A arquitetura da cidade como mediadora de leitura
Por Rafael Kafka
Lembro-me
de quando era criança e na tentativa de ler algo eu me detinha a ler os textos
que vinham em meus livros didáticos. Isso fazia com que eu sempre estivesse
adiantado em relação ao conteúdo ministrado pelos professores de então, mesmo
eu estando em clara desvantagem no tocante a solucionar a cartilha de
alfabetização ou a tabuada – lembro que dificilmente eu passava da tabuada do
quatro. A leitura em casa me ajudava a entender muito da realidade ao meu
redor, mesmo que anos depois eu percebendo que aqueles textos vinham picotados.
Aquele era o ponto de minha vida onde eu tinha alguma forma de expansão da
realidade, sendo complementado pelos programas que via na TV Cultura ou mesmo
na Globo, a qual sempre possuiu bons programas educacionais em horários ruins.
Conforme
cresci, meu interesse pela leitura foi se ampliando e vi no mundo exterior o
apoio de algumas pessoas o suporte necessário para não me afastar do hábito da
leitura. Minhas tias me emprestavam gibis da turma da Mônica para ler ainda no
fim de minha infância e depois amigos e professores me indicavam e me
emprestavam livros variados. Na biblioteca da escola sempre encontrei coisas
boas e Stephen King e Agatha Christie têm local cativo na minha formação
leitora. Porém, a biblioteca da escola nem sempre estava aberta e os amigos que
me emprestavam livros eram raros. Pegava-me a sentir algumas crises de tristeza
e tédio por não saber o que fazer, nem o que ler, andando a esmo pelo conjunto
onde morava, torcendo para os guris com quem jogava futebol e reunissem naquele
dia, pois do contrário eu estaria fadado ao tédio.
Um dia,
descobri a biblioteca pública do estado. Mesmo morando em bairro periférico,
comecei a frequentá-la com afinco e cheguei a faltar aulas do cursinho e da
faculdade para ficar nela lendo The
Spirit, Sandman e outros, além de emprestar livros, ouvir música na
fonoteca e ver filmes no maravilhoso Líbero Luxardo. Voltava para casa feliz,
pleno dessas empreitadas, mas sentia que era muito cansativo cruzar toda uma
cidade com trânsito ruim para pegar filmes pela metade ou de repente ver a
biblioteca fechada ou com o sistema fora do ar. Quando comecei a trabalhar
dando aulas, senti um peso duplo de tristeza por perceber que muitos jovens,
como eu era em minha adolescência, poderiam nesse momento estar se sentindo
deprimidos e entediados de não terem o que ler e não se contentarem em jogar
futebol ou verem partidas pela TV, indo de repente brincar de apontar uma arma
na cabeça de outra pessoa. E como professor, eu já não tinha o mesmo pique e
tempo livre para cruzar a cidade e correr riscos como os acima citados além de
encarar o cansaço de um trânsito horrível.
Foi nesse
momento que entendi minha depressão de outrora ligada à arquitetura da cidade e
que esta é uma mediadora de leitura muitas vezes ignorada por nós, leitores e
professores, quando falamos de leitura sem discutir acesso a políticas públicas
de formação de leitores e professores leitores. Afinal, uma cidade como Belém
com mais de cinco shoppings e uma biblioteca pública, no sentido pleno da
palavra, funcionando diz claramente que os jovens leitores não devem ter acesso
à leitura. Ocorre em Belém o que Antônio Cândido fala em seu ensaio sobre o a
literatura como direito humano: as pessoas de camadas mais pobres são vistas
como merecedoras apenas de bens materiais tidos como essenciais para a vida,
como moradia, saneamento básico, alimentação, etc. Não quero aqui dizer que
isso seja desimportante, muito pelo contrário. Mas como o grande intelectual da
crítica literária brasileira eu me questiono se só isso basta.
