A casa de ler no escuro, de Maria Azenha
Por Pedro Fernandes
A vida pode
ser uma mulher atravessando a rua
A mulher
pode ser uma criança com uma flor de cinzas na boca
A flor pode
ser um homem enforcado na lua
Os versos
que abrem este texto são do poema “Aviso”, do livro A casa de ler no escuro, um dos vários títulos da poeta portuguesa
Maria Azenha – este publicado no Brasil e entre os melhores de poesia editados
por aqui em 2016. Antes de olhar mais de perto a antologia, é preciso sublinhar
que o livro é um pequeno ponto na constelação poética da poeta, porque sua
singularidade divide lugar com outros poemas como os reunidos em De amor ardem os bosques.
Neste, há
todo um trabalho em torno da palavra que nomeia a obra, o que não chega a constituir
o diferencial de A casa, porque aí as
preocupações do eu-poético são também outras. Mas, em De amor tudo está alinhado para um só propósito e sua poesia é percepção
simbólica em torno de uma palavra, como águas que correm para um mesmo
reservatório. Trata-se de uma poesia cujo interesse é reanimar as forças que
integram homem-mundo, numa espécie de retorno à comunhão entre as duas formas,
reencontro, afirmação de uma totalidade frente à perda da totalidade desde o
nascimento da linguagem como interpretação das coisas.
De amor ardem os bosques é sobre uma consciência
profunda, espiritual, metafísica, uma ternura que envolve objetos, formas e
situações; ergue-se numa poética em diálogo com alguns nomes da melhor tradição
literária. Se estas imagens ganham a predominância que ganham aqui, há outras
que se infiltram ou daí sobressaem e deixam entrever, seguindo, perfazendo
um cerzido comum a todo projeto literário de consistência duradoura. Por mais
que as matérias sejam outras, de uma mesma forja sempre saem objetos assemelhados.
É uma criança
que vem de
longe.
Devora-nos o
rosto
como uma
página rara de luz.
Ninguém conhece
o seu nome.
No lugar
onde habita
o fogo é
quem decide.
Este poema
reveste-se dos mesmos fios daquele que abre este texto. São de uma voz poética
que não se descuida do zelo com a palavra e do jogo imagético capaz de fazer
nascer dela uma diversidade de sentidos, signo do objeto poema. Introduz outra relação do campo poético – a com a externalidade do
mundo, não o mundo preso no inconsciente individual e coletivo do poeta e dos
homens, mas esta abóbada de coisas, o já-destituído, paraíso perdido, cuja
existência teima em frangalhos. É a voz do poeta reavivando uma relação, por
sinal, muito cara ao poeta moderno: entre o conteúdo estético da poesia e o social.
A casa de ler no escuro são sugestões. É
um extenso mergulho na trivialidade, interessado não em reavivá-la e sim encontrá-la
naquela condição só acessível à aguda visão do poeta, capaz de penetrar formas
e coisas e vê-las em relação com as imagens mais profundas e aqueles conteúdos
dominativos em De amor ardem os bosques.
Isto é, o movimento do eu-poético é agora
inverso: não de dentro para fora, revelação, mas de fora para dentro,
recriação. Esses dois termos que definem o fazer poético de Maria Azenha são
significativos para o que comumente chamamos de maturidade poética porque é a
própria essência da poesia: “O poema foi escrito com as letras disponíveis. /
Ergueu-se com o que havia e / não há como torná-lo pacífico.”
Sim, se o
poeta, ainda é o criador, o que toma para si toda ordem do mundo, mesmo que o
poema seja a força que lhe subjuga, o que “Arrasta consigo mesmo / o Nada”. E, tal
como a aranha que envolve a presa em sua teia e faz da presa teia e dela
alimento, presa confundindo-se predador, o poeta, na atual conjuntura abriga-se
noutras maneiras diversas de criação e elas respondem por esses dois termos:
revelação e recriação. O primeiro o mantém ligado ao lugar nunca perdido: o ser
capaz de ver o mundo com outras percepções que não apenas as comuns. O segundo
é a novidade do ser poeta num mundo onde tudo parece já dado ou lido à maneira
de cada um porque nosso olhar agora em muito se assemelha (ou pelo menos deve)
ao modo de ver do poeta – isso porque o mundo é interpretação e não situação
dada.
Ao poeta,
resta-lhe ainda sendo o outro modo de ver, o que recolhe o que vê e modela
outras possibilidades. É sobre isto A casa
de ler no escuro. Maria Azenha está entre o que vê e o que recolhe – é
ourives. E sua mirada é penetrante, revela-se pela justaposição de imagens capaz de renovar o mundo lido por nossas retinas com a propriedade de ser único,
singular. É uma grande colagem de objetos, de volteios com a palavra, com o
poema – este objeto de força que se impõe.
