natal, e na
Universidade das Índias Ocidentais, na Jamaica, mudou-se para Trinidad, onde
trabalhou com teatro e crítico. Tinha só 18 anos quando publicou seu primeiro
livro de poemas – obra que não teve tanta ressonância, ainda que deixasse
entrever seu talento para a poesia. O primeiro êxito como poeta veio em 1962 com
a antologia Numa verdade noite,
título que é uma citação de um poema do poeta metafísico inglês Andrew Marvell
que trata sobre as reluzentes laranjas das Bermudas como lâmpadas douradas na
verde noite de uma árvore (“like golden lamps in a green night”), uma das poucas
imagens apropriadas para simbolizar uma obra poética caracterizada pela abundância,
variedade, o colorido da prosperidade.
De 1959 a
1976 dirigiu o Grupo de Teatro Trindade, fundado por ele mesmo e onde estreou
algumas de suas primeiras obras do gênero. Seu talento como autor para teatro
transcendeu os limites de seu grupo ao ponto de ter obras suas representadas em
várias partes do mundo, como O último carnaval,
que foi encenada em Estocolmo por Lars Lofgren, diretor do Dramaten, depois de
se encantar com a sua obra. Esta peça, logo tornada uma das preferidas de Walcott,
descreve o desenrolar do acontecer político de Trinidad nos últimos tempos
através da vida de uma família da ilha.
Além de Omeros e dos títulos citados
anteriormente, escreveu outros quinze títulos, dos quais se destacam, em
poesia: Outra vida, Uvas de mar, O viajante afortunado, O
testamento de Arkansas; em dramaturgia: Sonho
na montanha do macaco. Além desses gêneros, praticou o ensaio crítico,
também marcado por rica singularidade. Um exemplo desse terceiro trabalho é o
livro A voz do crepúsculo, em que Walcott
examina obras de nomes como Ted Hughes, Les Murray, V. S. Naipaul e Ernest
Hemingway.
O escritor
recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1992 – foi o primeiro do Caribe a conseguir
tal feito. Fora dos versos de Andrew Marvell, sua obra não é simples e nem
possível de resumir a um só sentido, embora a Academia Sueca tenha justificado
o galardão dizendo ser – eis outra possibilidade ou seria um redizer daqueles
versos – “sua obra poética de grande luminosidade sustentada numa visão histórica
nutrida de um compromisso multicultural”. Walcott teve tempo de escrever uma
obra bastante extensa, não só variada, mas cheia de matizes e que soube oferecer
– como a de outro caribenho, Saint-John Perse – uma versão personalíssima da cultura
de seu território.
Admirador da
pintura do italiano Giorgio Barbarelli e Cézanne, Walcott também se aventurou
no ofício da pintura, um diálogo que manteve paralelo à sua obra como se uma
segunda língua. Sobre sua pintura, em 2000, o poeta organizou uma edição onde
reuniu todas elas – Tiepolo’s Hound.
A radical plasticidade de sua visão do mundo pode ser observada desde seu livro
de estreia até Penachos brancos, seu
último livro (publicado em 2010) e se entrelaça a uma escrita atravessada pela
sedução do espaço e pelo que ele próprio um dia chamou “o murmúrio” da
história.
Sua concepção
da palavra poética é da fusão entre o passado e o presente, a instantaneidade e
a eternidade, a territorialidade e a extraterritorialidade. “A poesia é uma
ilha que se desprende do continente”, disse.
Sua voz peculiar,
capaz de soar igualmente como pessoal na poesia e no teatro (“nunca mudei de
gênero, tudo é o mesmo”) abriu espaços à literatura de fronteira e ajudou que surgissem
novas vozes procedentes de âmbitos literários e vitais muito distintos. “O Caribe
tem por trás uma tradição muito trágica. O genocídio dos índios, o escravismo...
Mas daí surgiram também muitas línguas, dialetos, raças, músicas, religiões.
Uma porção muito forte, e muito rica, que agora está aflorando em todas as
partes. Cada ilha guarda uma assombrosa quantidade de gênios”.
Por fim, engajado em abrir novos ares aos do seu lugar, as atividades políticas de Derek não findaram no exercício teatral; foi uma voz ativa sobre sua realidade e da mundo. O poeta nunca
se descuidou de se pronunciar sobre nossas mazelas. O mundo, pensou,
não terá, no futuro, a possibilidade de vir a ser um pequeno paraíso, mas ainda assim é necessário problematizá-lo, encontrar lufadas feitas de novas possibilidades de habitá-lo.
“Depois
do Holocausto pensei que essa seria a última grande tragédia da humanidade, mas
me equivoquei. Kosovo nos ensinou que era possível repetir tudo de novo. Supõe-se
que a Europa é um modelo civilização, mas é também um modelo da barbárie. E não
parece que as coisas estejam melhorando, nem que a mistura de raças esteja acontecendo.
Todos os países, inclusive minha pequena ilha, têm leis de imigração. A solução
não é fácil, porque depende da compaixão dos governos, que muitas vezes são a
fonte de sofrimento dessa gente. Enquanto isso, as lutas tribais continuam, na África e
Europa. Horríveis, repetitivas, enfadonhas”.
* Exceto Omeros, todos os títulos de obras de Derek aqui citados são traduções livres do original em inglês.
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