O som e a fúria, de William Faulkner
Por Pedro Fernandes
É preciso
ler William Faulkner para saber quão longe se estende sua influência na
literatura produzida nestas últimas décadas desde os anos finais de
1920; caso contrário sempre se correrá o risco de afirmar que todo escritor capaz
de remodelar a narrativa através da total imersão na psicologia dos indivíduos é
um grande criador. É evidente que há, depois do estadunidense, obras que
ampliam sua maneira de contar e fundamentais na renovação estética do romance,
mas sobre elas paira a sombra sempre da literatura de Faulkner. Logo, a leitura da sua obra é a garantia, para o leitor, de compreender toda a grande literatura posterior porque nela reverbera, em menor ou maior grau, suas influências.
O som e a fúria é dos seus primeiros títulos e possivelmente um dos
mais conhecidos e estudados pela crítica, mas sempre descrita como uma continuidade na visão desencantada
sobre a realidade nascida em obras como Paga
de soldado e Mosquitos. O olhar
do escritor estadunidense é de desencanto porque se coloca como transitório
entre um modelo social em crise e outro em fase de constituição a partir dos
fragmentos da tradição e um espírito entregue aos encantos da palavra
liberdade, ainda que o seu tempo seja aquele dos mais conturbados da recente
história da humanidade. Isto é, possivelmente esse desencanto é a maneira como o escritor flagra essa transitoriedade do seu tempo, o que, à luz de alguns leitores logo parecerá uma impossibilidade de apreensão mitificada na ideia comum de desencanto.
No caso de O som e a fúria, o tempo é da recente
abolição das escravatura – distante só meio século – e nos augúrios da Quebra
da Bolsa de Nova York e de alguma forma das primeiras lutas pelas liberdades
individuais, como a do direito das mulheres. Esta constatação, apesar de soar
um tanto repetitiva, é fundamental não apenas para uma contextualização da obra
como para uma revisão sobre ideia de que a visão de mundo de Faulkner é a da decadência. Reiteremos: até é possível assim considerar mas sem se descuidar de observar que seu olhar
sobre o comezinho estadunidense é o de entrever uma possibilidade ainda não
apreendida pelos de seu tempo, seja pela iminência, seja pela extensa revisão
de valores que daí então se tornaram pauta contínua de reivindicação social.
Tanto é verdade a vista turva sobre o porvir, que suas representações, ao menos
no romance em questão, são, em parte, abortadas: como o suicídio de Quentin.
Assim, é preferível dizer que a literatura de Faulkner é sobre o limiar e não
sobre a decadência especificamente.
As duas
observações até agora apresentadas anunciam, em parte, sobre o projeto
literário de William Faulkner: a conciliação (se é que alguma vez foi
destituída) entre o estético e o social no âmbito da constituição da narrativa.
Em O som e a fúria, por exemplo, isso
é demonstrado pela arquitetura do romance: uma transição entre rascunho,
podemos assim dizer, e ao contar bem-acabado. Não é necessário esforço algum
para essa constatação: mas, ao que parece, antes de escrever, Faulkner preferia
não saber que ia escrever. Do tateio e dos titubeios nasce a narrativa desse
romance. Entre a primeira e segunda parte – a obra é dividida em quatro – escolhe
narradores diferentes que deixam ver uma versão anterior, outras camadas, o rascunhado, o que se encobre.
Isso só é perceptível nas duas últimas partes, quando o fio narrativo mais ou
menos linear recupera determinados traços das duas primeiras e vai com um risco
que acende um rabisco iluminando o que antes parecia não se amarrar a sentido
algum. Faulkner trabalha com uma lenta exploração do mesmo como se buscasse
nele revelar as múltiplas possibilidades de dizê-lo.
O som e a fúria recupera três dias de
abril de 1928, correspondendo a primeira e as duas últimas partes do romance e
logo posteriores aos acontecimentos situados na segunda parte, datados de
dezoito anos antes. A maneira desestruturada como o escritor constrói a narrativa é
só uma das estratégias de romper com a natureza tradicional do narrar: marcadamente
linear e resultando numa história. Em parte porque a ruptura com a linearidade
é só uma das marcas no trabalho de oferecer ao leitor não uma história, mas uma
possibilidade através de situações cuja responsabilidade de realização é totalmente do leitor. Isso
porque toda a parte submersa – a história de decadência dos Compson – se revela
esporadicamente entre os acontecimentos do cotidiano de 6 a 8 de abril. É
quando o leitor sabe da ruína da casa, da morte de Jason, o patriarca da
família, em decorrência do álcool, o suicídio de Quentin, o único que recebe a
oportunidade de ir estudar em Harvard com o dinheiro da venda de um lote de
terra da Maury, irmão de Caroline, uma senhora burguesa entregue à
possibilidade iminente da morte, espécie de refúgio onde se abriga à base de
aspirina e da incapacidade de conduzir a casa, esta que é governada aos trancos
e barrancos por Jason, o filho que é último representante de uma tradição
pautada na moral e nos bons costumes e tem toda sorte de rixas sociais contra
mulheres e negros, incapaz de por ordem na sobrinha Quentin, filha incógnita da
irmã Caddy – há a possibilidade de Quentin ser fruto da relação incestuosa
entre Caddy e o suicida. Inteira a cena, o filho doente mental, Benjamin, que é
ora mimo para mãe e superprotegido de Disley, empregada e agregada da família,
e de Caddy, antes de ser deserdada de casa, ora é motivo de escárnio para
Jason, quem o maltrata desde criança e o persegue na ideia de interná-lo num
manicômio.
