A resistência, de Julián Fuks
Por Pedro
Fernandes
Uma história
que se insinua. Isto é A resistência, o terceiro livro de Julián Fuks. Antes
vieram Procura do romance e Histórias de literatura e cegueira.
Neste, o narrador se veste do interesse de contar a história de um irmão
adotivo, figura em torno da qual se constrói toda uma sorte de resistências em
tornar pública sua história a começar pelo zelo quase sagrado de tratá-lo por
essa condição. “Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu
irmão é adotado” – assim inicia a narrativa. E a não-revelação sobre a história
deste irmão servirá de força motriz para uma investigação silenciosa e
diferente sobre o passado.
Até aqui, a ideia se aproxima e se confunde com a
proposta por Chico Buarque na composição de O
irmão alemão, romance nascido de uma investigação do escritor em torno um
irmão bastardo com o qual não teve contato. Ou de Todos os nomes, de José Saramago cuja existência se deve às
investigações do escritor português em torno da morte do irmão mais novo. Mas as semelhanças começam e findam aí.
Porque a perquirição do narrador de Fuks é meramente traçada pelos meandros de
uma memória que, quando não se ausenta, é escassa e insuficiente para o
desenvolvimento da narrativa. Diferentemente do narrador de Chico Buarque, bastante apegado ao documental e do narrador de Saramago, bastante subversivo ao
ponto de resistir na sua base apenas a situação vivida pelo escritor enquanto
as situações no interior da narrativa são já totalmente outras.
Ou seja, no caso
de Fuks, a resistência que intitula a obra tem pelo menos duas dimensões
perceptíveis até agora: a do silêncio sobre o passado do irmão adotivo do
narrador e a da sua própria memória que ora se recusa lembrar as miudezas da
convivência entre essas duas figuras ora não dispõe de nenhum material que não
a invenção para reconstruir um passado ausente do narrador. É o esforço de
lembrar sobre o que não se há possibilidade de lembrar porque não vivido e o
reforço ao tema da memória inventiva – uma espécie de prova de que à memória
não pertence apenas o vivido mas o que ela própria vivencia pela invenção. Que
a memória é trânsito entre o experienciado pela existência e o experienciado
pela imaginação.
Apesar de
não recorrer ao trabalho documental, não é permitido acusar o narrador de
Julián Fuks de não se beneficiar do vivido. A narrativa de A resistência é um híbrido no qual a linha do inventado ultrapassa
a do histográfico porque se nutre da consciência de ser um objeto de palavras.
Sua tentativa é a do poeta: forjar uma criação e não outra realidade próxima ou
semelhante ao de fora do texto. Assume-se aqui outra linha de sentido
destrinçado de a partir do título: resistir aos protocolos da mimeses
representativa. E o que alcança com isso? Não uma narrativa, mas sua
possibilidade.
Esta é uma obra feitas de apontamentos para uma obra. Um romance
à espera; uma narrativa nascendo; uma história que se insinua. A incerteza ante
os acontecimentos, a não revelação explícita sobre o que aconteceu impõe ao
leitor um esforço de, junto com o texto, construir sua própria narrativa sobre
o que seria interesse do narrador com essa história – “Isto não é uma história.
Isto é a história”, diz a narrativa seduzindo-nos a acreditar que não estamos
ante uma revisitação do passado mas um fazer-se do passado no presente. A
destituição do tempo soma-se entre as estratégias do narrador em determinar ao
leitor a história possível. Ou seja, a compartilhar do mesmo sentimento de
vazio da memória sobre o qual se situa e para o qual sua percepção lhe é
obsessiva.
Agora, uma
determinante de que a possibilidade do narrar aqui não nega a linha principal
do que se diz por memória – a do vivido – reside nas ocasiões quando a voz do
narrador apresenta nos apontamentos o contexto histórico no qual se situa os acontecimentos
relativos à chegada do irmão adotivo na família. Eram os tristes anos da
ditadura argentina e os pais estavam, pelo desaparecimento de gente muito
próxima e pelas ideias que defendiam, em risco de terem a vida destruída. As
perseguições, as torturas e os sofrimentos de toda sorte comuns a todos os
regimes de exceção compõem uma importante dorsal de A resistência e, como se
vê, é esta a outra acepção desses termos aí presentes: a tentativa de se manter
intacto ante o horror. “É preciso aprender a resistir. Nem ir, nem ficar,
aprender a resistir. Penso nesses versos em que meu pai não poderia ter
pensado, versos inescritos na época, versos que lhe faltavam. Penso em meu pai
na última reunião clandestina que lhe coube presenciar, quieto entre militantes
exaltados, abstraído do bulício das vozes. Resistir: quanto em resistir é aceitar
impávido a desgraça, transgredir com a destruição cotidiana, tolerar a ruína
dos próximos? Resistir será aguentar em pé a queda dos outros, e até quando,
até que as pernas próprias desabem? Resistir será lutar apesar da óbvia
derrota, gritar apesar da rouquidão da voz, agir apesar da rouquidão da
vontade? É preciso aprender a resistir, mas resistir nunca será se entregar a
uma sorte já lançada, nunca será se curvar a um futuro inevitável. Quanto do
aprender a resistir não será aprender a perguntar-se?”
Mas a
situação histórica e o horror não estão descritos com a objetividade limitada da
ação. Se esta obra é um conjunto de apontamentos, o contexto é todo refeito
pela reflexão imaginativa do relator. Aliás, essa estratégia ora estabelece
outra relação de proximidade com a história, deslocando os episódios de uma
altitude intocada para refazê-los num conjunto de sensações, ora é uma acertada
escolha estilística do narrador que se coloca como mediador entre universos
linguísticos distintos um bocado: o espanhol e o brasileiro. Ao se propor apenas
compor as notas de uma história possível o narrador justifica o seu lugar em
relação com o tempo a que se refere e dribla o que poderia enterrar a obra, que
é a necessidade de forjar uma linguagem capaz de integrar os dois universos
linguísticos referidos. Isto não é a mimeses representativa mas não deixa de se
desvincular do seu caráter definidor de toda narrativa que é o de fazer com que
o narrado seja verdade para o leitor.
Não se
deixar levar pelo trabalho simplista de querer ordenar os acontecimentos nascidos
aleatoriamente como são todos aqueles brotados da memória e não querer prender
o enredo a certezas absolutas, tal como faz um leitor de alguns dos melhores da
literatura (William Faulkner, António Lobo Antunes) é a maneira mais acertada
de ler A resistência. Perseguir a
multiplicidade de sentidos destrinçados pelo narrador no exercício de
possibilitar os lugares do seu possível romance se mostra como uma estratégia
de se imiscuir entre essas possibilidades e compreender os silêncios que aí se
escondem. A resistência é, por fim,
uma grande perquirição ante o silêncio, ou talvez um exercício de captura do
silêncio. Se o silêncio é o que se insinua, o sugerido, não deixa de, nesse
exercício, se apresentar com lacunas preenchíveis, de maneira diversa, apenas
pelo leitor atento.
Porque toca
em temas muito caros sobre nossa história coletiva – A resistência não se afirma como um romance individual interessado
tão só num problema de ordem dessa natureza – o romance de Fuks, pela maneira diferenciada
que toca em tais temas, se oferece como um dos exercícios literários mais
interessantes da literatura escrita pela novíssima geração de escritores
brasileiros.
Comentários