A poesia de
Maria Azenha dispensa as divisões temporais e encara a realidade como um todo
diverso e complexo, composto do monturo, sedimentos de temporalidades. Assim, o
leitor encontra entre imagens tão próprias do seu tempo, coisas saídas de nossa
memória coletiva; dentre elucubrações surrealistas, condições tão de outra e
dessa vida; e, sem perder a atenção crítica para o mundo abjeto, em permanente crise
e já incapaz de produzir qualquer retorno à sua totalidade, o refaz de palavras.
Este mundo
que sua poesia toca, retoca e cria, mesmo que não experienciado pela existência,
é o que nos invade diariamente pelas diversas mídias e mesmo quando tudo, o
absurdo, é incapaz de nos produzir qualquer movimento – porque agora somos uma
horda de insensíveis – é experienciado pelo olhar perspicaz da poeta. Ela se faz
a única capaz de sacudir-nos da fatal letargia. Seu poema é inquietação. Porque faz o leitor ao menos contorcer-se à força das imagens. O poema-título da antologia reafirma
essa compreensão nova designada à poesia e ao poeta do mundo em desamparo:
O poema é um
quarto escuro
onde sozinho
entras.
Mais negro
ainda é o aposento
onde habita
o teu cadáver.
A constatação
sobre o inescapável fim, rio para o qual, todos, cedo ou tarde, serão tragados,
é este tapa ensaiado pelo poeta para nos recobrar os sentidos sobre o mundo na condição
em que tais sentidos parecem estar suspensos. Não é o poema uma voz que se
impõe, é a voz que espera ouvidos e por isso é a mais democrática das vozes.
Num tempo de imposições, imperativos, de discursos unilateralistas, mais o
poeta se distancia da trivialidade do mundo.
Isto é, a
vista da poesia de Maria Azenha sobre o cotidiano é maneira de revelá-lo para
os outros, não sem envolvê-lo pela baba com que cerze as imagens que se mostram
no poema. Mas, acredite, é com a melhor das intenções, não repetir, mas
refundar outras condições. Não impor, porque nunca é essa a tarefa da poesia, mas sugerir saídas da via comum. O mundo é repetição e é preciso destreiná-lo dessa
sina imposta. O poema é impulso para essa ruptura.
Nessa revisão,
A casa de ler no escuro, sugere a
ruptura com as vistas comuns, a preparação de outro olho ou a reeducação desse nosso aparelho já cansado, que ele seja então o capaz de perfurar o gris, o
sem-sentido, o vazio; sua poética não se dissocia do traço surrealista – que
parece ser uma fonte inesgotável à poesia sempre –, pois é a transmutação do
apagado no escuro o que alimenta o poema, quando este não é seu próprio
alimento: “Aumenta e morre o poema sem o dia / De gaze é o vestido da sua ausência”,
lê-se em “Longe de casa”; “É do número que tomba o sonho / e o lume abre as
entranhas da página”, em “Poema contínuo”; “Auschwitz é um cão que morde o
poema / triunfante de ruína.”, em “A noite na europa”; “O poema arde em seus cavalos
árduos. / O desespero horroriza a página”, em “Absurdo”; “O poema foi escrito com
as letras disponíveis. / Ergueu-se com o que havia e / não há como torná-lo pacífico.”,
em “Mediterrâneo”.
Há ainda o
volteio da memória ensombrada, a revisitação aos lugares mais difíceis da
história (“A noite na europa” é um exemplo) e um timbre de voz sibilando denúncia
contra a violência, não se descuidando de que a poesia não é silêncio e, logo,
nunca cúmplice das atrocidades do homem contra o homem. Se as imagens do poema
que abre este texto são fotografias de um tempo aterrador, o do ódio que
primeiro vitima crianças e mulheres, a poesia de Maria Azenha deixa à vista a
denúncia ao poder desastroso do capital: “Li num jornal como se faz dinheiro. /
Formidável, não acham?! / É importante que não nos julguem idiotas! / Aqui há ladrões
e fantoches. / Alguém representa o papel de füher.
/ A guerra é demasiado cara!” (“Tempos difíceis”); da indiferença: “Em termos de data de nascimento
/ não sabemos quem espera no futuro por nós. / Mesmo lendo, vivendo ou calcinando
/ algumas cicatrizes do século vinte e um.” (“Advertência”); “A criança está
amarrada a uma ave cega / e o seu coração sangra de um espelho / para dentro da
luz.” (“Três retratos para Fassbinder”); do acaso aterrador: “É uma estranha morta. / Os braços
fazem de escuro. / O céu é sete vezes horto. / O chão, / um fio de prumo.” (“Europa”)
Este cavoucar
de vidas, num tempo todo em frangalhos, reflete na própria atitude do poeta e é
talvez o preço mais caro que pode pagar em defesa do poema – a retroalimentação
– e por isso são raros os que o fazem com maestria. Olhar para o poema, para o
mundo, não o que se distancia, mas o que nos cerca, eis a tarefa do poeta contemporâneo
– não a única, mas talvez uma das principais. Se é isto o que busca também o leitor
de poesia, então estará bem nesta casa de palavras de Maria Azenha.
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C. V. Marques