Os livros favoritos de Gabriel García Márquez



Muito já foi falado sobre a obra do grande escritor latino-americano Gabriel García Márquez, quem com sua narrativa cativou o mundo com histórias de sua terra natal, a Colômbia, e apresentou ao mundo toda a América Latina. Mas, em sua autobiografia Viver para contar, o colombiano revela outros detalhes sobre sua vida que despertam no leitor uma viagem ao passado e que são tão importantes quanto a sua literatura.

Num valioso exercício narrativo, García Márquez nos conta os detalhes sobre a infância e adolescência que determinaram sua vida; e é aí que o leitor aprecia uma das facetas mais desconhecidas do escritor: quais os livros que marcaram e fizeram sua formação literária.

García Márquez gostava de ler os grandes da literatura, sempre se deixava levar pelas recomendações de seus amigos, como faz com a descoberta da grande literatura estadunidense (Hemingway, Dos Passos, Faulkner, sua obsessão) e aproveitava os instantes do dia em que não estava escrevendo ou mesmo muito antes de escrever para preencher com bons livros. Foi assim que, com o passar dos anos, conheceu obras relevantes, capazes de influenciar e definir seus interesses criativos bem como na modelagem do seu estilo narrativo. Ao longo de sua autobiografia, o escritor menciona alguns desses livros que marcaram sua vida e em vários casos especifica os detalhes por trás de seus interesses – noutros, apenas especifica os títulos.

Nesse balanço se constrói a lista agora apresentada. Chamamos atenção para a sinceridade de Gabo e a elegante maneira de compartilhar conosco os detalhes íntimos de sua vida leitora capazes de permitir aos seus leitores o encontro com uma nova figura e, como toda leitura influencia o trato literário, com outras luzes sobre sua própria obra. 

- Ulysses, de James Joyce
“Jorge Álvaro Espinosa, um estudante de Direito que me ensinara a navegar na Bíblia e me fez aprender de cor os nomes completos dos companheiros de Job, colocou-me num dia em cima da mesa um calhamaço intimidante e sentenciou com a sua autoridade de bispo: // – Está é a outra Bíblia. // Era, claro, o Ulisses de James Joyce, que li aos bocados e aos tropeções até que a paciência não me chegou para mais. Foi uma temeridade prematura. Anos mais tarde, já adulto domesticado, entreguei-me à tarefa de relê-lo a sério e não só foi a descoberta do mundo próprio de que nunca suspeitei dentro de mim, como também uma ajuda técnica inapreciável para a liberdade da linguagem, o manejo do tempo e as estruturas dos meus livros”.

A metamorfose, de Franz Kafka
“Veja chegou uma noite com três livros que acabara de comprar e emprestou-me um ao acaso, como fazia com frequência para me ajudar a dormir. Mas dessa vez conseguiu o contrário: nunca mais tornei a dormir com a serenidade de antes. O livro era A metamorfose, de Franz Kafka, na falsa tradução de Borges publicada pela editora Losada, de Buenos Aires, que definiu um novo caminho para a minha vida desde a primeira linha e que hoje é um dos grandes monumentos da literatura universal [...] // Ao terminar a leitura de A metamorfose ficaram-me as ânsias irresistíveis de viver naquele país alheio. O novo dia surpreendeu-me na máquina portátil que o próprio Domingo Manuel Veja me emprestava, para tentar algo que se parecesse com o pobre burocrata de Kafka transformado num besouro enorme”.

As mil e uma noites
“[...] quando cheguei ao Montessori, a professora não me ensinou os nomes mas sim os sons das consoantes. Assim pude ler o primeiro livro que encontrei numa arca poeirenta da arrecadação da casa. Estava descosido e incompleto, mas absorveu-me de uma forma tão intensa que o namorado da Sara, ao passar, deixou cair uma premonição aterradora: ‘Caramba! Este menino vai ser escritor!’ // Dito por ele, que vivia de escreve, casou-me uma grande impressão. Passaram vários anos antes de saber que o livro era As mil e uma noites. O conto de que mais gostei – um dos mais curtos e mais simples que li – continuou a parecer-me o melhor para o resto da minha vida, embora agora não esteja seguro de que fosse lá que o li nem ninguém tenha podido esclarecer. O conto é este: um pescador prometeu a uma vizinha oferecer-lhe o primeiro peixe que pescasse se ela lhe emprestasse um chumbo para a sua rede e, quando a mulher abriu o peixe para o fritar, tinha dentro um diamante do tamanho de uma amêndoa. // [...] ao recapitular a minha vida, recordo que a concepção que tinha de conto era primária apesar dos muitos que tinha lido desde o meu primeiro assombro com As mil e uma noites. Atrevi-me a pensar que os prodígios que Xerazade contava aconteciam de verdade na vida cotidiana do seu tempo e deixaram de acontecer devido à incredulidade e à covardia realista das gerações seguintes. Pela mesma razão, parecia-me impossível que alguém dos nossos tempos voltasse a acreditar que se podia voar sobre cidades e montanhas a bordo de um tapete, ou que um escravo Cartagena de Índias vivesse castigado duzentos anos dentro de uma garrafa, a menos que o autor do conto fosse capaz de fazer com os seus leitores acreditassem nisso”.

