O complexo de Portnoy, de Philip Roth
Por Pedro Fernandes
Philip Roth. Foto: Jimmy Jeong. |
Um grito
desbocado contra um sistema fabricado para punir seus indivíduos. Esta é uma só
das possibilidades de leitura do romance que se inscreve entre os primeiros – e
logo entre os que projetaram o nome do escritor Philip Roth. Publicado no final
da década de 1960, nele se condensa todo o espírito de rebeldia nascido anos
antes num Estados Unidos que embora tenha vendido a imagem de símbolo da
liberdade sempre foi um país retrógrado, no sentido moral e dos costumes, e
opressor, contra todos aqueles que divergem do status quo determinado pelo ideal social imposto pelo poder.
Philip Roth
não ataca abertamente esse modelo social porque está imbuído do espírito
artístico de não se revelar abertamente sobre o que repudia – a estratégia não
é burlar o poder, mas de rir-se dele e não ser acusado de romancista
panfletário. O resultado é uma arma de alta precisão indispensável desde
sempre: quando da sua publicação e muito depois, porque ainda que os EEUU
resolvam seu grande complexo, este será um retrato indispensável para olhar o
passado desse país. Nisso reside a perspicácia da grande obra literária.
Mas, de que
maneira, Roth, tece suas implicações sobre os danos causados pelo modelo social
estadunidense? O romancista recorre a outro modelo e é a partir de sua caricatura
que o leitor mais atento logo perceberá que a crítica é não especificamente ao
modelo usado e sim ao modelo inferido. A narrativa principia como uma tentativa
de biografia de uma personagem e acaba por ser apenas um amontoado de situações
que não respondem pelo propósito. Isto é, também estrutural e formalmente, o
leitor se encontrará diante de um projeto narrativo frustrado – confluindo
tema, estrutura e forma para um só propósito: aviltar uma sociedade incapaz de
responder pelos atos e sem quaisquer perspectivas de sair das estreitas linhas
que desde o alvorecer da história se fazem desenhadas.
A biografia
do indivíduo como impossibilidade se apresenta de maneira diversa no romance:
ora é o fato de uma existência irrelevante, se considerarmos que a vida que
melhor se ajusta ao ideal biográfico é aquela cuja existência se pontua por
situações extraordinárias e no caso de Alexander Portnoy, o narrador do romance,
seu maior feito está nas tentativas de romper com a moral fabricada pela
família judaica; ora é o caso de não estarmos diante da tradicional figura
interessada em tornar crível sua existência mas encontrar em qual ponto de sua
história reside a gênese de seu complexo. O que o leitor encontra é um homem de
meia-idade recriando determinadas passagens de sua vida para um psicanalista,
num discurso que tateia entre a memória e a invenção. Se por um lado,
reforça-se o imperativo sobre qual existência é melhor biografada, por outro,
lida com a possibilidade fornecida pela psicanálise desde Freud segundo a qual
o que nos define são as histórias que vivemos e, logo, todos temos nossas
próprias biografias. Embora para o psicanalista tais histórias possam nos servir
de iluminação para percebermos quais são os lugares nevrálgicos de nossos
dramas.
O drama de
Portnoy – ou seu complexo, para fazer jus ao título da obra – reside na
impossibilidade de se libertar da culpa, primeiro imposta e depois autoimposta,
de suas atitudes como indivíduo e cidadão. Seu complexo está em não conseguir precisar
onde estão os limites entre a vida comum, privada, e a vida pública. Se isso
revela uma verdade universal – a que responde por uma compreensão da vida fabricada
entre a verdade e a desfaçatez, por assim dizer –, instala um dilema, quando o
sujeito se vê incapaz de transitar entre uma linha e outra seja porque queira a
vida pública tal como a vida privada e vice-versa. Esse drama parece se
manifestar claramente no exato momento quando o indivíduo começa suas experiências
sexuais. A vida sexual, uma das dimensões que se oculta, e a vida comum, existir
como se o que se oculta não fizesse parte de nós, coloca o indivíduo ante esse complexo.
Se em grande parte superamos – o que talvez não seja uma verdade concreta –
Portnoy é alguém cuja existência parou presa nesse dilema. E dada sua formação
de estreita regra não consegue deixar de compreender tudo o que faz na dimensão
privada como um impeditivo para o que não dá certo fora dela, além do sentimento
de culpa que sucede suas ações.
Como esse complexo
individual é tornado coletivo ou metonímia sobre a relação indivíduo-sociedade?