Afinal, nós
membros de classes mais privilegiadas além de termos tudo o que foi dito acima
temos também o acesso à leitura literária mais ou menos garantido. Muitos de
nós não lemos alegando falta de tempo ou mesmo afirmando profundo desgosto pela
leitura. Contudo, quase sempre isso fica no domínio da escolha. Quando eu era
mais jovem, não havia escolha para mim exceto os livros didáticos da escola e a
doação de amigos e parentes os quais viam em mim algum tipo de brilho. Mas
volto a me perguntar e meus amigos que jogavam futebol comigo: quais rumos
teriam sido tomados se eles tivessem a leitura em suas vidas? Muitos brincaram
de apontar armas e hoje estão mortos. E mais jovens estão surgindo ali, naquela
periferia, para darem sequência a essa estranha e bizarra cadeia.
A leitura
ao menos oferece a possibilidade de perspectivas. O prazer do texto literário
garante a expressão artística em jovens de periferia que passam a ter algo de
humanizador em uma realidade absurdamente violenta. Daí podem surgir expressões
como o grafite, o rap, o teatro e outras mais que podem servir de elementos
provocadores dentro de uma comunidade afundada, muitas vezes, no ritmo paradoxal
do trabalho duro e do conformismo. Contudo, a leitura não chega aos estudantes
e muitas vezes as bibliotecas estão fechadas. A arquitetura da cidade e a falta
de um serviço público fazem com que pessoas de profundo talento vejam na
leitura algo cansativo, chato, aborrecedor, profundamente ligado às apostilas e
textos os quais devem ser lidos para se passar na prova ao final do bimestre.
Lembro-me
de um projeto do SESC que se caracterizava pela ida de um ônibus biblioteca até
o bairro onde eu morava uma vez por semana. Muitos alunos meus me falaram sobre
terem ido a esse ônibus emprestar livros. Um dia, ele parou de frequentar a
praça perto de casa e foi somente aí que eu me dei conta do vazio que aquele
simples objeto causava anulava com sua presença e realçava agora com sua cruel
ausência. Penso em como a realidade seria diferente se mais projetos desses
surgissem, se jovens como eu tivessem a possibilidade de ver um local cheio de
livros, sentar, folheá-los, sentir o seu cheiro, se prender à história ou
trocar o livro, podendo levar para casa e passar uns dias em sua companhia.
Penso que no mínimo os jovens começariam a entender que a realidade é muito
mais do que crimes e trabalho duro, desesperado. Eles de repente começariam a
querer ocupar posições mais altas na sociedade, vagas na universidade,
frequentando cinemas alternativos e teatros, exigindo que a cultura se
aproximasse não apenas em suas formas mais populares ou acessíveis, e sim nas
formas mais complexas, eruditas, de sua existência.
Esses jovens
provavelmente virariam adultos que iriam ter mais amplitude em suas leituras de
mundo e aprenderiam a fiscalizar os seus representantes políticos, cobrando
deles o cumprimento de planos de governo não somente no tocante aos bens
materiais essenciais à sobrevivência, mas também no sentido de trazer cultura e
leitura para perto de si, na forma de escolas decentes com bibliotecas em suas
dependências e funcionários comprometidos em manter o espaço funcionando.
Talvez isso
soe muito utópico de minha parte. Porém de certa forma isso ocorreu comigo e
tem voltado a ocorrer, agora que resolvo ter um contato mais aprofundado com a
leitura, deixando de lado um pouco a realidade das redes sociais e me focando
mais na leitura de tessituras narrativas bem definidas. Lembro-me de como a
presença de uma biblioteca pública foi importante para mim no sentido de
descomprimir meu ser, de me oferecer novas perspectivas, de aprofundar a
sensibilidade em mim existente, levando-me a não me submeter a um regime
puramente material. Com base em minha experiência, fico a imaginar como seria
se os jovens da periferia tivessem mais chances de contato com a leitura, com a
cultura, com a arte e com novas perspectivas existenciais por elas trazidas.
É com base
nisso que sigo a falar de leitura, seja em rede sociais, seja em sala de aula,
e tentando levar aos meus alunos a leitura, bem como tentando fazê-los ocupar
mais os espaços que são deles por direito e muitas vezes sem o seu
conhecimento.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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