– A cabana do pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe
“Foi uma pena não ter ainda lido os novos romancistas norte-americanos, que mal começavam a chegar até nós, mas tive a sorte de o doutor Vélez Martínez começar com uma referência casual a A cabana do pai Tomás, que conhecia bem desde o bacharelado. Apanhei-o pelo ar. Os dois professores devem ter sofrido um ataque de nostalgia, pois os sessenta minutos que estavam reservados para o exame foram passados na íntegra numa análise emocional sobre a ignomínia do regime escravagista no Sul dos Estados Unidos”.

Moby Dick, de Herman Melville
“Gustavo Ibarra, com a sua visão compassiva do coração caribenho, divertiu-se com o meu relato da noite em Barranquilla, enquanto me dava colheradas cada vez mais cordatas de poetas gregos, com a expressa e nunca explicada exceção de Eurípides. Fez-me descobrir Melville: a proeza literária de Moby Dick, o grandioso sermão sobre Jonas para os baleeiros curtidos em todos os mares do mundo sob a imensa abóbada construída com costelas de baleias”.

A casa das sete torres, de Nathaniel Hawthorne
“[Gustavo Ibarra] emprestou-me A casa das sete torres, de Nathaniel Hawthrone, que marcou para toda a vida. Tentamos juntos uma teoria sobre a fatalidade da nostalgia no vaguear de Ulisses, na qual nos perdemos sem saída. Meio século depois, encontrei-a resolvida num texto magistral de Milan Kundera”.

Édipo rei, de Sófocles; “A pata do macaco”, de W. W. Jacobs; Bola de sebo, de Maupassant
“O meu reduzido interesse pelos estudos foi mais reduzido ainda depois da nota de Ulises, sobretudo na Universidade, onde alguns dos meus condiscípulos começaram a dar-me o título de mestre e apresentavam-me como escritor. Isto coincidia com a minha determinação de aprender a construir uma estrutura ao mesmo tempo verossímil e fantástica, mas sem brechas. Com modelos perfeitos e esquivos, como Édipo rei, de Sófocles, cujo protagonista investiga o assassinato do pai e acaba por descobrir que é ele próprio o assassino; como ‘A pata do macaco’, de W. W. Jacobs, que é o conto perfeito, onde tudo o acontece é casual; como Bola de sebo, de Maupassant, e tantos outros grandes pecadores que Deus tenha no seu santo reino”.

Luz em agosto, de William Faulkner
“Éramos os únicos passageiros, talvez em todo o trem, e até esse momento não havia nada que me despertasse um verdadeiro interesse. Mergulhei no torpor de Luz em agosto, fumando sem tréguas, com rápidos olhares ocasionais para reconhecer os lugares que íamos deixando para trás. // [...] Eu tinha comprado no porto uma boa provisão de cigarros dos mais baratos, de tabaco negro e com um papel a que pouco faltava para ser de embrulho, comecei a fumar à minha maneira de então, acendendo um na beata do outro, enquanto relia Luz em agosto, de William Faulkner, que era então o mais fiel dos meus demônios tutelares”.

A montanha mágica, de Thomas Mann
“Os bons tempos começaram com Nostradamus e O homem da máscara de ferro [Alexandre Dumas], que agradaram a todos. O que ainda hoje não entendo é o interesse estrondoso por A montanha mágica, de Thomas Mann, que exigiu a intervenção do reitor para impedir que passássemos a noite acordados à espera de um beijo de Hans Castorp e Clawdia Chauchat”.

O velho e o mar, de Ernest Hemingway
“A leitura inesperada de O velho e o mar, de Hemingway, que chegou de surpresa na revista Life espanhola acabou de restabelecer-me dos meus quebrantos”.