A mãe de Alex é a perfeita encarnação das forças deterministas do sujeito social
– o esforço para a consolidação de um modelo padrão consistiu na repreensão e
na punição, desde os imperativos da religião e a invenção do pecado aos do
Estado e a invenção das leis, tudo são, instrumentos de controle, autodomesticações
da existência gerido por outro grande padrão, o de que somos criaturas racionais.
É pela razão que Alex questiona como a razão o tornou sujeito frustrado e incapaz
de conviver com suas próprias obsessões e aqui o nome da razão é Sophie:
“Era minha
mãe que era capaz de fazer qualquer coisa; ela própria tinha de reconhecer que
talvez fosse boa demais. E como um menino com a minha inteligência, com meus
poderes de observação, poderia duvidar dessa avaliação? Ela sabia fazer, por
exemplo, gelatina com fatias de pêssego suspensas dentro, pêssegos que
simplesmente flutuavam, desafiando a
lei da gravidade. Ela sabia fazer bolo com gosto de banana. [...] Vigiava o
açougueiro ‘como um gavião’, para usar suas próprias palavras, para que ele não
deixasse de passar no moedor kosher a
carne que ela comprava. Telefonava para todas as mulheres do prédio que tinham
pendurado roupa na corda dos fundos – até mesmo para a gói divorciada do andar
de cima, num dia em que estava particularmente magnânima – dizendo que era para
ir correndo pegar a roupa, que uma gota de chuva tinha acabado de cair na nossa
vidraça. Que radar, aquela mulher! E isso antes
mesmo de inventarem o radar! A energia que havia nela! O perfeccionismo!
Examinava todas minhas contas para ver se não havia nenhum erro; minhas meias,
à procura de furos; minhas unhas, meu pescoço, todas as dobras de meu corpo, à
procura de sujeira. Chega mesmo a dragar os recantos mais inacessíveis de meus
ouvidos derramando água oxigenada gelada dentro deles.”
“Quando me comporto
mal, sou trancado do lado de fora do apartamento. Fico esmurrando a porta sem
parar, até jurar que vou me corrigir. Mas o que foi que eu fiz? Engraxo meus
sapatos numa folha de jornal da véspera cuidadosamente estendida no chão de
linóleo; depois jamais esqueço de deixar bem tampada a lata de graxa e guardar
direitinho todo o equipamento no lugar certo. Sempre aperto o tubo de pasta de
dentes bem junto à base, escovo os dentes com movimentos circulares, nunca na vertical,
digo ‘obrigado’, digo ‘de nada’, digo ‘desculpe’ e sempre peço: ‘posso?’ Quando
Hannah não pode porque está doente ou porque saiu, com sua latinha azul, para
recolher dinheiro para o Fundo Nacional Judaico, sempre ponho a mesa, mesmo não
sendo a minha vez, colocando a faca e a colher do lado direito, o garfo do
esquerdo, o guardanapo à esquerda do garfo, dobrado de modo a formar um
triângulo. Nunca misturo milchiks com
flaishedigeh, nunca, jamais, em tempo
algum”.
Toda a vida
de Alex estará marcada pela tentativa de negar esse passado da infância – ainda
que se sinta marcadamente atraído por ele por encontrar uma maior coerência
subjetiva ante sua vida desde a adolescência, quando começa propositalmente sua
revolta contra o modelo familiar. E uma das maneiras de negação é mostrar-se
integrado ao mundo comum ainda que nele só encontre, apesar do encanto que também
desenvolve por ele, mais frustrações. Alex Portnoy é, deste modo, um sujeito em
exílio autoimposto por não se compreender integrado em nenhum dos modelos sociais
disponíveis.
Assim, além de
sublinhar as implicações de um modelo social que fabrica sujeitos incapazes e
frustrados, Roth tem o privilégio de tornar universal o traço que mostra em
relevo em O complexo de Portnoy, que
é a cisão entre judeu e o mundo comum, tornando essa diferença uma distinção
entre eu e o mundo que funciona, em primeiro plano, como crítica sobre o modelo
implicado na formação nacional e – uma vez
a obra se projetar para além das fronteiras de seu país –, acrescentamos, uma crítica
ao modelo de formação da civilização ocidental. Está no potentado das dicotomias
a grande falha do Ocidente e é pela natureza do impasse que Roth constrói uma maneira
de revelar isso. Isto é, O complexo de
Portnoy finda por dizer, como todo importante romance, um pouco do que de nós se esconde, sobretudo
se pensamos no quanto o denominador sexo, por todo exercício de cerceamento do
desejo, deixou de ser uma maneira de libertação dos corpos para servir de instrumento
de controle.
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