Benjamin
(Benjy), Quentin e Jason são narradores que dividem a organização de três
partes do romance – as de que se dão nos dias 7 de abril de 1928, 2 de junho de
1910 e 6 de abril de 1928, respectivamente. A quarta parte, do dia 8 de abril
de 1928, é narrada em terceira pessoa, mesma voz que interfere vez e outra nas
demais partes do romance. Essas interferências não se restringem à perspectiva
do de fora, todos os irmãos Compson, sobretudo na primeira parte, são vozes na
narrativa. Se cada uma das partes da obra é produto de um olhar diferente, as
maneiras de dizer também assim se apresentam: a do Benjy são volições psicológicas
incompletas, marcadamente prospecções sensoriais, obrigando o leitor a não buscar
decifrar alguma linearidade ou uma relação entre acontecimentos e apenas
senti-los; a do Quentin mantém apenas uma organização aparente, mas logo o
leitor se compreenderá diante de uma consciência abalada de suicida; e a do
Jason, pela sua própria personalidade, a do perfeccionista que anseia a recuperação
da ordem do lar, é quando as situações são mais ou menos organizadas e melhor compreendemos
os conflitos apresentados nas duas partes anteriores.
Na quarta
parte do romance, o foco narrativo recai sobre os criados Dilsey e Luster. Especificamente
aqui, encontramos, primeiro, uma justificativa sobre ser este não apenas um
romance sobre a decadência mas sobre o porvir, segundo, um redirecionamento do
olhar que deixa de avivar os da aristocracia para olhar os elementos propulsores
da engrenagem social, quase sempre denegrida por tipos como Jason – que no seu
ideal de ordem social demonstra-se um em contínuo revoltar-se contra tudo e
todos, sobretudo, os mais necessitados através de uma falsa meritocracia. O porvir não está nos negros, aqui denunciados
como massa de exploração dos brancos, e sim na atitude da única representante
da terceira geração dos Compson: a adolescente rebelde, sem pai e largada pela
mãe, sem quaisquer perspectivas de vida, adulada pelos mais próximos da casa, a
avó e a empregada, e perseguida pelo tio que, invejoso da liberdade dela, age
de todas as maneiras para tentar domesticá-la. Se por um lado essa personagem
representa o que aos olhos da tradição significa uma degeneração social, por
outro, é uma alternativa frente ao status
quo e à passividade das mulheres aos desígnios do homem.
Ao acompanhar
muito de perto o esforço dos empregados em manter a ordem na propriedade dos Compson,
quando esta de um todo já foi sucumbida, o narrador redime os negros de todas
as acusações apresentadas de maneira diversa ao longo do romance, principalmente
aquelas vindas de Jason: a de fanfarrões, mentirosos, interesseiros, alcoviteiros, preguiçosos, incapazes de quaisquer progressos. Na condição de ruína da casa,
são Dilsey e Roskus, os que, seja pelo seu trabalho, seja pela natureza de
apaziguadores dos conflitos (ela encarna a alma
mater e ele o que tudo vê e silencia porque coisas de branco são coisas de branco, para redizer uma de suas conclusões
no desfecho do romance) trabalham arduamente em manter aquilo do qual se
orgulha os da aristocracia: o aparente.
O privilégio
do ponto de vista diverso é em O som e a
fúria (tal como sugere o título) fundamental para a manutenção desse jogo
entre o real e o aparente e para a constituição do narrado como possibilidade;
afinal, haverá conclusões construídas por um leitor não observadas por outro e
algumas percepções só possíveis noutras releituras da obra. E não são apenas as
situações, este é um romance que lida com temas mais abstratos: a dimensão do
tempo como causa da ruína de tudo, a impossibilidade de sua negação, a
transitoriedade da vida, as maneiras de como os indivíduos não são frutos do
meio onde vive, o trabalho ora como redenção ora purgação da existência, a vida
como extenso complexo de dilemas sobre os quais nem temos controle e nem
respostas definitivas. Tudo isso justifica em parte porque esta é uma obra
sempre fundamental aos leitores: ela irradia algum som sobre a fúria da vida.
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