Um poeta chamado Cortázar

Julio Cortázar em Genebra, 1955.


Em 1971, Julio Cortázar publicou seu primeiro livro de poemas Pameos y meopas, obra, para muitos, apesar do pouco grado do próprio escritor para com ela, fundamental para a compreensão do restante de sua produção literária. Aurora Bernárdez, companheira do escritor, diz que "se alguém quer saber como era Cortázar, o que pensava, com que sonhava, como imaginava o mundo, precisa ler sua poesia". E acrescenta que o autor de O jogo da amarelinha "era um poeta até quando escrevia em prosa".

O texto a seguir é do próprio escritor. Trata-se de um prefácio que escreveu para o livro de 1971; nele, não apenas explica-se como poeta como também, enxergando-se homem no limiar das transformações estético-culturais, formula uma teoria da poesia contemporânea a partir do grafite. Já então, curiosamente, Cortázar pensava em ampliar o conceito de poesia, no intuito de pensá-la além dos clássicos e da estrutural formal, tal como terão pensado os premiadores do Nobel de Literatura em 2016 (dado a Bob Dylan, citado neste texto do cronópio). É, logo, uma reflexão atualíssima porque recupera temas ainda muito caros no debate sobre este gênero na contemporaneidade. Acompanha o texto, dois poemas de Pameos y meopas.

*

O contraditório é o de menos

Como explicava noutro dia a algumas figuras que conheço e que se chamam Calac e Polanco, a culpa do que segue é de um cronópio italiano que atende, se está de bom humor, pelo nome de Gianni Toti, quem depois de me dizer boas anedotas na porta do hotel onde se realizava o Congresso Cultural de Havana em 1968, resolveu soltar a afirmativa seguinte:

– De tudo o que escrevestes, o que eu realmente gosto é de tua poesia.

Como isso acontecia no primeiro território livre da América, considerei que não podia negá-lo o direito a manifestar sua opinião, embora as caras de alguns amigos presentes tendiam a dar uma impressão de petulância ou de um cruzado na mandíbula. Assim foi como este cronópio anunciou que ia traduzir poemas meus para o italiano, coisa que não só fez e graças a isso num destes dias quaisquer os estupefatos habitantes da bota vão começar ler os textos, o que talvez ocasione o apedrejamento das janelas de Gianni, que segundo se sabe, vive na Via Giornalisti, 25, em Roma.

Mas, como disse a parteira ao pai dos gêmeos, estas coisas nunca vêm sozinhas, e logo alguns cronópios da outra península, aglutinados sob a dominação mais etrusca de Ocnos, informam-me que a desesperança mais perniciosa os espreita se eu não os deixo salpicar uns quantos caderninhos com as ressonâncias de minha palheta. Qualquer um que me conheça saberá que de nenhuma maneira posso permitir que pessoas como Joaquín Marco e José Agustín Goytisolo se chateiem muito por meu silêncio, com o qual estamos como queremos.

Nos bolsos do tempo

Brincadeiras à parte, e seriedade pomposa também, tenho algo a dizer sobre o que se segue. Primeiro, que meus poemas não são como esses filhos bastardos em que neles se reconhece “in articulo mortis”, e nunca acreditei muito na necessidade de vê-los publicados; excessivamente pessoais, estufa para os dias de chuva, foram ficando nos bolsos do tempo sem que mesmo os esquecesse ou acreditasse como menos meus que os romances ou os contos. Agora que amigos insensatos querem vê-los impressos, não me desgostam e aí vão alguns, mas nada muda no fundo para eles ou para mim; acredito que ficaremos sempre do outro lado do livro, aparecendo às vezes ali onde a poesia habita algum verso, alguma imagem. Também assim, às vezes, ocorre admiravelmente um sorriso entre dois desconhecidos num vagão do metrô ou num cruzamento pela rua, ou uma voz no telefone nos diz algumas palavras em plena noite antes de saber que ligava para o número errado (mas isso realmente é suficiente?).