Greguerías, de Ramón Gomez de la Serna
“Por outro lado, chamava-lhe a atenção que Ramón Gómez de la Serna me interessasse tanto que o citava em ‘La jirafa’ a par de outros romancistas incontestáveis. Esclareci que não o fazia por causa dos seus romances, pois além de El chalet de las rosas, de que gostara muito, o que dele me interessava era a audácia do seu engenho e o seu talento verbal, mas apenas como ginástica rítmica para aprender a escrever. Nesse sentido, não recordo um gênero mais inteligente do que as suas famosas greguerías”

A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson; O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas
“Era o diretor. Chama-se Juan Ventura Casalins e lembro-me dele como de um amigo de infância, sem nada da imagem aterradora que tínhamos dos professores da época. A sua virtude inolvidável era tratar todos como adultos iguais, embora ainda hoje me pareça que se ocupava de mim com uma atenção especial. Nas aulas costumava fazer-me mais perguntas do que aos outros e ajudava-me para que as minhas respostas fossem certeiras e fáceis. Permitia-me que levasse os livros da biblioteca escolar para ler em casa. Dois deles, A ilha do tesouro e O conde de Monte Cristo, foram a minha droga feliz naqueles anos pedregosos. Devorava-os letra por letra, com a ansiedade de saber o que acontecia na linha seguinte e, ao mesmo tempo, com a ansiedade de não saber para não quebrar o encanto. Com eles, como a As mil e uma noites, aprendi para não mais esquecer que só deveriam ler os livros que nos forçam a relê-los”.

Dom Quixote, de Cervantes
“Em contrapartida, a minha leitura do D. Quixote mereceu-me sempre um capítulo à parte, porque não me causou a comoção prevista pelo professor Casalins. Aborreciam-me as tiradas sábias do cavaleiro andante e não achava a menor graça as burradas do escudeiro, a ponto de pensar que não era o mesmo livro de que tanto se falava. No entanto, disse a mim mesmo que um professor tão sábio como o nosso não podia se enganar, e esforcei-me por engoli-lo às colheradas, como um purgante. Fiz outras tentativas no bacharelado, onde tive que o estudar como tarefa obrigatória, e fiquei a detestá-lo sem remédio até que um amigo me aconselhou que o pusesse na prateleira do banheiro e tratasse de lê-lo enquanto cumpria os meus deveres cotidianos. Só assim o descobri, como uma deflagração, e o saboreei da frente para trás e de trás para a frente até recitar de cor episódios inteiros”.

Outros livros referidos na autobiografia de García Márquez

O povoado, O som e a fúria, Lance mortal, As palmeiras selvagens, de William Faulkner
Reiteradas vezes, García Márquez cita a importância de Faulkner para sua formação: “Nessa altura eu tinha lido tudo o que pudera encontrar da Geração Perdida, em espanhol, com um cuidado especial para Faulkner cujo rastro seguia com um sigilo sangrento de navalha de barbear devido ao meu estranho receio de que afinal não fosse mais do que um retórico astuto”; “Os que melhor recordo eram os de William Faulkner: O povoado, O som e a fúria, Lance mortal e As palmeiras selvagens”.

Contraponto, de Aldous Huxley
Manhattan Transfer, de John Dos Passos
Ratos e homens e As vinhas da ira, de John Steinbeck
O retrato de Jennie, de Robert Nathan
A estrada do tabaco, de Erskine Caldwell
“Mas, ao contrário dos que li no liceu de Zipaquirá, que merecem estar num mausoléu de autores consagrados, estes líamo-los como pão quente, recém traduzidos e impressos em Buenos Aires depois da longa interrupção editorial da Segunda Guerra Mundial. Assim descobri para sorte minha os já muito descobertos Jorge Luis Borges, D. H. Lawrence e Aldous Huxley, Graham Greene e Chesterton, William Irish e Katherine Mansfield”.

Orlando Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf
“Álvaro mostrou-me os seus livros favoritos, em espanhol e inglês, e falava de cada um com a voz oxidada, os cabelos despenteados e os olhos mais dementes do que nunca. Falou de Azorín e Saroyan – duas fraquezas suas – e de outras cujas vidas públicas e privadas conhecia até em cuecas. Foi a primeira vez que ouvi o nome de Virginia Woolf, que ele chamava a velha Woolf, como o velho Faulkner. O meu espanto exaltou-o até ao delírio. Agarrou na pilha dos livros que me mostrara como seus preferidos e colocou-os nas mãos.

– Não seja parvo – disse-me, leve-os todos e quando acabar de os ler vamos busca-los seja onde for.

Para mim eram uma fortuna inconcebível que não me atrevi a arriscar sem ter sequer um tugúrio miserável onde os guardar. Por fim conformou-se em oferecer-me a versão espanhola de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, com o prognostico inapelável de que ficaria a sabe-lo de cor”.

“Foi assim que foi publicada a minha primeira nota na primeira página de El Heraldo de Barranquilla, a 5 de janeiro de 1950. Não a quis assinar com o meu nome a fim de me precaver para o caso de não conseguir acertar o passo, como aconteceu em El Universal. Não pensei duas vezes o pseudônimo: Septimus, tirado de Septimus Warren Smtih, o personagem alucinado de Virginia Woolf e Mrs. Dalloway.”

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