Os 50 anos de “Três tristes tigres”
Para quem havia lido
Três tristes tigres (publicado em
1967, Prêmio Biblioteca Breve no mesmo ano e censurado) haveria de ficado estupefato cinco
mais tarde ao ver sentado, quase mudo, seu autor, que com esse romance mudou o
humor da literatura hispano-americana. TTT,
como era abreviado, chega aos cinquenta anos da sua primeira edição e na
reedição da obra inclui um apêndice com os registros da censura espanhola
da época que não quis o romance publicado na versão original. “O
conteúdo é pornográfico às vezes, desrespeitoso outras, imoral sempre”, disse o
censor José Vila Selma. “Irreligiosidade, antimilitarismo, grosseria... O romance
é realmente ileíble [sic]”, reafirmam
os censores.
Guillermo
Cabrera Infante nasceu em 1929, em Gibara, uma pequena cidade na costa leste de
Cuba, e morreu em Londres, em 2005. Quando estava sentado assim, era 1972 e já
então vivia no exílio com sua companheira, a atriz Miriam Gómez. Havia sido vitimado
por um ataque de nervos que lhe veio enquanto trabalhava no roteiro de À sombra do vulcão, de Malcolm Lowry. O escritor passou uma breve temporada em Hollywood como roteirista no início da década de setenta.
Havia ainda
outras marcas mais duradouras naquele homem silencioso em Londres. O desterro
começou a vir em 1965 e ao seu país natal nem Cabrera Infante e nem sua companheira
voltaram ainda que a música e a atmosfera não tenham deixado de marcá-los. Três tristes tigres foi seu hino à
alegria e à noite de Havana. Era um malabarista da escrita e este romance foi
sua explosão.
O tiro saiu
pela culatra. A censura contra Três
tristes tigres não serviu para sepultar a obra como queriam os censores. E pode ter sido aí o exato momento de sua consolidação como um dos mais importantes livros do boom latino-americano, embora, já muito antes a censura houvesse lhe tocado: em 1952, foi acusado de escrever obscenidades num dos seus contos e obrigado a publicá-lo com o pseudônimo G. Caín.
Miriam Gómez, que nunca deixou de se ocupar da obra do companheiro, relembra o
tempo exato quando nasceu Três tristes tigres. Fidel Castro acabava de proclamar a censura
revolucionária. “Pela Revolução, tudo; contra a Revolução, nada”. Era 1961. E
esse vendaval reacionário levou adiante no calor da hora escritores e
revolucionários. “E foi nesse momento que Guillermo soube que ali não tinha nada
a fazer”, diz.
O escritor,
entretanto, tinha muita força de concentração e começou a escrever “Ela cantava boleros”, que tem vida
própria no livro. Este foi o texto que lhe deu o diapasão para a narrativa e sua música que marca toda obra. Alguém
havia contado a Cabrera Infante que Freddy (Fredesvinda) García Valdés, uma cantora da noite que havia ido embora para Porto Rico morrera e isso foi um golpe para
o escritor, uma premonição sobre a obscuridade que começava a chegar às noites de
Havana. Como se à ilha tivessem amputado seu ritmo. “E então começou a escrever sobre
essa mulher ouvindo Billie Holiday”. Na ocasião, Infante estava na direção de Lunes de la Revolución, um caderno e cultura e em certas ocasiões fazia as
vezes de guarda revolucionária. Até que foi varrido do trabalho pelo vendaval Castro: “contra a Revolução, nada”. “Ele dizia que foi o primeiro cafetão de Cuba,
porque passou a viver do que eu ganhava”, recorda Miriam.
Era um estoico: “Nunca vi ninguém tão estoico. Encontrava a felicidade nos livros, no cinema,
no sexo... Em escrever, em ouvir música”. Nesses anos em que a Revolução se colocou
contra pessoas como Cabrera, ele seguiu narrando assim a noite de Freddy e do
elenco exótico de personagens que povoam TTT. E continuou na Bélgica, o primeiro exílio para o qual foi enviado. À Bruxelas, Infante foi enviado como agregado cultural e foi quando aumentaram suas discordâncias com o governo que culminaria três anos depois no autoexílio em Londres. O pior
lugar foi para Guillermo um bom lugar para escrever.
O irmão Saba
(autor de P. M., documentário sobre a
noite de Havana) acabou por levá-lo ao exílio definitivo. Foi quem convenceu-lhe
a candidatar-se ao Prêmio Biblioteca Breve, já ganho por gente como Mario
Vargas Llosa, e foi galardoado ainda quando era um cidadão cubano. Mas a censura
o reteve; ao chegar em Cuba descobriu que precisaria mudar o livro a fim de que
fosse publicado. Prontamente, fez. Era, em sua primeira versão, “uma celebração
das mudança em Cuba, da noite em Havana”; depois “se deu conta de que tudo era
um fracasso, um horror. Ele preferia morrer a continuar vivendo ali”.
O caminho
para o exílio foi lento, mas quando se abriu, em 1965, por sorte Guillermo e
Miriam já estavam casados e é então quando decidem que jamais voltariam ao cenário daquela
noite, da Havana de TTT. O livro foi
malquisto em Cuba, onde continua sendo uma raridade e num tempo se trocava
por latas de leite condensado.
Aquele
Cabrera Infante sombrio em Londres ressuscitou logo. Escreveu ainda grandes
romances, como Havana para um infante
defunto, e colocou ordem (e desordem) toda sua abundante produção como escritor
para cinema (Un oficio del siglo XX, Arcadia todas las noches). E como sonhava com os livros! Vicente Molina
Foix diz que “Guillermo era um ventríloquo de seu romance”. Depois de sua
morte, vários novos títulos têm aparecido como Mapa desenhado por um espião ou Corpos
divinos.
A casa de
Cabrera Infante em Gloucester Road é lugar de peregrinação para quem leu Três tristes tigres. Era, como Havana,
dividida em três lugares: na mesa da cozinha estava um mapa que lhe serviu para
escrever Havana para um infante defunto;
ali está sua enorme biblioteca, sua coleção de filmes. Uma atmosfera que lhe
impedia de sair para buscar o mundo de fora: o mundo era a casa. E, a casa era Havana.
Sobre Três tigres tristes, disse o pensador
Fernando Savater: “Esse livro de Guillermo, e não dizemos já conhecê-lo, nos
revelou que um livro pode ser mais profundo, terno, emocionante e uma crítica
feroz a uma situação ditatorial. Além disso, é enormemente divertido, consegue
lhe fazer rir e encontrar situações humorísticas que logo não nos deixa esquecê-lo,
é uma autêntica libertação”.
Rosa Pereda,
jornalista e crítica: “Está cheio de carne e sangue, de música e cor... Não acredito
que seja um livro engraçado, embora ri muito com ele e continuo rindo. Mas é a
história de uma esperança, escrita a partir da desilusão. Uma desilusão, certamente,
muito precoce, ao já prever chegar nessa longa noite – essas longas noites –
dos tigres peripatéticos pouco antes da Revolução”.
Aquele
Guillermo Cabrera Infante que nos recebeu triste em 1972 estava se recuperando
não apenas do esforço de levar ao cinema uma obra de Lowry. Estava voltando a
falar em meio ao trauma de um exílio que então deglutia ainda como uma bola de
tristeza. Depois voltou a ser o que aparece pelas noites, ouvindo música, escutando
como ela cantava boleros... Ela foi alguma vez não só Freddy, mas Havana.
Ligações a esta post:
* Este texto foi publicado no jornal El País com o título "Tres tristes tigres cumple 50 años de explosión de vida y literatura”; leia o texto original aqui.
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