Junto com minha juventude morreu em mim o respeito “a priori” pela poesia, os poetas e os poemas que nos impunha um humanismo burguês já desmascarado por uma iludível quebra de valores e sistemas; hoje acredito que o melhor da poesia não viaja necessariamente nos veículos tradicionais do gênero, entre outras coisas porque já não há mais gêneros. Como duvidar de quando um poeta diz sua palavra à humanidade está tratando uma vez mais de inventar-se, criar-se, ser autenticamente? Mas os poetas não são já somente isso que classificam os profissionais da crítica; a poesia está cada vez mais na rua, em certas formas de ação renovadora, na descoberta ao acaso ou sem pretensão, nas canções populares, nos “graffiti”.

Há poucos dias, numa muro do metrô de Paris, sobre um cartaz onde a “starlette” do turno apresentava um sutiã que-sustenta-sem-esconder, li esta inscrição que de acordo com as leis francesas poderia custar dois meses de prisão ao seu autor: “POÈTES DES MURAILLES, RÉVEILLEZ-VOUS!”. E se atualmente se torna muito fácil negar desdenhosamente toda poesia que ousa apresentar-se em forma de poema não é menos certo que no fundo da desmesura, das opções exasperadas e maniqueístas incitadas pelas circunstâncias que nos toca a vida, outra visão do homem e da história aponta incontestavelmente outra maneira de ser e de se expressar que a geração já instalada em seus lugares não se resigna a aceitar.

Entre duas águas

Perto do dia em que escrever deixará de ser minha maneira de respirar, algo em mim é todavia capaz de entender a mudança, sentir-me contra o atraso das hierarquias intelectuais burguesas que se a poesia do homem de hoje pode acontecer como acontece num Octavio Paz ou num Carlos Drummond de Andrade, também pode, cada vez mais (se deixarmos cair as máscaras, se vivermos na rua aberta, ameaçadora e entusiasmada do tempo revolucionário), acontecer na linguagem de giz dos muros, das canções de Léo Ferré, de Atahualpa Yupanqui, de Caetano Veloso, de Bob Dylan, de Raimon e de Leonard Cohen, no cinema de Jean-Luc Godard e de Glauber Rocha, no teatro de Peter Weiss, nos jogos psicodélicos, nos “happenings” e nas provocações do aleatório e do mecânico que abrem cada vez mais ao grande público a paisagem com novas formas do estético e do lúdico.

É natural então que estes poemas que seguem me pareçam demasiadamente marginais e que por isso não lamente tê-los escrito; homem entre duas águas do século, terei conseguido o privilégio agridoce de assistir a decadência de uma cosmovisão e o levantamento de outra muito diferente; e se meus últimos anos estão e estarão dedicados a esse homem novo que queremos criar, nada poderá me impedir de voltar o olhar para uma região de sombras queridas, passear com Aquiles no Hades, murmurando esses nomes que já tantos jovens esquecem porque têm que esquecê-los: Hölderlin, Keats, Leopardi, Mallarmé, Darío, Salinas – sombras entre tantas sombras na vida de um argentino que tudo quis ler, tudo quis abraçar.

– Como escreve – disse Calac.

– Mama mia – disse  Polanco.

Falavam de mim como se a culpa não fossem de Gianni Toti, José Agustín Goytisolo e Joaquín Marco.

Paris, 1971

*

CONVERSA FIADA

À árvore já cortada
não deixes na terra
porque sua copa seca
não enganará aos pássaros.

Ao rio que corre
não levantes diques,
porque no vento livre
cavalgarão as nuvens.

Ao homem exilado
não fales de sua casa.
A verdadeira pátria,
cara, está pagando.


O SONHO

O sonho, essa neve doce
que beija o rosto, rói
até encontrar
sob, sustentado por
fios musicais
o outro que desperta.


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